O ancestral comum e o delírio criacionista

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22 jul 2024
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cena da criação, por Gustave Doré

 

O último parágrafo de “A Origem das Espécies” é cientificamente poderoso e poético. Você talvez já o tenha encontrado por aí, mas sempre vale a pena ler de novo:

“Há grandeza nesta visão da vida, com suas diversas capacidades, tendo sido originalmente soprada pelo Criador em algumas formas ou em uma só; e que, enquanto este planeta seguia girando de acordo com a lei fixa da gravidade, de um começo tão simples, formas infinitas, as mais belas e as mais maravilhosas, estiveram, e estão, evoluindo”.

Embora Darwin tenha feito aqui uma referência ao Criador, isso é mais uma licença poética e concessão do que reflexo de crença. “Criador”, aliás, só aparece a partir da segunda edição do livro: na edição original, o verbo “soprar” não tem agente da passiva. Mas quero chamar atenção para a parte que destaquei em itálico, “em uma só”. Com a sua teoria de descendência com modificação (majoritariamente, mas não exclusivamente) por seleção natural, Darwin pôde cogitar que todas as formas que evoluíram e estão evoluindo neste planeta talvez descendam de um único ancestral comum.

De fato, a biologia evolutiva tem demonstrado a ancestralidade comum de toda a vida celular. Evidências disso são, entre outras, o código genético (quase) universal, a maquinaria de síntese de proteínas extremamente similar em todos os ramos da grande Árvore da Vida e o uso de ATP como uma moeda energética comum. É assombroso, mas parece ser verdade: toda a vida atualmente existente no planeta descende de um mesmo ancestral. Ele tem até nome: Last Universal Common Ancestor, ou Último Ancestral Comum Universal. LUCA, para os mais íntimos.

Há várias questões sobre a natureza de LUCA: quando viveu? Que tipo de metabolismo usava? Qual o tamanho de seu genoma? Quantas proteínas codificava? Que tipo de ambiente habitava? Diversos estudos já foram publicados tentando oferecer respostas. O estudo mais recente foi publicado por Edmund Moody e colaboradores no periódico Nature Ecology & Evolution.

O grupo liderado por Moody desenvolveu um método mais preciso do que os anteriores para estimar aproximadamente quando LUCA viveu. A abordagem tradicional utiliza taxas de alterações genéticas e de transferência de genes entre espécies microbianas para criar algo como um “relógio molecular”. Ao analisar árvores genealógicas e alterações em genes conservados – que permanecem semelhantes entre diferentes espécies ao longo do tempo –, os cientistas podem estimar a distância no tempo que separa espécies atuais de seus ancestrais comuns. Moody e sua equipe avançaram a metodologia ao focar em cinco conjuntos de genes "parálogos", ou duplicados, encontrados em várias bactérias e arqueias, sugerindo que a duplicação ocorreu antes que LUCA viesse a dar origem a esses dois grupos de microrganismos. Isso facilita a determinação da idade dos ancestrais comuns.

Para estimar características de LUCA, o grupo primeiro inferiu a relação de parentesco entre 700 microrganismos (metade arqueias, metade bactérias) a partir de 57 genes marcadores. Uma vez desenhada a árvore de parentesco, é possível inferir, com base nas características dos microrganismos atuais, aquelas características que estariam presentes em LUCA. Segundo os autores, “usando genomas procarióticos modernos como dados de treinamento, utilizamos um modelo preditivo para estimar o tamanho do genoma e o número de famílias de proteínas codificadas por LUCA”.

O grupo estima que LUCA viveu entre 4,09 e 4,33 bilhões de anos atrás. Ainda foi possível estimar que LUCA tinha um genoma relativamente grande, codificando cerca de 2.600 proteínas. Quanto ao metabolismo, é provável que se alimentasse de gás hidrogênio e dióxido de carbono. Por fim, LUCA provavelmente tinha algum tipo rudimentar de sistema imune, para lidar com vírus.

