Criacionismo e ciência não se misturam

Editorial
9 fev 2019
HMS Beagle
HMS Beagle, navio que levou Charles Darwin em sua viagem ao redor do mundo

O biólogo americano Douglas Futuyma é o autor de “Biologia Evolutiva”, um livro-texto muito usado em cursos universitários. Também é, há décadas, um dos principais defensores do ensino da evolução – sem concessões ao criacionismo – nas aulas de Ciências das escolas públicas dos Estados Unidos. Quando esteve no Brasil, para dar uma palestra aos alunos do Instituto de Biologia da Unicamp, em maio de 2008, sua presença mal foi notada pela mídia. Isso porque a disputa criação-evolução nas escolas era “uma questão muito americana”, e não representava “um problema no Brasil”. Aqui entre nós, Futuyma não era “polêmico”.

Menos de 11 anos depois, as coisas parecem estar mudando, e não para melhor. Talvez reagindo aos ventos dos novos tempos, a mais recente edição católica da Bíblia, publicada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), traz, em sua segunda nota de rodapé – apensada ao versículo que abre o Gênese, “No princípio, Deus criou o céu e a terra” –, o seguinte esclarecimento: “Este belo texto sobre os sete dias da criação não é uma aula de ciências”.

Tamanha obviedade parece escapar a figuras que, hoje, encontram-se no primeiro escalão do Governo Federal, em centros de “pesquisa” encistados em importantes universidades, como a Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo e na liderança de denominações religiosas. São figuras que se esforçam em confundir religião com ciência e articulam para retomar, no Brasil, as batalhas que perderam, de modo humilhante, na América do Norte.

É sempre bom relembrar a história do que se passou por lá: o ensino, em escolas públicas, da “Ciência da Criação” – uma tentativa de apresentar o relato literal do Livro do Gênese, com Adão, Eva, Arca de Noé, etc., como cientificamente defensável – foi declarado inconstitucional, nos EUA, em 1987; e o “Design Inteligente”, versão camuflada da mesma doutrina, teve destino igual, em 2005. 

Em ambos os casos, juízes, depois de ouvir inúmeros depoimentos de especialistas, concluíram que a inclusão do criacionismo no ensino público feria a cláusula constitucional que proíbe o Estado de favorecer doutrinas religiosas. Como casos assim serão tratados no Brasil?

Embora nossa Constituição, em seu Artigo 19, proíba os governos, em todas as esferas, de “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança”, temos precedentes preocupantes:  o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, há pouco tempo referendou o ensino confessional em escolas públicas.

É importante notar que, internacionalmente, o criacionismo de matriz cristã-evangélica é muito bem financiado. Apenas uma das organizações dedicadas a promover a “causa”, A Answers in Genesis, teve, em 2017, uma receita de mais de mais de US$ 36 milhões. O Discovery Institute, grupo criacionista que mantém parceria com a Universidade Presbiteriana Mackenzie no Brasil, teve, em 2016, receita de cerca de US$ 5 milhões.

É com alguma trepidação, portanto, que consideramos a possibilidade de algum político de expressão  local – um vereador ou deputado estadual, por exemplo –, faminto por votos, decidir propor uma lei exigindo que “todos os lados” sejam apresentados em aulas de ciências ou Biologia de sua cidade ou Estado, da lei ser aprovada e do caso chegar às Cortes mais altas.

Na esfera federal, o projeto de Lei apresentado, em 2014, pelo deputado Pastor Marco Feliciano (PL 8099/14), tornando o ensino do criacionismo obrigatório em todo o Brasil,  acabou arquivado no fim do mês passado, mas pode voltar a tramitar se Feliciano, que se reelegeu, assim quiser.

Sobre esse projeto, existem parecer contrário do Conselho Federal de Biologia, manifestação contrária da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e alerta feito pela Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências e pela Associação Brasileira de Ensino de Biologia. O material da SBPC não poderia ser mais claro: “Evolução é ciência, não crença”, diz um trecho; “Criacionismo é crença, não ciência”, diz outro.

A ideia de que faria algum sentido apresentar “todos os lados” da questão da evolução biológica, embora tenha apelo intuitivo – soa, mesmo, democrática! – falha em, pelo menos, três aspectos.

O primeiro é o que aponta a nota da SBPC: criacionismo não é ciência, logo não cabe nas aulas de ciências. O segundo é o de afirmar que, do ponto de vista científico, existe mais de um “lado”: embora alguns aspectos da como a Teoria da Evolução funciona sejam alvo de debate entre cientistas (por exemplo, o papel da epigenética), o quadro geral do processo evolutivo e a importância da seleção natural não estão em jogo. E, mesmo de estivessem, a alternativa seria outra teoria científica, não especulação metafísica.

O terceiro é que, uma vez que explicações metafísicas ou paracientíficas são aceitas, não existe apenas um “outro lado” (o criacionismo cristão), mas inúmeros: mitos e lendas sobre a origem da humanidade abundam em nosso mundo, bem como narrativas mais modernas envolvendo alienígenas, supercomputadores ou viajantes do tempo.

Mesmo entre os criacionistas cristãos, a natureza da narrativa varia: há o criacionismo de Terra plana (que considera literais expressões bíblicas como “águas acima do firmamento” e “quatro cantos da Terra”), o geocêntrico (que encara como verdade literal a parada do Sol no céu descrita no Livro de Josué), e assim por diante. As crianças devem também aprender a “controvérsia” terraplanista?

Vários dos fatos e evidências que embasam a Teoria da Evolução são descritos em outros textos desta revista. Mas, se a confusão de crença religiosa com ciência natural emana não de uma incompreensão da ciência, mas de um senso de identidade – da necessidade de pertencer a uma comunidade com valores e crenças comuns – é importante notar que, desde o século 19, importantes lideranças do protestantismo, do catolicismo e do judaísmo  vêm se manifestando a favor de se respeitar a ciência, incluindo a  evolução, como um domínio próprio. Esses grupos também apontam para os perigos de uma interpretação literal das Escrituras.

Se, em pleno século 20, Henry Morris, fundador do Institute for Creation Research, escrevia que “o conceito de evolução (...) é a grande arma de Satã”, bem antes, na década de 1880, o teólogo protestante americano A.H. Strong afirmava que “aceitamos o princípio da evolução” como “método da inteligência divina”. Ainda no século passado, assembleias de presbiterianos e luteranos, além do Vaticano, chegaram a conclusões semelhantes à de Strong.

Por fim, é sempre bom lembrar as palavras de Agostinho de Hipona, um dos primeiros e mais importantes intelectuais do cristianismo, advertindo, ainda nos tempos do Império Romano, para o ridículo a que se expõe quem usa a Bíblia para tirar conclusões sobre as realidades da natureza:

“É muito vergonhoso, pernicioso e digno de se evitar ao máximo que um cristão fale destes assuntos como estando de acordo com Escrituras cristãs, pois ao ouvi-lo deliberar de tal modo que, como se diz, cometa erros tão absurdos, um infiel mal consegue segurar o riso. E o mal não está em que se zombe de um homem que comete erros, mas que os de fora acreditem que nossos autores afirmem tais coisas. E assim são criticados e rechaçados como ignorantes”.

Esta sentença aparece, não por acaso, no comentário de Agostinho ao Livro do Gênese.

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