“Um membro da equipe foi substituído por um metamorfo parasita cujo objetivo é eliminar o resto da tripulação antes que todas as tarefas sejam cumpridas. O impostor pode sabotar as instalações, esgueirar-se por respiradouros, enganar e incriminar outros para permanecer entre nós”.
Essa é a premissa básica de Among Us, jogo eletrônico que virou febre no mundo todo em 2020, apesar de ter sido lançado, sem muito alarde, em 2018. Mas que espécie de parasita é o impostor? Como ele pode ter aparecido e se camuflado entre nós? Estarão os tripulantes condenados a eternamente viver com um impostor?
Nesta Questão Nerd vamos conectar os fios, arrumar a luz e fazer uma reunião de emergência para evitar mais um corpo esquartejado.
A inspiração
A premissa e os elementos do jogo provavelmente foram inspirados em um filme dirigido por John Carpenter e no romance de Alan Dean Foster, uma adaptação literária do roteiro do filme (Foster também adaptou como romance os roteiros de “Alien” e de “Guerra nas Estrelas”, entre outros). Ambos foram lançados em 1982 com o nome de “The Thing”.
O filme é um remake de “The Thing from Another World” (1951), que é baseado no conto Who Goes There? escrito por John W. Campbell e publicado em 1938. Existem três versões conhecidas do texto de Campbell: um conto (a versão publicada em 1938), uma novela (publicada em algumas antologias) e um romance, intitulado “Frozen Hell” (“Inferno Gelado”), descoberto em meio aos papéis de Campbell após sua morte, e publicado apenas no ano passado.
No Brasil, o filme que fez mais sucesso foi o dirigido por Carpenter, mas o livro traduzido foi o “Who Goes There?” original de Campbell. Ambos apareceram por aqui com o nome de “O Enigma de Outro Mundo”. Tanto nos livros quanto nos filmes, o enredo gira em torno de uma equipe de pesquisadores norte-americanos na Antártica que encontra A Coisa, uma forma de vida extraterrestre parasita que mata e assimila o organismo hospedeiro. A Coisa toma o lugar do hospedeiro dominado, imitando seu comportamento, voz e funções. Tudo isso para encontrar uma brecha e poder assimilar uma nova vítima sem ser notada. O primeiro contato dos americanos com o alienígena é feito logo no início do filme, quando a equipe imagina salvar um cachorro de um implacável caçador norueguês.
Mal sabiam eles que estavam colocando o inimigo para dentro do canil da base. O disfarce da Coisa é descoberto quando um dos outros cachorros mantidos no canil é assimilado e a equipe vê todo o processo de transformação do alienígena. Mas já era tarde, antes de assimilar outro cachorro, A Coisa já tinha assimilado um dos membros da equipe.
Ainda sobre o filme e dando um pouco mais de spoilers, os exploradores americanos são dominados pela paranoia e pelo conflito quando percebem que não podem mais confiar uns nos outros, pois qualquer um deles pode ser A Coisa. O suspense aumenta quando é preciso cumprir tarefas em locais isolados, como consertar a luz e buscar ferramentas. Quando algum incidente ocorre, como a sabotagem no banco de sangue, todos se reúnem para discutir quem foi o culpado e quem poderia ser o parasita.
Para quem joga Among Us, essa foi a descrição quase perfeita de mais uma partida. A influência do filme no jogo pode inclusive ser vista em uma das animações de assassinato.
Em uma das cenas do filme, A Coisa utiliza uma espécie de tentáculo que sai de sua cabeça-boca para trazer a vítima para mais perto e assim poder assimilá-la. Muito parecido com a imagem acima.
Para responder o que pode ser A Coisa e o impostor, vamos começar analisando os membros da tripulação do jogo, que podem ser astronautas do futuro. Eles são um pouco mais baixos, têm um peso inferior à média dos humanos e têm tipos sanguíneos similares aos da nossa espécie. É possível verificar isso no jogo quando se faz o escaneamento do corpo na MedBay. A única pista que nos leva a crer que são um pouco diferentes de nós é na hora da morte. Aquele osso digno de desenho animado dos anos 80 se parece mais com um fêmur do que com uma coluna vertebral.
Vamos considerar os membros da tripulação como humanoides de um futuro onde a exploração espacial deve favorecer astronautas menores e mais magros, uma vez que uma massa corporal mais compacta tem menor demanda energética e, consequentemente, manter uma tripulação em longas viagens requer menos alimento.
Sabemos que o impostor não é da mesma espécie que os membros da tripulação pela descrição dos desenvolvedores do jogo, reproduzida no começo deste texto. Mas o que seria um metamorfo? E parasitas? Metamorfos são criatura com a habilidades naturais de passar por uma mudança drástica de aparência. Parasitas são organismos que dependem de um outro organismo para sobreviver, dele obtendo alimento e, frequentemente, causando dano.
Vamos então pensar em como deve ser a biologia do impostor e da Coisa, presumindo que são espécies muito similares. Queremos encontrar um bicho como esse aqui na Terra. Ou juntar características de várias espécies existentes, que obedecem à biologia que conhecemos. As características que estamos procurando em animais que podem ser o “impostor” do mundo real são as seguintes:
Capacidade de metamorfose
Habilidade de manusear objetos
Um tipo de membro capaz de se estender e possivelmente ser utilizado para matar
Ter o corpo maleável o suficiente para se esgueirar entre dutos de ventilação
Ter um certo nível de intelecto, capaz de perceber situações de oportunidade para enganar e matar presas racionais
A metamorfose que estamos procurando não é do tipo das lagartas se transformando em borboletas. Queremos algo mais dinâmico. Poderíamos pensar em um camaleão, que modifica sua cor de acordo com o ambiente e usa sua língua para caçar. Porém, camaleões não são capazes de modificar muito sua forma e textura. Não teriam muito sucesso em se disfarçar de tripulantes.
Quem vem lá?
Existe sim um possível candidato que atende diversos dos pontos levantados anteriormente. Polvos! Esses animais incríveis conseguem não só mudar de cor, mas também são capazes de mudar a textura da pele, graças a células chamadas cromatóforos e papilas, respectivamente. Além disso, são extremamente flexíveis, podendo moldar seus corpos de diversas formas e se compactar em locais apertados, como jarros de vidro e, por que não, dutos de ventilação.
Polvos utilizam seus tentáculos não só para caçar alimento, mas também para “andar” em superfícies do fundo do mar, quando alguns dos outros tentáculos estão sendo utilizados para atividades diversas, impedindo que ele se locomova por propulsão. Esse cefalópode também já demonstrou ser extremamente inteligente, e consegue utilizar objetos e ferramentas humanas. Manipular uma faca, uma arma ou quebrar o pescoço de alguém seria moleza.
Mas como então esse polvo impostor poderia ser um parasita e se apossar dos corpos das suas vítimas?
No filme “O Enigma de Outro Mundo”, o cientista Blair faz a autópsia da Coisa em forma de cachorro e consegue isolar uma única célula do parasita e analisá-la. Simulando o comportamento da célula, Blair cria a hipótese de que uma única célula da Coisa é capaz de se aproximar e assimilar uma célula saudável do hospedeiro.
O problema da simulação de Blair é que vemos células do cão sendo devoradas, uma a uma, por uma única célula da Coisa. A simulação nunca mostra que as células da Coisa se dividem para substituir as células caninas, o que faria mais sentido. Portanto, devemos levar em conta que a hipótese de Blair apresentada no filme pode estar errada, ou que foi uma falha do diretor e do roteirista em descrever um pouco melhor a biologia da Coisa.
No livro escrito por Alan Dean Foster, podemos ler o seguinte trecho enquanto Blair fazia a análise das células no microscópio:
"No momento, as duas células estavam unidas por um fino fluxo de protoplasma. O material da célula maior, que era longa e fina, fluía para a célula esférica menor. Ao fazer isso, a célula menor inchou visivelmente, até a parede celular fraturar-se em três lugares. Imediatamente, a célula menor assumiu uma forma achatada como a outra. Nenhuma das células parecia ter perdido qualquer massa."
Agora sim! Notem que as células não foram assimiladas. Na descrição, parece que houve a transferência de material da célula parasita para a célula hospedeira. Poderia ser o material genético da célula.
Temos que buscar um exemplo em que ocorra essa transferência de informação genética entre duas células distintas. E que essa troca genética possa modificar a característica da célula que está recebendo a informação. Isso tudo, sem que ocorra a perda de função da célula parasita original.
Temos um exemplo real disso, que acontece o tempo todo e, de fato, causa um sério problema para os humanos. Estamos falando de bactérias, que fazem isso há alguns bilhões de anos. Elas trocam plasmídeos, que são sequências circulares de DNA que não fazem parte do genoma principal das bactérias, e não são essenciais. Esse material genético pode conferir novas características para as bactérias receptoras, como a resistência a antibióticos. A célula doadora primeiro faz cópias do plasmídeo, aproxima-se de outra célula e depois transfere o material genético para ela. Uma hipótese satisfatória para explicar o impostor de Among Us é a de que ele seria uma espécie de polvo com células parasitas que o tornam capaz de mudar sua cor, textura e que conseguem replicar e transferir seu material genético acessório para as células do hospedeiro, garantindo assim a continuidade do contágio, sem perda de células. Como esse processo leva tempo até atingir todas as células da vítima, isso tem que ser feito na surdina e o novo hospedeiro pode nem perceber que está sendo consumido por dentro.
O mais assustador nesse cenário todo é que podemos concluir algo perturbador em Among Us e no universo de “The Thing”: O impostor estará sempre entre nós!
Uma vez que descobrimos quem são os impostores no jogo e os eliminamos no vácuo ou na lava, em tese estaríamos livre da Coisa, certo? Bem, a história pode não ser tão simples assim. Vamos lembrar que os três mapas do jogo foram liberados em sequência cronológica. O primeiro foi a Nave (The Skeld), depois foi o Quartel General (Mira HQ) e por último o posto avançado no planeta Polus. Imaginando a história do jogo nessa sequência, poderíamos pensar que a nave estava voltando de um planeta onde os tripulantes tiveram o primeiro contato com o impostor, que sobreviveu à viagem e chegou até o QG. Lá dentro, conseguiu se esgueirar para participar de novas missões, partindo para a exploração do planeta Polus. Isso nos faz concluir que, por mais que a tripulação tenha sucesso em encontrar os impostores da rodada, de alguma forma sempre teremos um novo impostor entre nós!
A hipótese do impostor polvo e células com plasmídeos pode explicar isso. A transferência da primeira célula impostora poderia ser feita apenas pelo contato próximo entre os tripulantes com o impostor. Dentro do novo hospedeiro, uma célula transferiria o material genético para outra, bem lentamente. Agora as duas células parasitas passariam o material genético para mais duas, e assim o crescimento exponencial culminaria no domínio completo das células do novo hospedeiro. Isso levaria um tempo, e um tripulante recém-infectado ainda teria controle sobre os movimentos e parcialmente de sua sanidade, mas lentamente sucumbiria ao domínio da Coisa, sem perceber.
Outra maneira de vencer a partida é a tripulação cumprindo todas as tarefas exigidas. O que não elimina o impostor, e por isso ele sempre estará entre nós!
Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, e atual coordenador nacional do Pint of Science no Brasil