Uma pessoa com tendências narcisistas costuma se achar o centro do Universo. Já a astrologia alega que a suposta posição de planetas e outros objetos celestiais contra o pano de fundo de estrelas, reunidas em constelações arbitrárias, no momento do nascimento de uma pessoa influenciam sua personalidade, relações e até seu futuro. Não é por acaso, então, que um estudo recente identificou uma ligação entre narcisismo e a crença nesta pseudociência, num achado que reforça o debate em torno de um fenômeno mais abrangente alimentado pela indústria da auto-ajuda, bem-estar e “aperfeiçoamento pessoal”: o narcisismo espiritual.
Publicado no periódico Personality and Individual Differences, o estudo, intitulado “Even the stars think that I am superior: Personality, intelligence and belief in astrology” (“Até as estrelas acham que sou superior: Personalidade, inteligência e crença na astrologia”, em tradução livre), analisou o cruzamento destas características numa amostra de 264 pessoas, com base em um questionário que uniu elementos de quatro testes psicológicos de validade e confiabilidade reconhecidos: um inventário de crença na astrologia; uma escala de personalidade do modelo “Big Five” de traços (abertura a experiências, conscienciosidade, extroversão, amabilidade e neuroticismo); outra que mede a chamada “tríade negra” da personalidade (maquiavelismo, narcisismo e psicopatia); e um teste de inteligência.
Segundo os pesquisadores liderados por Ida Andersson, da Universidade de Lund, na Suécia, análise das respostas revelou que quanto maior a pontuação na escala de narcisismo dos participantes – sendo 87% mulheres entre 25 e 34 anos, que responderam aos questionários de forma anônima pela internet -, maior também era a crença na astrologia, bem como na falsa noção de que essa "arte" é apoiada pela ciência, indicando uma maior resistência a aceitar fatos.
“Esta associação positiva provavelmente se deve à visão de mundo autocentrada que une os dois (narcisismo e astrologia), embora isso ainda deva ser investigado em pesquisas futuras”, escrevem. “Aspectos culturais dos millennials (termo usado para se referir à geração nascida entre 1981 e 1996) podem enfatizar a unicidade dos indivíduos que pode levar a uma visão mais egocêntrica do mundo, e assim relacionada a traços narcisísticos. Além disso, como as previsões astrológicas e os horóscopos tendem a ter um enquadramento positivo, isto reforça os sentimentos de grandiosidade, o que pode atrair mais os narcisistas”.
A análise também indicou que quanto mais alto o nível de inteligência no teste, menor era a crença na astrologia, assim como outra relação positiva entre amabilidade e acreditar na pseudociência. Os autores ressaltam, porém, que a maior parte dos efeitos das relações observadas foi muito pequena, deixando espaço para que os resultados não passem de um erro do tipo 1, isto é, a identificação de falsas relações que na verdade não existem.
Egos inflados
Apesar das limitações, o estudo de Andersson e colegas é mais um ingrediente no crescente debate sobre o fenômeno do narcisismo espiritual, e o quanto ele está relacionado à aceitação e adesão a pseudociências na sociedade moderna, com a astrologia servindo como uma “droga de entrada” a todo um universo de ideias fantasiosas e alegações extraordinárias.
“Embora aderir à astrologia possa parecer algo inocente, é possível que isso facilite o pensamento não crítico e favoreça vieses. Além disso, a crença na astrologia foi correlacionada à crença em outras pseudociências, assim como em teorias da conspiração, o que indica que isto pode não ser de todo inofensivo”, lembram os autores do estudo recente no Personality and Individual Differences.
Vertente do chamado narcisismo comunal – uma tendência de personalidade de conceituação relativamente recente, que se diferencia do narcisismo “convencional”, ou agente, pelo exagero e idealização pelo indivíduo não de suas qualidades pessoais, mas de seu papel e importância para a comunidade: “eu sou a pessoa mais útil daqui”, “a mais confiável” ou “a mais carinhosa” no lugar de “eu sou a pessoa mais inteligente daqui”, “a mais competente” ou a “mais assertiva”, por exemplo -, o narcisismo espiritual se caracteriza por um sentimento de superioridade que, paradoxalmente, pode emergir da adesão a práticas de aperfeiçoamento pessoal e conexão corpo-mente, como meditação, mindfulness, manipulação e conscientização “energética”, orientação espiritual e outras do tipo que muitas vezes têm como preceito para a “iluminação” justamente evitar as “armadilhas do ego”.
