Deixe-me começar contando como consegui a façanha de perder R$ 400 em 30 minutos.
Durante o ano de 2022, um dos meus hobbies favoritos era fazer apostas esportivas em jogos de futebol e, obviamente, como a maioria dos brasileiros, eu tinha a forte crença de que conhecia o mundo da bola. Em muitas ocasiões, acertei. Contudo, nada me marcou mais do que o jogo válido pela fase de grupos da Liga dos Campeões de 2022, entre Atlético de Madrid e Porto.
Como até os 80 minutos não havia saído um único gol, apostei R$ 100 que o jogo terminaria empatado. No entanto, aos 91 minutos, o Atlético de Madrid abriu o placar, o que me trouxe grande desespero. Após cinco minutos, um milagre: o Porto empatou – e comemorei mais do que um título do meu Santos. Mas a felicidade durou pouco. Aos 101 minutos, no último lance da partida, o Atlético marcou mais um, e o placar final foi 2x1.
Resolvi seguir apostando até recuperar meu dinheiro. Terminei o dia com um prejuízo de R$ 400. Após esse vexame, decidi nunca mais entrar em uma "bet" ou jogo de azar – algo que, infelizmente, não consegui cumprir, já que acabei me entretendo com a roleta em outra ocasião, perdendo mais R$ 100.
Essa pequena experiência particular encaixa-se em um dos nove sintomas relacionados ao Transtorno do Jogo: a busca por recuperar perdas (conhecida como "loss-chasing", em inglês), definida como a tendência do jogador de aumentar suas apostas, na tentativa de compensar perdas anteriores.
Posso considerar que tive sorte, pois, ao conseguir me afastar sem grandes dificuldades, não preenchi outros critérios que configurariam um transtorno.
De acordo com o DSM-5-TR, a versão revisada do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, publicada pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) em 2022, a prevalência do Transtorno do Jogo é de aproximadamente 0,2% a 0,3% na população geral dos EUA, com uma variação de 0,1% a 0,7% observada em estudos internacionais. Além disso, a taxa de prevalência ao longo da vida é de cerca de 0,4% a 1,0%, sendo que, entre os homens, fica em aproximadamente 0,6%, enquanto, entre as mulheres, 0,2%.
Com base nisso, pode-se dizer que, muito provavelmente, a maior parte dos apostadores, ao longo da vida, não desenvolverá problemas mais graves com o jogo. Entretanto, isso não significa que a prática é inofensiva.
No último dia 18 de agosto , a Folha de S. Paulo publicou que economistas do Itaú estimam que os apostadores brasileiros perderam, no balanço entre vitórias e derrotas com bets, R$ 23,9 bilhões entre junho de 2023 e o mesmo mês de 2024. Os jogadores teriam desembolsado R$ 68,2 bilhões em apostas e taxas de serviço, recebendo de volta prêmios de R$ 44,3 bilhões.
No mesmo mês de agosto, VEJA Mercado destacou que, em uma teleconferência com analistas do setor, o CEO do Assaí Atacadista, Belmiro Gomes, afirmou que o mercado de apostas esportivas estava impactando a renda dos clientes e reduzindo o volume de compras nos supermercados.
O apostador e seus motivos
A impressão de Gomes foi confirmada em pesquisa publicada em junho de 2024, intitulada “Estudo: O efeito das apostas esportivas no varejo brasileiro”, conduzida pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC) e pela AGP Pesquisas envolvendo 1,3 mil respondentes (cerca de 500 apostadores e 800 não apostadores).
Em relação ao perfil dos apostadores, observou-se que a maioria são homens, residentes da Região Sudeste, pertencentes à classe C e com idade entre 25 e 34 anos. Dos 508 apostadores, 54% afirmaram apostar eventualmente, 25% frequentemente e 21% não apostam mais, sendo que estes foram motivados principalmente por preocupações com o vício em jogos de azar (56%).
Quanto à frequência das apostas, observou-se que 51% dos apostadores fazem apostas ao menos uma vez por semana, sendo que, desses, 13% apostam diariamente.
No que diz respeito às modalidades que mais concentram apostas, o futebol foi a principal, com 77%, seguido pelo cassino (jogos de slots, o famoso “tigrinho”), com 50%.
Perguntou-se aos apostadores se já haviam deixado de comprar algo de que precisavam – ou queriam – para apostar: 23% deles deixaram de comprar roupas, 19% itens de mercado, 19% viagens, 15% refeições fora de casa, 14% produtos de higiene e beleza, 11% cuidados com a saúde/medicações e outros 11% deixaram de pagar contas, como água e luz.
Vale destacar que ao realizar uma estratificação por idade, verificou-se que quanto menor a idade, maiores foram as desistências de compras para apostar.
Outra pesquisa, esta do Instituto Locomotiva, saiu com o título “A Epidemia das Bets”. Foram conduzidas 2.060 entrevistas telefônicas. A pesquisa aponta que 67% dos entrevistados afirmam conhecer pessoas viciadas em apostas esportivas.
Finalmente, ressalta-se que 37% dos apostadores afirmaram que já usaram dinheiro destinado a outras coisas importantes para apostar, e 45% dos entrevistados afirmaram que as apostas esportivas causaram prejuízos financeiros.
Marketing
Embora o estudo conduzido na Espanha não represente diretamente a realidade brasileira, o artigo de Pérez, A., intitulado “The Impact of Gambling Advertising and Marketing on Online Gambling Behavior: An Analysis Based on Spanish Data”, oferece resultados interessantes.
Os autores seguiram duas linhas de investigação: (1) explorar a relação entre o gasto mensal em marketing pela indústria de jogos de azar, o valor apostado online e o número de contas online (ativas e novas) na Espanha; (2) avaliar o impacto das restrições estabelecidas em 2020 na relação entre o marketing e o comportamento de jogo online.
Uma norma adotada naquele ano estabelece condições que as casas de apostas devem seguir para realizar publicidade. Por exemplo, é proibido o patrocínio dessas empresas em camisetas ou outros equipamentos esportivos, bem como promoções para captar novos clientes, algo muito comum no Brasil por meio de “bônus” de boas-vindas.
Considerando toda a série histórica, verificou-se que os gastos com publicidade triplicaram de 2013 a 2020. Além disso, os gastos com bônus (dinheiro investido para promover a participação no jogo ou fidelizar clientes) aumentaram quase sete vezes. Já os gastos com patrocínio se multiplicaram por 13 durante o período de 2013 a 2020, sofrendo uma queda abrupta após as novas regras entrarem em vigor.
A pesquisa determinou que, de modo geral, o investimento em marketing apresentou uma correlação positiva e moderada com o surgimento de novas contas, a quantidade de contas ativas, a quantia dos depósitos e o valor total apostado.
O número de novas contas estava ligado aos gastos com publicidade, bônus e patrocínios. Especificamente, estimou-se que, para cada investimento de 67 euros em patrocínios e 200 euros em bônus e publicidade, uma nova conta era criada.
Os gastos com bônus e patrocínios também impactaram o valor total apostado.
Verificou-se também que a lei de jogos de azar eliminou qualquer associação significativa entre os gastos com patrocínio e afiliação e o comportamento de jogo. A relação entre publicidade e novas contas diminuiu (antes do decreto, o coeficiente de correlação era 0,53; depois passou para 0,41) e sua associação com depósitos e o valor total apostado desapareceu.
Os pesquisadores recomendam que se adote uma perspectiva de saúde pública, especialmente ao considerar variáveis relacionadas ao marketing na abordagem dos problemas de jogos de azar.
Saindo da realidade espanhola e focando no cenário brasileiro, é importante salientar que a literatura nacional sobre o tema é escassa. Nesse contexto, o artigo ‘Em Busca de Mais Excitação: Reflexões Acerca das Apostas Esportivas’ oferece uma discussão interessante. O artigo traz informações relevantes sobre a situação brasileira. O Brasil lidera o ranking mundial com a maior quantidade de acessos a sites de apostas esportivas, totalizando aproximadamente 3,2 bilhões em 2022. No cenário futebolístico, conforme matéria publicada no portal O Globo em abril, com exceção do Vasco e do Cuiabá, todos os demais times das séries A e B são patrocinados por alguma casa de apostas.
Quanto às propagandas, o artigo destaca um comercial estrelado por um jogador de futebol que aparece vivendo uma vida de sucesso e, claro, apostando, num vínculo simbólico entre apostas, poder e status social.
Contudo, acredito que há uma estratégia de divulgação ainda mais vil: a de influenciadores que sugerem que apostas são uma forma de investimento.
É praticamente impossível não ter se deparado com algum youtuber ou outro criador de conteúdo digital patrocinado por uma casa de apostas, mostrando em vídeos como apostar grandes quantias em jogos de azar e declarando ganhos exorbitantes. Até mesmo influenciadores mirins estão promovendo a ideia de que apostar é uma maneira de ganhar dinheiro fácil.
Mas, como já vimos, a verdade é que em 12 meses os apostadores brasileiros perderam, coletivamente, quase R$ 24 bilhões.
Jogo e saúde
De acordo com o DSM-5-TR, o Transtorno do Jogo é caracterizado como um comportamento que atrapalha a vida familiar, pessoal e/ou profissional do apostador. O diagnóstico do transtorno e a especificação de sua gravidade são baseados na apresentação de quatro (ou mais) de uma série de nove sintomas, que incluem mentir para a família sobre o hábito de jogar, a perda de relacionamentos e emprego por causa do jogo e sentir a necessidade de jogar para compensar situações de frustração ou estresse.
Pesquisas nacionais realizadas nos EUA mostraram que indivíduos com Transtorno do Jogo apresentam altas taxas de comorbidade com outros transtornos mentais. Em uma dessas pesquisas, aproximadamente três quartos dos casos de indivíduos com Transtorno do Jogo e outro transtorno mental indicaram que a outra psicopatologia precedeu o Transtorno do Jogo.
