Paradoxo de cancelamento atrapalha combate à desinformação

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22 fev 2024
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As redes sociais há muito tempo são usadas como veículos para espalhar desinformação. A pandemia de COVID-19, no entanto, levou muitas plataformas digitais a darem uma atenção maior para páginas e indivíduos que promovem visões "alternativas" em saúde, incluindo ativistas antivacina e proponentes de tratamentos não comprovados e inúteis contra a doença e outras, com ações como a remoção de conteúdos e até o banimento dos reincidentes.

Paradoxalmente, porém, esta atitude pode ajudar a disseminar e reforçar o discurso dos promotores da chamada "saúde alternativa", aponta Melissa Zimdars, pesquisadora do Departamento de Comunicação e Mídia do Merrimack College, EUA, em artigo publicado recentemente no periódico científico The Journal of the Association for Information Science and Technology (JASIST). Segundo ela, "influenciadores" neste campo usam acusações de "perseguição" como estratégia de marketing para ampliar sua audiência nas redes sociais "convencionais" - como Facebook, Instagram e X (ex-Twitter) - e levar seus seguidores para plataformas limítrofes como o Telegram, Rumble, Parler e outras, onde conteúdo extremista pode circular livremente.

"Os influenciadores de saúde alternativa tendem a usar a 'narrativa do herói perseguido' especificamente como estratégia sob a qual o influenciador revela a 'verdade' de que as 'elites corruptas' estão controlando a sociedade por meio de temas salientes em saúde, como vacinação ou máscaras obrigatórias, a proliferação da tecnologia 5G ou fluoretação da água, entre muitas outras coisas", destaca. "Os influenciadores podem então alegar estar sendo censurados ou vitimizados por estas mesmas 'elites', incluindo as que controlam as plataformas de mídia social convencionais, por falarem ou revelarem a 'verdade' sobre estas questões de saúde, engajando e encorajando seus seguidores a coletivamente defender suas crenças e valores compartilhados".

É o que Zimdars chama de "lavagem de informação", em que o conteúdo que os influenciadores de saúde alternativa veiculam e as reputações e personas que cultivam nas plataformas convencionais, seguindo as políticas de moderação de cada uma delas, são usados como direcionadores para conteúdo extremista e conspiracionista que divulgam em outras redes, sites pessoais ou profissionais, newsletters e outros meios.

"Desta forma, os influenciadores de saúde alternativa conseguem levar suas agendas a domínios populares da cultura online, legitimando seu conteúdo extremista e a si mesmos como fontes confiáveis ou respeitáveis de informação alternativa sobre saúde, em detrimento do ecossistema informacional em geral", diz.

Para combater o problema, a pesquisadora defende uma ação coordenada das principais redes sociais:

"A não ser que as plataformas de mídia social tratem os influenciadores de saúde alternativa (e outros conhecidos e semelhantes maus atores que espalham desinformação) de uma forma mais coordenada e sistêmica - em oposição a cada plataforma jogando um lento, descoordenado e individualizado jogo de acerte a toupeira com estes influenciadores - eles continuarão a operar, lucrar com a disseminação de desinformação em saúde e a desestabilizar nosso ecossistema informacional por meio de suas redes de influência".

 

"Verdades" mentirosas

Zimdars focou seu trabalho em três conhecidos disseminadores de desinformação em saúde nos EUA: o casal Ty e Charlene Bollinger, responsáveis, entre outros, pelas páginas "The Truth About Cancer" ("A Verdade Sobre o Câncer") e "The Truth About Vaccines Docu-Series" ("A Verdade Sobre as Vacinas Docu-Série"), que em maio de 2023 tinham respectivamente mais de 1,1 milhão e 100 mil seguidores no Facebook; e a ex-médica Christiane Northrup, obstetra e ginecologista que abandonou a prática clínica em 1999 para se dedicar à carreira de escritora e influenciadora em saúde alternativa, com aparições em programas de TV de grande audiência nos EUA, como "Oprah", e que no mesmo maio de 2023 contava com mais de 560 mil seguidores da sua página no Facebook e 119 mil no então Twitter, hoje X.

Para tanto, ela colocou em prática uma estratégia de pesquisa que chamou de "deep lurking" ("espreita profunda", em tradução livre), uma observação de longo prazo na qual frequentemente visitava os perfis nas redes sociais e sites, lia os textos, assistia aos vídeos e escutava os podcasts de influenciadores na área de saúde alternativa. Até que, começando em abril de 2021, ela passou a seguir os chamados "Disinformation Dozen" ("Os Doze da Desinformação"), lista de 12 indivíduos que, de acordo com relatório produzido pelo Center for Countering Digital Hate (Centro de Combate ao Ódio Digital, ou CCDH), eram responsáveis por estimados 73% do conteúdo antivacina que circulava no Facebook, na época.

"Desde então, minhas observações consistiram em visitas semanais a suas páginas no Facebook, canais no Telegram e outras plataformas limítrofes de mídia social", conta Zimdars. "Como numa etnografia virtual, mergulhei nos universos de conteúdo dos influenciadores de saúde alternativa de maneira transversal em todos seus formatos de mídia e plataformas sociais, tomando notas e começando uma análise preliminar enquanto continuava minhas observações. Esta é uma atitude típica de pesquisas com observações de longo prazo, pois 'em variados graus não sabemos o que estamos procurando até encontrar'".

E, neste "mergulho", o que a pesquisadora viu foi muita desinformação. Ela observa, por exemplo, que tanto Northrup quanto o casal Bollinger, e os influenciadores de saúde alternativa em geral, produzem muito conteúdo em mídias diversas - textos, áudios e vídeos -, além de compartilharem dezenas de links, memes e material promocional todos os dias, principalmente nas redes mais permissivas. No caso de Northrup, são dois a três posts diários no Facebook, mas dez ou mais no Telegram e em plataformas limítrofes como MeWe e Gab. Com isso, conta ela, seu arquivo de material dos influenciadores atingiu um tamanho considerável, com centenas de capturas de telas de textos e imagens compartilhadas, assim como áudios e vídeos salvos.

O casal Ty e Charlene Bollinger, tão adepto de incluir a palavra "verdade" nos seus perfis e páginas, já usava a internet para divulgar - e vender - desinformação e falsas curas para doenças como o câncer antes da explosão das redes sociais. Assim, eles foram muito bem-sucedidos na estratégia comum dos influenciadores de saúde alternativa de cultivar relações parasociais com seus seguidores, isto é, levá-los das plataformas de mídia social convencionais para suas contas nas plataformas limítrofes, além de sites próprios ou lojas parceiras.

E uma forma muito eficiente de fazer isso, aponta Zimdars, é usar as chamadas "deep stories" - narrativas, muitas vezes em primeira pessoa, que parecem verdadeiras e fazem apelos emocionais sobre temas de destaque, como imigração, aborto, controle de armas e, claro, vacinas. Esses relatos, cita, "convidam seus seguidores a 'se identificarem com os personagens da história, odiar os vilões, entrarem no drama e acabarem compartilhando as conclusões da narrativa sobre valores e conhecimentos em comum".

Tais histórias, porém, em geral não são compartilhadas pelos influenciadores de saúde alternativa diretamente nas redes sociais convencionais, onde arriscariam infringir políticas de conteúdo e serem punidos com a suspensão ou remoção das contas. A pesquisadora conta que os Bollinger, por exemplo, repetidamente promovem suas contas nas plataformas limítrofes, direcionando seus seguidores no Facebook, Twitter e Instagram para elas, com posts que sugerem a necessidade de evitar a suposta "censura" que sofrem. Publicações do tipo: "Sigam-nos no Telegram para ver a história que você não vai ver em lugar nenhum aqui no FB!"; "Informação bomba chegando no Telegram. Venham ver"; ou "Publicando relatos chocantes nos meus canais alternativos. Confiram!".

Com Northrup não é muito diferente, verificou Zimdars. Ela relata que, em abril de 2021, a ex-médica parou de postar vídeos no Facebook e passou a publicar uma mistura de textos vagos e anódinos sobre saúde na rede social, acrescentando propaganda de suas newsletters e livros e encorajando os seguidores a buscar "mais maneiras de se atualizar" em contas nas plataformas limítrofes. Segundo a pesquisadora, este "comedimento" não só faz com que ela cumpra as políticas de conteúdo do Facebook, evitando punições, como mantém a imagem, persona e credibilidade que Northrup construiu junto ao grande público americano antes de aderir a tratamentos pseudocientíficos e teorias conspiratórias sobre vacinas e a pandemia de COVID-19.

Nas redes sem moderação, no entanto, a ex-médica muda totalmente de persona. No Telegram, sua plataforma limítrofe de preferência, ela frequentemente publica teorias da conspiração como que as vacinas são a porta de entrada da escravidão, que os imunizantes contra a COVID-19 são "armas de assassínio em massa" e estão tornando as pessoas "magnéticas".

E o conspiracionismo endossado por ela não é apenas sobre saúde. Zimdars registrou também posts de Northrup afirmando que os pousos das missões Apollo na Lua foram encenados numa conspiração do governo dos EUA, que o Centro de Controle de Doenças americano (CDC) é tocado por demônios e extraterrestres reptilianos, e histórias antissemitas, como a de que famílias judias e a sociedade secreta illuminati ditam os rumos do mundo há mais de 2 mil anos, ao mesmo tempo que controlam um esquema de tráfico de crianças e estão por trás do desenvolvimento e distribuição das vacinas da COVID-19.

 

Ação coordenada

Zimdars argumenta então que os comportamentos e padrões de postagem dos Bollinger e de Northrup nas redes convencionais e nas plataformas limítrofes são uma amostra de como as políticas de conteúdo e, principalmente, sua aplicação pelas grandes empresas de tecnologia são falhas e incapazes de evitar que sejam usadas como trampolim para a disseminação de desinformação em saúde. Segundo ela, ao apontar a ameaça de remoção como uma forma de "censura" e usar a narrativa do "herói perseguido", os influenciadores em saúde alternativa "elevam as apostas" sobre seu conteúdo, alimentando o pensamento conspiracionista que encorajam em seus seguidores e se posicionando como vítimas e "alvos ilegítimos" da "Big Tech", "Big Pharma" e do governo.

Além disso, diz Zimdars, a hesitação em usar a ferramenta da remoção e banimento e as muitas etapas neste processo adotadas pelas plataformas convencionais permite que os disseminadores de desinformação atuem nas redes por um tempo considerável, em que podem se promover e construir a audiência em suas contas nas plataformas limítrofes, monetizar conteúdos e vender produtos. Por fim, quando finalmente chega a remoção das páginas e contas, a punição é enquadrada no contexto das "deep stories" que contam, contribuindo para a crescente desconfiança do público na ciência e explorando o medo que leva as pessoas a buscarem fontes "alternativas" de informação em saúde, realimentando o ciclo.

"Desafios à autoridade de um influenciador alternativo em saúde e a seu conhecimento se torna evidência deste conhecimento, da mesma forma que a evidência contra uma conspiração ou teoria pseudocientífica é frequentemente tomada como evidência positiva sobre ela", destaca a pesquisadora. "Isto alimenta o pensamento conspiracionista e pode unir as pessoas contra o que veem como um 'escalada da tirania' para suprimir ou censurar suas visões de mundo. Aqueles que são ameaçados com a remoção ou banidos das plataformas usam isso como 'medalhas de honra', demonstrando seu compromisso com uma identidade coletiva que está sendo indevidamente atacada".

Para escapar deste ciclo de mentiras, Zimdars defende uma ação integrada e coordenada das redes sociais convencionais. Segundo ela, a remoção das contas é uma "arma contundente" que precisa se usada "muito mais cedo, mais consistentemente e de uma maneira que não permita que os influenciadores em saúde alternativa se beneficiem da perspectiva deste instrumento ser usado".

"O tipo de remoção que precisamos é provavelmente mais ligado ao conceito de 'desplataformização', mas ao invés das plataformas convencionais focarem em empurrar as plataformas limítrofes para as margens do ecossistema de informação, ele também relega os maus atores às plataformas limítrofes às margens deste ecossistema. A prática de remover indivíduos específicos de plataformas específicas deve ser substituída por uma abordagem 'desplataformizante', na qual as plataformas convencionais coletivamente interrompem a capacidade dos influenciadores em saúde alternativa e suas redes de influência de operar como parte do ecossistema (de informação) - uma ameaça à sua própria sobrevivência".

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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