Os autores concluem o artigo da seguinte forma:

“Como a evolução prosseguiu desde a origem da vida até as primeiras comunidades na época do LUCA segue uma questão em aberto, mas a idade inferida do LUCA (~4,2 Ga) em comparação com a origem da Terra e da Lua sugere que o processo exigiu um intervalo surpreendentemente curto de tempo geológico”. [Ênfase minha]

E tudo que os criacionistas puderam entender disso foi “um intervalo surpreendentemente curto de tempo”. Por exemplo, o geólogo e advogado Casey Luskin escreveu no site de notícias criacionista Evolution News o seguinte, comentando sobre as implicações do estudo para a vida no Universo:

“O último ponto — a sua conclusão sobre astrobiologia e a existência de vida em outros lugares — pressupõe, é claro, que a vida na Terra se originou naturalmente em primeiro lugar. Também parece pressupor que, nas condições certas, a vida se origina facilmente. Se a vida surgiu cedo e facilmente em múltiplos outros planetas, de acordo com essa maneira naturalista de pensar, não deveria ela também ter surgido múltiplas vezes na Terra? E, no entanto, a ancestralidade comum universal nega que isso seja verdade. À primeira vista, isso é um enigma para o naturalista”.

Bem, na verdade, a vida pode ter se originado múltiplas vezes na Terra, mas essas origens independentes não deixaram descendentes viventes hoje (ou nós não os encontramos). E o conceito de LUCA não nega isso, nem tampouco significa que LUCA era a única forma de vida existente. O LUCA é o ancestral comum mais recente de todas as formas de vida que hoje habitam o planeta, mas de forma alguma isso significa que ele tenha existido em isolamento, sem outras formas de vida ao seu lado. Elas podem muito bem ter existido e provavelmente existiram, mas não deixaram descendentes. Essas formas de vida muito provavelmente eram os parentes de LUCA. Aliás, os autores comentam o seguinte em suas conclusões:

“O resultado é uma imagem de um organismo celular [similar aos procariotos] (...) e que provavelmente existia como um componente de um ecossistema...”. [Ênfase e colchetes meus]

Luskin, por sua vez, finaliza:

“Mas uma origem única da vida terrestre não foi estabelecida por este estudo. O máximo que foi demonstrado é que a vida surgiu cedo na história da Terra. Dadas as dificuldades em torno da origem natural da vida, uma inferência melhor poderia ser considerar essa evidência do aparecimento rápido da vida como uma evidência de que ela NÃO surgiu naturalmente e exigiu design inteligente”.

Luskin pelo menos reconhece a antiguidade da Terra. Isso já é um progresso em relação a muitos criacionistas tradicionais ou defensores do Design Inteligente. Quanto à suposta falha do estudo em provar uma origem única, tal “prova” jamais foi o objetivo do trabalho. Outros estudos, sim, demonstraram a ancestralidade comum universal. Quanto à inferência de Luskin, o que posso dizer? Bem, é permitido sonhar. O aparecimento rápido (lembrem-se, ainda são centenas de milhões de anos!) de vida na Terra pode significar apenas que a vida surgiu rapidamente na Terra. Ou terá ela vindo de outro lugar, como sugere a hipótese controversa da panspermia? Eu não sei. Nem você. Nem Luskin.

João Lucas da Silva é Mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

 

PARA SABER MAIS

Moody, E. R., Álvarez-Carretero, S., Mahendrarajah, T. A., Clark, J. W., Betts, H. C., Dombrowski, N., ... & Donoghue, P. C. (2024). The nature of the last universal common ancestor and its impact on the early Earth system. Nature Ecology & Evolution, 1-13. https://www.nature.com/articles/s41559-024-02461-1

Service, R. (2024). Our last common ancestor lived 4.2 billion years ago—perhaps hundreds of millions of years earlier than thought. Science. https://doi.org/10.1126/science.z2x162s

Luskin, C. (2024). Study finds life’s origin required a surprisingly short interval of geologic time. Evolution News. https://evolutionnews.org/2024/07/study-finds-lifes-origin-required-a-surprisingly-short-interval-of-geologic-time/

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