No mundo dos desenhos animados, é comum ver um avestruz assustado enterrar a cabeça no chão. Atitude que não passa de um mito, e seria uma péssima estratégia de defesa na vida real. E algo semelhante parece acontecer com seres humanos que acreditam em teorias da conspiração. Nestes casos, as pessoas não só não são capazes de identificar suas crenças conspiracionistas como tal, ficando "cegas" para os sinais suspeitos, como continuam a acreditar nelas mesmo quando as reconhecem assim, indica estudo publicado recentemente no periódico científico PLOS One.
Conduzido por Julia P. Prims, professora-visitante do Departamento de Psicologia da Universidade de Illinois em Chicago (UIC), o estudo englobou dois experimentos em que voluntários tiveram que classificar como teorias da conspiração, ou não, resumos de matérias jornalísticas ou afirmações deliberadamente escritas que continham, ou não, as três principais características "canônicas" delas: a de que pessoas poderosas estão trabalhando em conjunto para atingir um objetivo (1); às custas de outras pessoas (2); enquanto tentam manter suas ações e intenções em segredo (3) -, além de relatar seu grau de crença nelas e, em alguns casos, analisá-las posteriormente sob esta definição.
Prims também cronometrou as respostas dos participantes na tarefa inicial de identificação das teorias da conspiração. Segundo ela, isto permitiu inferir os processos cognitivos envolvidos, se o chamado "raciocínio motivado" - pelo qual vieses preexistentes afetam a decisão, com a pessoa buscando argumentos ou informações para apoiar suas crenças, ou ignorando evidências ao contrário -, ou o que ela chamou de "cegueira conspiracionista", segundo a qual, quando apresentada a uma teoria da conspiração na qual acredita, a pessoa tem dificuldade em corretamente identificá-la, por nem considerar que possa ser uma teoria da conspiração.
Assim, sob a hipótese do raciocínio motivado, ao ser apresentada uma teoria da conspiração em que acredita, a pessoa relutaria a apontá-la como tal por achar que sua crença deve ser "racional", e buscaria razões para que não seja vista como uma teoria da conspiração. Como resultado, a pessoa supostamente também levaria mais tempo para classificar - incorretamente - uma teoria da conspiração como verdadeira, do que para identificar acertadamente uma notícia ou informação real. Já sob a hipótese da cegueira conspiracionista, o participante nem consideraria ver sua crença como uma teoria da conspiração, desta forma respondendo rápido - e incorretamente - ao questionamento, sem tentar justificar ou racionalizar sua decisão.
Cegueira conspiracionista
No primeiro experimento, realizado entre 14 e 15 de setembro de 2020 via internet, Prims apresentou a 254 participantes um conjunto de 20 resumos de textos noticiosos ou informativos reais, dos quais dez não continham teorias da conspiração e, os outros dez, pelo menos uma teoria da conspiração que se encaixasse na definição "canônica", selecionados de um estudo piloto prévio também conduzido por ela.
No primeiro grupo, chamado por ela de "artigos da mídia tradicional" ("mainstream articles"), figuravam manchetes como "OMS alerta: não há evidências de que testes de anticorpos mostram imunidade a coronavírus", seguidas de informações como que a OMS afirmou não haver sinais de que contrair e se recuperar de COVID-19 tornaria alguém imune ao vírus, emitindo um alerta ao público sobre o assunto que, esperava, ajudaria a conter a disseminação da doença, ou "EUA e Talibã assinam acordo para pôr fim a 18 anos de guerra no Afeganistão", acrescentando que os EUA e seus aliados da Otan concordaram em retirar suas tropas num prazo de 14 meses, numa tentativa de acabar com um conflito que matou muitos militares e civis, em anúncio feito pelo presidente americano em uma coletiva de imprensa.
Já no outro grupo, dos que Prims chamou de "artigos conspiracionistas", estavam títulos como "COVID-19: a cobertura perfeita para biometria obrigatória", afirmando que empresas farmacêuticas e de tecnologia estavam pressionando pela adoção de identificação biométrica alegando que isso era para monitorar a doença, mas que na verdade seria para outros propósitos, como compartilhar dados de saúde das pessoas sem seu consentimento, ou "Em breve num poste perto de você - 5G e as falsas doenças para encobrir seus efeitos", dizendo que o governo e as empresas de tecnologia estão trabalhando para implantar a tecnologia 5G nos próximos dois anos e que as empresas alegam que a tecnologia é segura, mas estariam abafando informações sobre seus supostos malefícios à saúde, já que "a radiação 5G pode provocar doenças e danificar o DNA, células e órgãos".