Foi o que observaram Roos Vonk e Anouk Visser, pesquisadores da Universidade Radboud, na Holanda, em uma série de estudos envolvendo um total de mais de 3,7 mil pessoas, cujos resultados foram publicados em 2019 no European Journal of Social Psychology. Primeiro, eles criaram uma “escala de superioridade espiritual” baseada em adaptações, para o domínio da espiritualidade, de afirmações da chamada autoestima de contingência, isto é, dependente de metas, em geral autoimpostas, e de diferenciação pessoal, como “aprender inglês” ou “perder peso”. Assim, os pesquisadores holandeses chegaram a uma série de “qualidades” que representariam um sentimento de superioridade no campo espiritual, como “tenho consciência de coisas que as outras pessoas não percebem”, “tenho melhor contato com meus sentidos que outros”, “sei mais sobre o que existe entre o céu e a Terra que a maioria das pessoas”, “graças às minhas experiências e treinamento sou mais observador (ou tenho maior consciência corporal) que os demais” e, por fim, “o mundo seria um lugar melhor se mais pessoas fossem tão conscientes quanto eu sou agora”.
A partir daí, Vonk e Vissser testaram a confiabilidade de sua “escala de superioridade espiritual” e como ela se relaciona a outras variáveis, como a participação ou não em diferentes tipos de práticas de aperfeiçoamento pessoal, conexão corpo-mente e orientação espiritual, e uma escala de narcisismo comunal. De modo geral, a dupla verificou uma maior correlação entre o sentimento de superioridade espiritual e autoestima entre as pessoas engajadas em práticas de desenvolvimento espiritual do que entre as que não participam ou participam apenas ocasionalmente dessas práticas, indicando que este engajamento pode se encaixar na categoria de uma contingência para seu bem-estar individual. E esta correlação foi ainda mais forte quanto maior a tendência de narcisismo comunal do indivíduo.
Diante disso, os pesquisadores questionam se a participação nestas práticas constitui uma real busca por “iluminação” ou é mais um caminho para satisfação de egos inflados, como outras práticas mais “mundanas” de desenvolvimento físico e psicológico. Isto em especial num ambiente cultural que valoriza cada vez mais o “eu” característico das sociedades ocidentais.
“Como previsto, nossa escala de Superioridade Espiritual correlacionou-se com narcisismo de forma mais significativa do que com a autoestima. Esta é a primeira demonstração empírica de interconexão entre os dois, corroborando a noção de narcisismo espiritual”, escrevem no artigo. “Nossos resultados correlacionais obviamente não indicam a direção desta relação. Especulamos que ela funciona em ambos os sentidos. De um lado, a espiritualidade pode ser capturada como uma maneira de inflar o ego, permitindo que a pessoa se veja como muito especial... De modo inverso, programas de desenvolvimento espiritual podem atrair pessoas com forte motivação de aperfeiçoamento pessoal, relacionada à nossa cultura narcísica ocidental. Muitas pessoas atualmente se engajam em sua própria busca por um propósito. Elas não precisam se submeter humildemente à comunidade, a uma filosofia maior, ou Deus, como em religiões tradicionais. Em linha com a atual cultura do ‘eu’, elas desenvolvem sua própria religião. Esta autoimportância, e a extensiva exploração dos próprios pensamentos e sentimentos, pode ser particularmente atraente tanto para narcisistas declarados quanto dissimulados”.
No que concluem:
“A questão é se uma pessoa verdadeiramente iluminada sequer participaria de nossos estudos. Estaria esta pessoa interessada, ou mesmo seria capaz, de responder todas estas perguntas sobre o ‘eu’? Talvez nossos estudos só tenham sido possíveis graças aos participantes cujos egos ainda são grandes o bastante para tanto. E em algum ponto de um caminho espiritual genuíno, esta motivação pode desaparecer. Nas palavras (do mestre budista tibetano Chögyam) Trungpa: ‘a iluminação é o desapontamento último do ego’”.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência