Tudo o que você precisa saber sobre cloroquina e COVID-19

Questão de Fato
10 abr 2020
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pílulas

 

Temos recebido muitas mensagens com dúvidas legítimas, informações equivocadas e provocações sobre o material que estamos publicando a respeito do uso da cloroquina (CQ) e hidroxicloroquina (HCQ) no tratamento da COVID-19. Aqui, um compilado das questões mais recorrentes – e nossas respostas. Este material pode ser atualizado a qualquer momento: se isso ocorrer, avisaremos aqui.

 

Vamos lá:

Sobre a ação do medicamento

 

Afirmação: A CQ e HCQ atuam impedindo a entrada de vírus na célula, alterando o pH do endossomo, que é o veículo usado pela partícula viral. Por isso, devem funcionar para COVID-19.

Provavelmente falso

O caminho de invasão da célula via endossomo existe, mas não é o único. Existe uma entrada por fusão de membrana – quando o vírus dispensa a “carona” do endossomo – para a qual o pH é irrelevante. Estudos mostram que essa entrada é a mais utilizada pelo SARS-CoV2. Isso pode explicar por que os testes sempre dão certo em cultura de células, mas nunca em animais e humanos. As células do trato respiratório têm características de membrana que facilitam a fusão, enquanto as células usadas para os testes de laboratório só oferecem ao vírus a via de endossomo.

 

Afirmação: Esses remédios já foram usados com sucesso para tratamento de outras viroses.

Falso

A HCQ e CQ atuam com sucesso no tratamento de malária, que é causada por um protozoário, e não um vírus. E atuam também com sucesso em doenças autoimunes como lúpus e artrite reumatoide. Já foram testadas – e fracassaram—no tratamento de aids, dengue, influenza, chicungunha, ebola e SARS. Em chicungunha e ebola, esses medicamentos fizeram mal, aumentando o número de vírus e agravando os sintomas de ambas as doenças, em animais.

 

Afirmação: A CQ e HCQ apresentam ação imunomodulatória e, portanto, podem ser úteis na fase grave da doença, onde temos uma reação imune descontrolada.

Provavelmente falso

O mecanismo imunomodulatório existe, e é o que torna esses medicamentos úteis em doenças autoimunes, mas a aplicabilidade disso à COVID-19 é, na melhor das hipóteses, um chute. O uso de CQ e HCQ em pacientes graves, até agora, não parece ter apresentado resultados favoráveis. O efeito imunomodulador pode demorar semanas para se manifestar. Os protocolos para pacientes graves de COVID-19 utilizam HCQ por cinco dias. Pode ser que este prazo não seja suficiente para que o efeito imunomodulador faça diferença. Por outro lado, esse efeito pode ser indesejado em fases iniciais da doença, exatamente por deprimir o sistema imune, o que pode acabar favorecendo a replicação do vírus.

 

Afirmação: Os medicamentos apresentam ação anti-inflamatória, que pode ser útil na fase grave da COVID-19.

Verdadeiro, mas irrelevante

O efeito existe, e pode ser útil, mas há diversos outros medicamentos no mercado com a mesma função, e menos efeitos colaterais. Não existe necessidade de usar CQ e HCQ como anti-inflamatórios, dadas as alternativas.

 

Afirmação: Não funciona dar só a HCQ, precisa dar a azitromicina junto.

Falso

O uso da azitromicina em associação com a HCQ começou baseado no primeiro estudo do pesquisador francês Didier Raoult, que usou o antibiótico para tratar infecções bacterianas secundárias, mas achou ter visto melhora em seis pacientes que usaram essa combinação. Ele chamou esse resultado de “100% de cura”. Só esqueceu de contar sobre os seis pacientes que também tomaram essa combinação e pioraram: três foram para UTI, e um morreu. O artigo científico que descreve os resultados de Raoult foi considerado de baixa qualidade até pelos responsáveis da revista que o publicou.

 

Afirmação: A combinação HCQ + azitromicina funciona porque, além do efeito antiviral da HCQ, o antimalárico atua numa estrutura interna da célula, o ribossomo, impedindo a produção de proteínas de que o vírus precisa, e a azitromicina na mitocôndria, deixando o vírus sem energia para se multiplicar.

Absurdo

Esses conceitos absurdamente errados, que deveriam matar de vergonha qualquer segundanista de faculdade de Biologia, foram apresentados ao público brasileiro pelo virologista Paolo Zanotto, e depois propagados pela médica Nise Yamaguchi. Os proponentes mostram total ignorância de biologia celular. A HCQ não atua no ribossomo da célula. A azitromicina, como outros antibióticos do mesmo tipo, atua em ribossomos de bactérias, mas não de células do corpo humano. A mitocôndria apresenta, de fato, ribossomos similares aos da uma bactéria, mas está bem protegida dentro da célula. E caso o antibiótico realmente conseguisse fazer estrago nas células humanas, quando usado nas mesmas concentrações em que é usado para matar bactérias, não seria um antibiótico, e sim um veneno potente.