Os participantes tiveram então que avaliar o quanto consideravam verdadeiro cada artigo, em uma escala de sete pontos - de totalmente falso a completamente verdadeiro, passando por "nem falso, nem verdadeiro" -, numa medida de sua crença naquelas informações, e decidir se o artigo continha ou não uma teoria da conspiração. Enquanto isso, Prims cronometrava suas respostas.
Desta forma, explica a pesquisadora, se a hipótese do raciocínio motivado fosse verdadeira, os participantes levariam algum tempo racionalizando porquê as coisas em que acreditam "não contam" como teorias da conspiração, e assim deveriam demorar mais categorizando incorretamente os artigos conspiracionistas em que acreditam como artigos mainstream. Por outro lado, se a hipótese da cegueira conspiracionista se confirmar, os participantes tomariam esta decisão rapidamente, se recusando a sequer considerar que acreditam em uma teoria da conspiração.
Em linha com estudos anteriores, os resultados mostraram que quanto mais o participante acreditasse na teoria da conspiração, menor a probabilidade de ele reconhecer que o artigo continha uma teoria da conspiração. Assim, de um modo geral, a crença foi associada a uma menor precisão na identificação dos artigos conspiratórios, e uma maior na dos artigos mainstream.
Acrescentando a variável do tempo de resposta, no entanto, Prims observou que embora por si só ele não fosse capaz de predizer a precisão nas categorizações pelos participantes para ambos tipos de artigos, houve uma interação entre crença e tempo de resposta para os artigos conspiracionistas, de modo que quanto mais a pessoa acreditasse no texto, menos tempo ela levava para decidir se continha uma teoria da conspiração, e menos provável era que ela reconhecesse que o texto de fato era uma teoria da conspiração.
"Este padrão de resultados é condizente com a hipótese da cegueira conspiracionista, sob a qual as pessoas têm dificuldades em reconhecer que suas crenças são teorias da conspiração porque não param para pensar se estas crenças podem ser teorias da conspiração", comenta a pesquisadora no estudo na PLOS One.
Apesar de o primeiro experimento ter apoiado a hipótese da cegueira conspiracionista, Prims admite limitações em seu formato que podem ter afetado os resultados. Ao usar manchetes reais, por exemplo, nem sempre era óbvio que conteriam teorias da conspiração, se os participantes pulassem os resumos. Além disso, permitiu que os participantes tivessem como referência sua própria definição do que constitui uma "teoria da conspiração" na hora de categorizar os artigos.
Diante disso, a pesquisadora decidiu conduzir um segundo experimento, substituindo os resumos noticiosos por pequenas declarações intencionalmente escritas para conter, ou não, os indicativos de se tratarem de teorias da conspiração, também selecionadas a partir de um estudo piloto. Em lugar do resumo noticioso sobre a suposta conspiração envolvendo tecnologia 5G, por exemplo, a declaração trazia simplesmente "empresas de tecnologia estão abafando informações sobre os efeitos negativos para a saúde das redes 5G", ficando na companhia de outras frases curtas - e absurdas - como "o governo dos EUA encenou os pousos na Lua para ganhar vantagem contra a Rússia na Guerra Fria" ou "pesquisadores descobriram a cura do câncer, mas as empresas farmacêuticas estão abafando as informações sobre isso".
Do outro lado, por sua vez, ficaram declarações factuais simples, como "cientistas estão desenvolvendo método para criar órgãos impressos em 3D para pacientes", "John Lennon foi assassinado por um homem em busca de atenção da mídia" ou "empresas de tecnologia estão investindo em novas tecnologias que permitirão automatizar várias tarefas, incluindo atender clientes em lojas e embalar produtos para envio".
Mais uma vez, foram recrutados cerca de 250 participantes, que foram designados aleatoriamente para dois grupos. Um deles, de "tratamento", teria de ler a definição de teoria da conspiração "canônica" utilizada pela pesquisadora em seu estudo, antes de prosseguir com o teste, enquanto outro, não. Ambos grupos foram então apresentados a 20 declarações conspiracionistas ou factuais, dez de cada. Eles recebiam as declarações em ordens aleatórias, cada uma numa página própria, com os participantes do grupo "tratamento" também podendo visualizar a definição de teoria da conspiração sobre a declaração.
