O dilema da comunicação de riscos

Artigo
25 abr 2025
Imagem
homem explicando gráfico

 

A cena não é incomum: o profissional de saúde, ao explicar os possíveis efeitos adversos de um medicamento ou de uma vacina, usa termos qualitativos para tranquilizar o paciente. Diz que é algo “raro”, ou “muito raro”, mas que ainda assim “pode acontecer”. O paciente, na ânsia de entender a gravidade da situação, ouve aquela palavra e a traduz para um percentual de risco frequentemente maior do que seria razoável. No fim, ao invés de tranquilidade, surge o medo desproporcional.

O curioso é que essa distorção não reflete apenas a interpretação do paciente: o próprio profissional, muitas vezes, emprega esses termos sem um lastro numérico consistente. Assim, aquilo que a ciência se esforçou para estimar com estudos clínicos – como a incidência real de determinado evento adverso – acaba não chegando de forma clara a quem precisa tomar uma decisão prática.

 

A linguagem qualitativa

A medicina contemporânea se orgulha de empregar probabilidades. Não é à toa: o pensamento probabilístico nos proporcionou a base fundamental para contrastar benefícios e riscos como uma importante ferramenta para embasar decisões clínicas e de gestão em saúde (conforme discutimos neste texto). Mas lá na ponta, quando o paciente pergunta se precisa se preocupar, a resposta frequentemente recai em palavras pouco precisas: “É um evento raro”, “poucos pacientes relatam isso”. Mas o que é “raro”, o que são “poucos”?

Se o paciente testemunhou um caso que o marcou profundamente, essa memória afetiva pode multiplicar a probabilidade percebida. Em estudos que medem como as pessoas interpretam descritores como “raro” ou “comum”, a variabilidade de percepções é imensa. Muitos, ao ouvir “raro”, pensam em números na faixa de 5% a 20%, mesmo que o profissional tenha em mente algo como 0,1%. Quando falamos em “muito raro”, alguns entendem 1%, outros 0,01%.

Esse hiato semântico está bem documentado em pesquisas de comunicação de risco, e reflete tanto a natureza subjetiva das palavras quanto nossa limitada capacidade de estimar probabilidades. Há, na verdade, pelo menos dois fenômenos sobrepostos. Primeiro, a polissemia: “raro” e “comum” não têm fronteiras fixas, e cada indivíduo as preenche com suas próprias referências. Segundo, a heurística cognitiva que superestima certos riscos, especialmente quando há forte componente emocional ou quando o desfecho em questão é muito temido. O resultado é que, sob a aparência de uma conversa simples e “didática”, corre-se o risco de transmitir uma ideia bem distante dos dados estatísticos cuidadosamente obtidos por metodologias rigorosas.

Esse problema não reflete apenas uma curiosidade linguística. Ele influencia decisões que podem afetar a vida do paciente. Pense em alguém que necessita de um medicamento que pode causar um efeito adverso grave, mas raro – da ordem de 0,1% de ocorrência, por exemplo. Se essa pessoa concluir, a partir de uma fala mal calibrada, que a probabilidade é significativamente maior, pode recusar um tratamento necessário (cuja probabilidade de benefício é alta) por um medo desproporcional. No outro extremo, alguém pode subestimar um efeito moderado, mas relativamente frequente, caso o profissional tenha usado uma expressão que soe irrelevante.

Isso pode favorecer a banalização de intervenções desnecessárias ou pouco úteis, com o aumento da incidência de efeitos adversos moderados, desequilibrando a balança de custo-benefício. Em emergências sanitárias isso é ainda mais grave: a falta de precisão pode alimentar, por exemplo, a hesitação vacinal. Afinal, se “raríssimo” foi interpretado como algo não tão raro assim, uma campanha de imunização pode não ter a adesão esperada.

Para o paciente, esse descompasso pode gerar ansiedade, insegurança ou descrença em uma intervenção. Para profissionais de saúde e gestores, pode haver frustração: “Mas eu disse que era raro, por que ele ficou tão assustado?”. Ou, ao contrário: “Avisei que era relativamente comum, mas ele achou que não aconteceria”. Agravando o quadro, sabemos que boa parte dos profissionais de saúde não recebe treinamento formal em comunicação (ou mesmo percepção) de risco. Então, ao dizer “na minha opinião, o risco é baixo”, podem estar mascarando a própria incerteza estatística e depositando no paciente uma tranquilidade que não se baseia em evidências.

 

Por que insistimos?

Uma das justificativas mais recorrentes é: “O paciente não gosta de números”, “o paciente não entenderia porcentagens”. Embora alguns pacientes realmente prefiram explicações simplificadas e possam relatar dificuldade ou incômodo em discutir números, mais difícil ainda é lidar com a ausência deles. O que realmente nenhum paciente e nenhum de nós gosta é da incerteza.

Mas eliminar os números não reduz a incerteza, apenas dificulta comunicá-la com transparência. Quando a incidência de um efeito é dita de forma clara – “acontece com 1 em cada 200 pessoas” –, o entendimento costuma ser melhor do que o genérico “é raro”.  É claro que haverá aqueles que precisarão de analogias ou esquemas visuais, mas isso não significa que devamos suprimir a informação objetiva.

Outra razão é que muitos profissionais não se sentem à vontade para quantificar riscos ou não confiam nos números. De fato, há graus de incerteza legítima. Mesmo em estudos robustos e bem conduzidos, os valores são expressos em intervalos de confiança, e não em medidas exatas. Porém, reconhecer essa incerteza não justifica ater-se unicamente à linguagem qualitativa. É possível dizer: “Estamos estimando algo em torno de 1 ou 2 em cada mil pessoas, considerando alguma variação e dependendo do perfil de cada um”. Isso é transparente e, ainda que não traga certezas, ao menos demarca um intervalo plausível.

Há ainda um fator cultural e hierárquico na comunicação profissional-paciente. Em modelos mais paternalistas, o clínico simplifica ou omite detalhes, na crença de que “só vai confundir” ou “melhor não alarmar”. Nesse processo, a chance de aumentar a preocupação do paciente pela nebulosidade das palavras é ainda maior. Se um indivíduo não recebe informação completa, sobra mais espaço para a construção de interpretações subjetivas.

 

Alcances e limites

Existe um esforço de agências regulatórias para vincular descritores verbais a intervalos numéricos. Determina-se que “raro” vá de 0,01% a 0,1%, “comum” de 1% a 10%, entre outros. Em tese, seria uma forma de padronização. Na prática, as pessoas nem sequer leem as bulas. É preciso repetir essas explicações em cada diálogo clínico, ou no mínimo nos principais pontos que envolvem risco. E cada profissional precisa estar consciente de que “raro”, se não vier acompanhado do valor aproximado, pode ser interpretado de muitas maneiras. A comunicação deve ser propositalmente redundante: associar palavras, números e, quando possível, elementos visuais.

Em vez de falar apenas: “As complicações são incomuns”, ou mesmo “há risco de 0,5% de complicações”, pode-se mostrar um pequeno cartaz ou folheto com 200 bonequinhos, um em vermelho para ilustrar esse 0,5%: “Como você pode ver na figura, as complicações deste procedimento são incomuns, afetando uma em cada 200 pessoas”. Essa visualização evita que a pessoa exagere ou minimize o “0,5%”. Ao mesmo tempo, o texto escrito reforça essa noção. E, se necessário, uma analogia contextual. Tudo isso sem cair numa pretensa exatidão que não existe. A comunicação de risco implica transmitir, também, a incerteza dos intervalos de confiança.

 

Considerações finais

O profissional não precisa se tornar estatístico ou sobrecarregar o paciente com matemática. Uma pergunta como “você quer saber quantas pessoas, em média, são afetadas pelo problema? Posso mostrar um exemplo?” já ajudaria a não deixar expressões probabilísticas verbais à deriva no oceano interpretativo do paciente. Explicar brevemente, quantificar quando possível, usar exemplos e verificar se a pessoa entendeu. Isso já representaria um avanço.

Do contrário, todo o processo de fazer uma pergunta clínica adequada, buscar as melhores evidências disponíveis e individualizá-las ao contexto do paciente por meio da expertise clínica corre o risco de ser sabotado no instante em que a conversa se ancorar em termos altamente vagos. Em última análise, o que está em jogo não é simplesmente a precisão das palavras, mas a própria legitimidade de uma prática em saúde que se apresenta como esclarecedora, participativa e centrada na pessoa. Essa legitimidade depende que a escolha terapêutica nasça de uma concordância genuinamente informada, e não de um acidente semântico que distorce o sentido real das evidências.

 

André Bacchi é professor adjunto de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico e autor dos livros "Desafios Toxicológicos: desvendando os casos de óbitos de celebridades" e "50 Casos Clínicos em Farmacologia" (Sanar), "Porque sim não é resposta!" (EdUFABC), "Tarot Cético: Cartomancia Racional" (Clube de Autores) e “Afinal, o que é Ciência?...e o que não é. (Editora Contexto)

Sua Questão

Envie suas dúvidas, sugestões, críticas, elogios e também perguntas para o "Questionador Questionado" no formulário abaixo:

Ao informar meus dados, eu concordo com a Política de Privacidade.
Digite o texto conforme a imagem

Atendimento à imprensa

11 95142-8998 

11 95142-7899