 

Efeitos colaterais

 

Afirmação: Esses remédios são usados há anos para outras doenças, tem gente que usa a vida inteira, e de repente vocês aí estão dizendo que faz mal.

Fora de contexto

Os efeitos colaterais são conhecidos para malária, lúpus e artrite reumatoide, justamente porque os medicamentos passaram por testes clínicos. Sabemos a dose adequada, a frequência de uso e quais efeitos acompanhar. Efeitos comuns incluem arritmia cardíaca, perda de visão, perda de audição e problemas no fígado. Pacientes que fazem uso contínuo são acompanhados, e se houver qualquer alteração crítica, a medicação é trocada. Além disso, a dose utilizada por pacientes autoimunes é menor do que a dose empregada atualmente para COVID-19.

Os efeitos desses remédios para pessoas acometidas por uma doença infecciosa grave nunca foram estudados. O organismo de uma pessoa em estado grave de COVID-19 não é o mesmo de alguém infectado por malária, ou em tratamento para lúpus. A interação com outros medicamentos comuns no tratamento de suporte da COVID-19 nunca foi estudada. Diabéticos, por exemplo, são grupo de risco para COVID-19, e podem estar fazendo uso de metformina. Estudos em camundongos mostraram que administrar CQ com metformina matou 30% dos animais. A administração conjunta com azitromicina nunca foi testada. A azitromicina também provoca arritmia cardíaca, além de diarreia, que por sua vez leva à desidratação. Assim, estaríamos dando dois medicamentos que atacam o coração para pacientes com o coração já fragilizado, uma vez que o próprio vírus também causa arritmia. Estamos empilhando fatores de risco ao combinar essas medicações nesses pacientes.

 

Afirmação: o mundo inteiro está usando e curando pessoas e vocês aqui falando de efeitos colaterais!

Falso

Não há nenhum sinal de que a CQ e HCQ estejam funcionando no resto do mundo, para além de relatos esparsos ou bravatas de médicos e políticos que anunciam curas sem apresentar dados. Mas há relatos bem embasados e estudos que demonstram efeitos colaterais graves, como paradas cardíacas e arritmias. Reportagem do Le Monde, na França, citando autoridades sanitárias do país, contabilizou 56 eventos cardíacos graves, sete paradas cardíacas (quatro mortes), trinta e sete casos de prolongamento de QT (uma falha no ritmo do coração), e de casos de arritmia com síncope. Hospitais na Franca e Suécia já estão parando de usar esses medicamentos por causa destes efeitos colaterais sérios.

 

Pergunta: Vocês preferem deixar morrer do que dar um remédio não testado?

Absurdo

Se o remédio tem grande chance de acelerar a morte, e nenhuma comprovação de benefício, “deixar de dar” não é deixar morrer, é evitar que o paciente seja jogado numa roleta russa. O paciente não está abandonado à própria sorte, está recebendo tratamento e medicamentos de suporte, e a maior parte deles se recupera. Fica a contra-pergunta: você daria um remédio que você não sabe se ajuda, mas que tem uma chance bem concreta de matar o paciente do coração?

 

Afirmação: Se fosse sua mãe ali, morrendo de falta de ar como um peixe fora dágua, vocês iam correr pra dar o remédio!

Falso

Numa situação de desespero como a descrita na pergunta, muitas pessoas talvez até aceitassem óleo de cobra com pó de pirlimpimpim e ovo de pata. O tratamento aí é para a angústia da família, não para a condição do paciente. Mas se, como no caso da HCQ/CQ, não houvesse nenhuma razão para achar que o remédio vai fazer bem, nós, particularmente, não usaríamos. A prioridade é cuidar do doente de modo respeitoso e responsável, não usá-lo como bucha de canhão, só para aliviar o desconforto emocional dos parentes ou dos profissionais de saúde.

 

 

Sobre os protocolos

Afirmação: Não está funcionando porque estão dando para pacientes graves, e o certo é dar no começo da doença.

Falso

Veja, nas respostas anteriores, os possíveis efeitos do remédio. Poderia funcionar na fase grave pela ação imunomodulatória e anti-inflamatória, mas esses efeitos não foram realmente observados e nem estudados contra a COVID-19, são só possibilidades teóricas. Para funcionar na fase inicial, teria que ter ação antiviral e impedir a replicação do vírus. Isso é pouco provável: CQ e HCQ já foram testadas para outras viroses como aids SARS, febre chicungunha, ebola, dengue e influenza. Nunca funcionaram. Para ebola e chicungunha, pioraram a doença, aumentando a replicação do vírus.

De resto, ficar mudando a alegação cada vez que os fatos contradizem o que se deseja provar – uma hora a HCQ é a salvação dos doentes graves; quando isso não funciona, passamos para os moderados; e quando isso não funciona de novo, vamos para quem está nos estágios iniciais da doença – soa mais como aglomeração desesperada de desculpas esfarrapadas do que pesquisa científica séria.

 

Afirmação: O Prevent Senior curou centenas de pessoas com o protocolo de uso precoce, nas fases iniciais.

Improvável

A única fonte dessa informação é o próprio Prevent. Nenhum dado confiável, verificado por partes desinteressadas em fazer marketing para o grupo, foi divulgado até agora, mas seguimos aguardando. Até termos uma publicação científica, tudo o que sabemos é que a rede Prevent Senior também disponibilizou o medicamento para pacientes com suspeita de COVID-19, por atendimento remoto e entrega do remédio em domicílio. Em muitos casos, o diagnóstico nem foi confirmado. Temos aí dois problemas sérios: não sabemos se quem tomou o remédio e melhorou estava realmente doente com COVID-19, e mesmo que estivesse, como a taxa de recuperação da doença, sem tratamento nenhum, é muito alta – 90% se recuperam sem internação – não sabemos se a HCQ contribuiu de fato na melhora desses pacientes.

 

Afirmação: Todos os hospitais estão usando esse protocolo precoce, até o Albert Einstein.

Falso

O hospital Albert Einstein já negou essa afirmação em público. Eles fazem apenas uso em pacientes graves, na UTI, e ainda não divulgaram resultados.

 

Conspirações

 

Afirmação: Ciência não é tudo! A intuição e a experiência pessoal dos médicos é mais importante.

Falso

Médicos são seres humanos, tão vulneráveis a vieses ideológicos e a embarcar em falsas esperanças quanto o restante de nós. O método científico é, exatamente, a ferramenta que temos para reunir uma grande quantidade de experiências de modo lógico e ver, uma vez eliminados os vieses a as ilusões, o que resta. Ele nem sempre funciona como deveria, mas descartá-lo é como optar por um tapete voador só porque aviões, às vezes, caem. E, de qualquer modo, há muitos médicos relatando que a HCQ não deu certo contra a COVID-19 (um exemplo aqui e outros, aqui e aqui).

 

Afirmação: Vocês são esquerdopatas que querem esconder a cura da COVID-19 só para prejudicar o Bolsonaro!

Falso

Abstraindo o fato de que o atual presidente da República não precisa da ajuda de ninguém para se prejudicar, em uma pandemia de escala mundial, não haveria como “esconder a cura”: se algum remédio – HCQ, HCQ+AZ, ou qualquer outro – realmente estivesse já em posição de fazer uma diferença definitiva, estaríamos vendo isso acontecer em alguma parte do mundo. Pelo contrário, mesmo países que, de início, abraçaram a HCQ, como EUA e França, não viram qualquer benefício.

 

Afirmação: Quando provarem que o remédio funciona, vocês vão ficar com a cara no chão.

Falso

Se evidências robustas mostrarem que o medicamento funciona, e que o benefício é maior do que o risco, ficaremos muito felizes. A ciência não é uma disputa entre artigos de fé: reflete justamente a habilidade de mudar de ideia diante da evolução das evidências.

 

Mas eu quero mesmo assim!

 

Afirmação: Conheço pessoas que tomaram e melhoraram por causa da cloroquina.

Insustentável

Você conhece pessoas que tomaram o remédio, e depois se recuperaram da doença. Elas podem ter atribuído a recuperação ao remédio, mas não temos como saber se estão certas. Em casos leves, o remédio pode não ter feito a menor diferença, e a pessoa teria se recuperado de qualquer maneira. Em casos graves, a mesma coisa. E o paciente grave estará recebendo diversos outros medicamentos, como corticoides, anti-inflamatórios e anticoagulantes. Não há razão para achar que, nesse cenário, a cloroquina tenha feito alguma diferença crucial. Pelo contrário, pode até ter atrapalhado. A única maneira de saber se a HCQ e azitromicina tiveram efeito é comparar um grupo que a utilizou com um grupo que não.

Afirmação: se você não quer não tome, eu tomo o que eu quiser.

Parcialmente verdadeiro

O médico pode prescrever e você pode tomar. Isso se chama uso off-label da medicação, o uso para uma finalidade diferente daquela para qual o remédio foi aprovado. Isso é decidido pelo médico. Mas quando se fala em incluir um novo medicamento num guia de procedimentos médicos aprovado pelo governo, ou de uso no SUS, aí já não se trata mais de decisão individual. Estamos falando de produção em massa, gasto de dinheiro público e pressão legal e institucional sobre profissionais de saúde. E estamos falando de dar um remédio que pode ser perigoso, e não trazer benefício nenhum, para milhões de pessoas. O hospital que detectou problemas cardíacos na França e parou de usar tinha capacidade para fazer eletrocardiogramas em todos os pacientes, mais de uma vez ao dia. O Brasil não tem condições de fazer isso na rede pública.

Afirmação: Estamos em guerra, então vale tudo!

Falso

Se estamos em guerra ( e essa é uma metáfora ruim, por vários motivos), o que menos precisamos é de fogo amigo. Um remédio que pode matar pacientes e que não traz benefícios claros não ajuda em nada. Já cometemos esse erro no surto de ebola. Usamos de tudo, não testamos nada direito e, com isso, não ajudamos ninguém e até hoje é impossível afirmar se os remédios testados, no desespero, funcionam ou não contra essa doença.

 

 

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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