Kristensen, J. et al. conduziram, em 2023, uma pesquisa intitulada “Suicidality Among Individuals With Gambling Problems: A Meta-Analytic Literature Review”, que teve como objetivo responder a três questionamentos: (1) Quais são as taxas de prevalência de suicidabilidade (ideação suicida, tentativas de suicídio e suicídios) entre indivíduos com problemas de jogos de azar?; (2) Indivíduos com problemas de jogos de azar têm uma probabilidade diferente de experimentar suicidabilidade em comparação com indivíduos sem esses problemas? Qual é a possível magnitude dessa diferença?; (3) O que as evidências sugerem sobre a causalidade e a direcionalidade entre problemas de jogos de azar e suicidabilidade?
Os autores realizaram uma busca por estudos que abordassem especificamente problemas com jogos de azar; tratassem de ideação suicida, tentativas de suicídio ou suicídio; fossem relatados em qualquer idioma europeu; e apresentassem dados empíricos originais sobre taxas de prevalência ou comparações relacionadas à suicidabilidade entre indivíduos com e sem problemas de jogos de azar. Também foram incluídos resumos e anais de conferências, desde que fornecessem informações suficientes e descobertas empíricas originais.
Foram identificados 107 trabalhos que preencheram os critérios.
As principais fontes de risco de viés estavam associadas à seleção dos participantes, incluindo questões sobre a representatividade da amostra.
Como resultado, após a realização da metanálise e de outros tratamentos estatísticos, observou-se que a ideação suicida (31,6%) e as tentativas de suicídio (13,2%) são comumente relatadas entre indivíduos com problemas de jogos de azar.
Além disso, ao comparar indivíduos com e sem Transtorno do Jogo, verificou-se que aqueles com problemas apresentavam 2,17 vezes mais chances de ideação suicida ao longo da vida e 2,81 vezes mais chances de tentativas de suicídio ao longo da vida. Dois estudos compararam as taxas de suicídio entre esses grupos. Um deles (Karlsson) mostrou que o grupo com transtorno de jogo apresentava 15 vezes mais chances de cometer suicídio. Outro (Pavarin) constatou que essa taxa era 3,3 vezes maior.
Com base nesses achados e em considerações sobre a qualidade dos estudos disponíveis e os riscos de viés, associados a questões como tamanho e composição de cada amostra, os autores concluem que as evidências atuais indicam uma relação complexa entre problemas com jogos de azar e a suicidabilidade.
Os problemas podem atuar tanto como um possível antecedente quanto como consequência da suicidabilidade. Não é possível concluir se o jogo contribui para a suicidabilidade, se a suicidabilidade pode levar ao jogo, ou se há uma terceira causa comum, desconhecida. Os autores ponderam que a conexão exata provavelmente varia de indivíduo para indivíduo.
Lei das Bets e propaganda
A Lei 14.790 de 2023 regula o chamado “mercado de bets” no Brasil, estabelecendo critérios sobre tributação, normas para a exploração desse serviço, além de definir a distribuição da receita arrecadada, fixar sanções e determinar as competências do Ministério da Fazenda na regulamentação, autorização, monitoramento e fiscalização da atividade. Até o momento, o governo federal recebeu 113 solicitações de 108 empresas de apostas que desejam operar no país. Aquelas que não forem aceitas ou que atuem sem estar legalizadas até janeiro de 2025 serão sujeitas a punições que vão de advertência a multas.
A lei ainda estabelece o que pode e o que não pode ser feito em relação à publicidade e propaganda. Por exemplo, a propaganda das apostas deve ser destinada ao público adulto, de modo a não ter crianças e adolescentes como público-alvo; é vedado veicular afirmações infundadas sobre a probabilidade de ganhar ou os possíveis ganhos que os apostadores podem esperar; é vedado apresentar a aposta como algo socialmente atraente ou incluir afirmações de personalidades conhecidas ou de celebridades que sugiram que o jogo contribui para o êxito pessoal ou social; é obrigatório colocar o aviso de classificação indicativa da faixa etária.
Além dessas regras, o CONAR publicou um folder intitulado “Regras para a Publicidade de Apostas”, no qual apresenta seis sugestões a serem seguidas pelas publicidades de casas de apostas.
Uma delas é de que todas as publicidades incluam uma mensagem de alerta padronizada com uma das seguintes frases: "Jogue com responsabilidade"; "Apostar pode levar à perda de dinheiro"; "As chances são de que você está prestes a perder"; "Apostar pode causar dependência".
A maior verdade que se pode dizer sobre o jogo de azar e a aposta esportiva está sintetizada, exatamente, no slogan "as chances são de que você está prestes a perder". O fato de que a maioria dos jogadores perde na maior parte do tempo é o que torna o negócio atraente – para a casa de apostas, claro.
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
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TEIXEIRA, P. Brasileiro perdeu R$23,9 bi com apostas em 12 meses, diz Itaú. 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/08/brasileiro-perdeu-r-239-bi-com-apostas-em-12-meses-diz-itau.shtml.
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