A minissérie Chernobyl, do canal de TV por assinatura HBO, dramatiza os eventos que se seguiram ao desastre nuclear de 1986, na então República Socialista Soviética da Ucrânia. Embora tome diversas liberdades com eventos e personagens, a série oferece uma visão aterradora do que pode acontecer quando mentalidade burocrática e interesses políticos se sobrepõem aos fatos. E à ciência.
Parte do imenso poder artístico da série está na construção de cenas simples, silenciosas, mas que significam muito. Uma das mais intensas mostra o engenheiro responsável pela condução do teste nuclear que causou a catástrofe, Anatoly Dyatlov (interpretado pelo ator Paul Ritter) caminhando por um corredor de onde é possível ver fragmentos fumegantes de grafite — prova cabal que de o reator que estava sendo testado explodiu – apenas para desviar os olhos e seguir negando a extensão do desastre, e ainda ameaçar de demissão os funcionários que ousavam insistir que as coisas eram mais graves do que o chefe dizia.
Outra passagem (esta, nada silenciosa), traz o confronto entre a física nuclear bielorrussa Ulana Khomyuk e uma alta autoridade do Partido Comunista. Tentando alertar o burocrata para o perigo causado pela explosão, ela tem sua expertise reduzida a mera “opinião” pelo oficial. Opinião da qual ele – um ex-sapateiro, que nada sabe de ciência – discorda, e que tem o poder de ignorar.
A personagem Ulana Khomyuk é fictícia; segundo os criadores da série, ela encarna e representa diversos cientistas que trabalharam ao lado de Valery Legasov (este um personagem real, interpretado por Jared Harris) para mitigar as consequências do desastre. O confronto com o sapateiro-burocrata, portanto, também é invenção do roteiro. Mas encaixa-se, na estrutura da série, como uma espécie de parábola sobre o problema de fundo por trás tanto do desastre, quanto da resposta inicial das autoridades soviéticas.
Algumas pessoas podem se sentir tentadas a fazer uma leitura rasa, ideológica, do festival de incompetência, negacionismo e carreirismo que desfila em Chernobyl: eram comunistas. A “nomenklatura”. Autoritarismo. Mas transplantar os mesmos vícios para o “board” de uma grande corporação privada ocidental não requer muita imaginação. E, para o governo federal brasileiro, imaginação nenhuma.
Guardadas as devidas proporções entre desastres e momentos históricos, a recente decisão do Ministro da Cidadania, Osmar Terra, de engavetar e proibir a publicação do estudo conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz sobre o consumo de drogas no Brasil equivale a uma mistura do olhar desviado de Dyatlov, recusando-se a enxergar o grafite fumegante diante de seu nariz, com a arrogância do “apparatchik” bielorrusso.
Verdades inconvenientes são descartadas até que voltem chutando a porta – seja sob a forma de envenenamento por radiação e aumento da incidência de câncer, no caso soviético, ou de desperdício de dinheiro público em ações contraproducentes, ineficientes e desnecessárias, na política brasileira de combate ao abuso de drogas.
Terra demonstra total desconhecimento do método científico, ao utilizar evidência anedótica (baseada em observação pessoal e na opinião de quem concorda com ele) como confiável, dizendo que basta caminhar pelas ruas do Rio de Janeiro para saber que existe uma epidemia de drogas no país, diagnóstico que o estudo da Fiocruz contradiz.
Um levantamento estatístico envolve minuciosa coleta e análise de dados. Não basta sair na rua e ter uma impressão pessoal. Para guiar uma política pública de saúde sobre a questão das drogas, é preciso detalhar o número de pessoas atingidas, quais as substâncias ilícitas – e lícitas – mais utilizadas (e abusadas), o perfil dos municípios, os gastos do Sistema Público de Saúde com o tratamento dessas pessoas, as consequências que isso traz para a economia e para a sociedade nos locais mais afetados, etc.
E foi isso que a Fiocruz fez. Infelizmente, conforme publicado em O Globo, a pesquisa mostrou que álcool e maconha são problemas maiores do que o crack, a substância mais citada pelo ministro para justificar sua ideia de “epidemia de drogas”.
A proibição da publicação, além de descabida, impede justamente que o mérito e o método do trabalho sejam avaliados. O debate, essencial para o avanço da ciência, foi impedido pela censura do governo. O resultado não agrada às autoridades federais do turno atual, porque põe em séria dúvida a necessidade e a validade de políticas públicas de apoio a comunidades religiosas que se propõem a tratar usuários de drogas, conforme denunciado pelo site Direto da Ciência.
Ou seja, a ciência contradiz uma ilusão cara ao governo, assim como as provas de incompetência e precariedade de Chernobyl contradiziam a ilusão da eficiência soviética. Se o grafite está fumegando ali no chão, estou errado. Logo, não há grafite no chão.
Mas, ao menos neste momento, o Brasil não é um regime autoritário. E uma democracia não pode existir sem ciência, principalmente na área de saúde pública. É dever do Estado – no caso brasileiro, dever constitucional – prover saúde e tratamento médico para todos os cidadãos. Decidir, de modo responsável, quais tratamentos e medicamentos devem ser utilizados para cumprir este dever exige respeito pelo conhecimento científico.
Do nazismo ao comunismo soviético, é fácil elencar casos de regimes autoritários que ignoraram, censuraram ou distorceram a ciência, apenas para pagar um preço bem alto depois. Nas democracias, há a vantagem de que os atos oficiais de negacionismo científico podem ser contestados abertamente. Mas o potencial para dano também é enorme: basta lembrar as consequências trágicas para a África do Sul dos anos em que o combate à aids no país foi guiado por pseudociência.
A metáfora visual oferecida pelos primeiros episódios de Chernobyl – a nuvem de fumaça radioativa a expandir-se pelos céus da Europa Oriental, pássaros caindo mortos no chão, enquanto as autoridades insistiam em mentir para o povo e para si mesmas, negando que a explosão do reator nuclear houvesse acontecido – é tão chocante quanto instrutiva: os fatos são o que são, não importa o que se sussurre nos gabinetes ou se grite nas praças.