Para assegurar que os participantes aplicassem a definição nas declarações, eles também tinham que completar um questionário para cada uma delas contendo as três principais características das teorias da conspiração usadas pela pesquisadora - pessoas poderosas estão trabalhando em conjunto para atingir um objetivo (1) às custas de outras pessoas (2) enquanto tentam manter suas ações e intenções em segredo (3). Os participantes tinham que indicar se achavam se cada uma destas estava presente na declaração, ou uma quarta opção - nenhuma delas - se achassem que a declaração não tinha estas características. Todos participantes do experimento completaram esta tarefa, sendo ou não do grupo "tratamento". Os participantes que não eram deste grupo, porém, não receberam qualquer informação do porquê da tarefa.
Uma vez completado este questionário, os participantes eram então questionados se a declaração era uma teoria da conspiração ou não, enquanto o software cronometrava quanto tempo levaram para tomar esta decisão. Por fim, para medir sua crença, eles tiveram que responder o quão verdadeiras consideravam cada declaração era, novamente em uma escala de sete pontos.
Mais uma vez, relata Prims, o experimento confirmou a dificuldade dos participantes em reconhecerem suas crenças como teorias da conspiração. Isto é, quanto mais verdadeira eles considerassem a declaração conspiracionista, maior a chance de a classificarem erroneamente como factual. Também não houve uma relação entre o tempo de resposta e a precisão em caracterizar corretamente as declarações factuais tanto no grupo que recebeu a definição de teoria da conspiração e o que não, assim como classificar corretamente as declarações conspiracionistas como tais no grupo que recebeu a definição, o "tratamento".
Mas, no grupo que não foi apresentado à definição, houve uma interação significativa com o tempo de resposta que replicou os resultados do primeiro experimento: quanto mais os participantes acreditavam na declaração conspiracionista, menos tempo levavam para decidir se era uma teoria da conspiração e menos provável que a reconhecessem corretamente como tal.
"Em resumo, os resultados replicaram o experimento 1 e de modo geral apoiaram a hipótese da cegueira conspiracionista", avalia a pesquisadora no estudo. "O experimento 2 forneceu apoio adicional à hipótese da cegueira conspiracionista ao demonstrar que, quando as param para considerar se suas crenças são teorias da conspiração, elas podem reconhecê-las como teorias da conspiração. Em outras palavras, parece que a dificuldade dos participantes em reconhecer teorias da conspiração em que creem como teorias da conspiração era causada por falta de reflexão, e não raciocínio motivado. Embora as pessoas possam não perceber que algumas de suas crenças são teorias da conspiração, se elas examinarem criticamente suas crenças e tiverem as ferramentas certas, podem reconhecê-las pelo que são".
O avestruz
O problema é que a capacidade de superar a cegueira conspiracionista não se traduz em uma diminuição na crença nas teorias da conspiração, destaca a pesquisadora. Ela aponta que, no segundo experimento, os participantes relataram seu nível de crença nas declarações depois de responderem se achavam que ela continha uma teoria da conspiração, e muitos deles ainda consideraram como "totalmente verdadeiras" declarações que tinham apontado como contendo uma teoria da conspiração.
"Isto é condizente com descobertas prévias que rotular as crenças das pessoas como teorias da conspiração não reduz a crença autorreportada nestas teorias da conspiração, e contradiz a hipótese do raciocínio motivado, de que as pessoas estariam tentando se distanciar de crenças estigmatizadas", comenta Prims.
A pesquisadora, no entanto, pondera que mesmo que superar a cegueira conspiracionista não diminua da crença na teoria da conspiração, pode ajudar a mudar comportamentos e diminuir sua disseminação, ao constranger a pessoa a não compartilhar algo que sabe ser uma teoria da conspiração.
"Se as pessoas têm consciência de que algumas de suas crenças possam ser teorias da conspiração, elas podem ficar menos propensas a compartilhar estas crenças, e desta forma, para o bem ou para o mal, desacelerar a disseminação de teorias da conspiração", considera.
Por outro lado, se ter acesso a uma definição de teoria da conspiração ajudou os participantes a reconhecer teorias da conspiração independentemente de sua crença nelas, isso também as tornou mais propensas a identificar incorretamente declarações factuais como teorias da conspiração. Este efeito indesejado é mais uma amostra dos desafios enfrentados por estratégias que buscam combater a desinformação, o negacionismo e as teorias da conspiração a elas associados, como a checagem de fatos e a inoculação psicológica.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência