Em muitos momentos dessa minha breve vida, obriguei-me a revisitar algumas crenças que, a priori, considerava como inabaláveis. Essa talvez seja a melhor maneira de introduzir um tema tão espinhoso quanto os ultraprocessados.
Deixando claro, sempre defendi uma alimentação rica em alimentos in natura e minimamente processados (trataremos das definições nas próximas seções). Continuo acreditando que essa é uma das melhores dicas para uma alimentação saudável, mas – sempre tem um “mas” – o estudo publicado no dia 24 de Junho de 2023 e intitulado “Dietary Guidelines Meet NOVA: Developing a Menu for a Healthy Dietary Pattern Using Ultra-processed Foods”, trouxe um novo achado que põe o que eu pensava que sabia a respeito do assunto em xeque.
Antes de nos debruçarmos sobre o artigo em questão, contudo, é necessário entendermos as diferentes categorias de processamento, os estudos sobre alimentos ultraprocessados e, claro, algumas considerações pertinentes.
A primeira é, na verdade, um disclaimer para um seleto grupo de indivíduos que comentou a respeito do artigo sem, ao menos, tê-lo lido na íntegra. Para vocês, deixo um breve parágrafo em caixa alta e em negrito, evitando possíveis distorções e a famosa acusação “VOCÊ ESTÁ FAZENDO O TRABALHO DA BIG FOOD”.
SE POSSÍVEL, SEMPRE OPTE POR UMA ALIMENTAÇÃO BASEADA EM ALIMENTOS IN NATURA E MINIMAMENTE PROCESSADOS AO INVÉS DE ALIMENTOS ULTRAPROCESSADOS. ELES SÃO, EM SUA MAIORIA, MAIS NUTRITIVOS E MENOS CALÓRICOS. ENTRETANTO, NÃO CAIA NO FALSO MANIQUEÍSMO DE ACREDITAR QUE AO CONSUMIR UM CHOCOLATE OU UM PÃO DE QUEIJO – AMBOS DO GRUPO DOS ULTRAPROCESSADOS – VOCÊ ACABOU COM A SUA “DIETA” E APRESENTARÁ ALGUM PROBLEMA DE SAÚDE. Para ler um texto que aborda o tema das dietas de uma forma brilhante, basta clicar aqui.
O sistema NOVA
NOVA é um tipo de classificação de alimentos que leva em consideração o processamento do alimento, ao invés do conteúdo nutricional. É uma ferramenta validada e reconhecida internacionalmente para pesquisas, políticas públicas e ações no campo da nutrição e saúde.
Essencialmente, a classificação NOVA categoriza os alimentos de acordo com os processamentos realizados – seja físico, químico ou biológico – em um determinado insumo, após ser retirado da natureza e antes de ser consumido ou utilizado para a preparação de um prato ou refeição. Métodos culinários utilizados em casa ou em estabelecimentos comerciais para preparar um alimento, como retirar partes não comestíveis, fracionar, cozinhar, temperar e misturar a outros alimentos não são levados em consideração.
Por fim, a NOVA classifica todos os alimentos e todos os produtos alimentícios, incluindo itens culinários presentes em receitas, em quatro grupos:
O primeiro reúne alimentos in natura ou minimamente processados, ou seja, alimentos que ou não sofreram alterações após sair da natureza ou que passaram por processamentos mínimos, caso do polimento de alguns grãos, remoção de partes não comestíveis de determinado alimento ou a pasteurização do leite. Dentro desse grupo, podemos citar as frutas, os ovos, os grãos integrais, as farinhas, entre tantos outros.
A segunda categoria reúne os alimentos considerados “ingredientes”, alimentos que são extraídos da natureza e utilizados ou para temperar e cozinhar alimentos ou para elaborações culinárias. Dentro desse grupo temos óleos, gorduras, açúcar e sal.
A terceira categoria corresponde a produtos fabricados essencialmente com a adição de sal ou açúcar a um alimento in natura ou minimamente processado. A estes damos a nomenclatura de produtos processados, como legumes em conserva, frutas em calda, queijos e pães.
A quarta categoria diz respeito a produtos que passam por muitas etapas de processamento e pelo acréscimo de ingredientes que, em muitos casos, são de uso industrial – caso dos aromatizantes, saborizantes, corantes, entre outros. Aqui temos os famosos ultraprocessados (refrigerantes, biscoitos recheados, entre outros).
Os estudos
KLIEMANN, N. et al. (2023) realizaram um estudo de coorte prospectivo com o intuito de investigar a associação entre a ingestão alimentar de acordo com o grau de processamento dos alimentos e o risco de desenvolvimento de câncer em 25 locais anatômicos, utilizando dados do estudo European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition (EPIC).
O EPIC é um estudo de coorte prospectivo multicêntrico realizado em 23 centros, incluindo hospitais universitários, centros de pesquisa de câncer e outros, abrangendo dez países europeus. O estudo recrutou inicialmente 521.324 participantes entre março de 1991 e julho de 2001. No entanto, de acordo com os critérios de exclusão (diagnóstico de câncer, perda de informações em relação à classificação NOVA, apresentar um consumo incomum em relação ao gasto energético e falta de acesso aos dados dos participantes da Grécia), 71.213 foram excluídos, totalizando uma amostra final de 450.111.
Para a caracterização dos voluntários, os autores utilizaram questionários para investigar o gênero, o nível de atividade física e de educação, o hábito de fumar, o consumo de álcool e outros fatores. A altura e o peso foram medidos em quase todos os centros, com exceção de Oxford, França e Noruega. Nestes, foram utilizadas medidas antropométricas autodeclaradas. A análise final apresentou as seguintes características: 318.686 participantes eram do sexo feminino (70,8%), 47.573 participantes foram diagnosticados com câncer, a média de idade foi de 51 anos e o IMC médio encontrado foi 25,3 Kg/m2
Quanto à alimentação dos voluntários, foram utilizados questionários dietéticos validados e específicos de cada país ou centro para investigar o consumo de alimentos. A maioria dos centros utilizou questionários autoadministrados (não requerem a assistência de um avaliador), enquanto outros optaram por entrevistas com profissionais treinados, questionários dietéticos semiquantitativos, questionários semiquantitativos de frequência alimentar e, até mesmo, diários alimentares de 7 dias.
Para a padronização dos produtos alimentícios no EPIC, foi utilizado o sistema de classificação NOVA. Nele, os alimentos naturais que sofreram alterações mínimas (como refrigeração e pasteurização, sem a adição de sal, açúcar, óleo, gorduras ou outras substâncias alimentícias) foram classificados como não processados ou minimamente processados (NOVA 1), como frutas secas, congeladas e frescas, farinhas, carnes congeladas, leite, café, entre outros. Os ingredientes culinários (NOVA 2) foram definidos como substâncias extraídas diretamente dos alimentos do grupo NOVA 1 ou da natureza, incluindo açúcar, óleo, gordura e sal. Os alimentos processados (NOVA 3) foram definidos como produtos industriais feitos com alimentos dos grupos NOVA 1 e 2, caso dos pães, queijos, cerveja e alimentos enlatados. Por fim, os alimentos inclusos no grupo dos ultraprocessados (NOVA 4) são aqueles com formulações de ingredientes quase exclusivamente industriais, variando dos ingredientes do grupo 2 até aditivos alimentares, tornando-os mais palatáveis e chamativos, como as carnes reconstituídas (salsichas), refrigerantes, sorvetes, pães de forma e comidas prontas para serem consumidas.
Após essa breve contextualização, verificou-se que os participantes presentes no quartil mais elevado para consumo de alimentos ultraprocessados eram mais jovens, mais altos, menos propensos a ter nível educacional superior, mais propensos a ser fisicamente ativos e apresentavam um maior consumo de calorias, sódio, gordura e carboidratos. Além disso, este mesmo grupo apresentou um menor consumo de álcool e uma menor pontuação para a dieta mediterrânea em comparação com os participantes do quartil mais baixo para consumo de ultraprocessados.
Observou-se também que os alimentos minimamente processados (NOVA 1) contribuíram, em média, com 71,5% da dieta diária total em gramas, sendo a França o país que mais contribuiu para esse resultado. Os ingredientes culinários (NOVA 2) contribuíram com uma média de 1,2% para a dieta total em gramas, enquanto os alimentos processados (NOVA 3) contribuíram com 13,6% da dieta total, sendo a Itália o principal contribuinte para a dieta total em gramas nos grupos NOVA 2 e 3. Os alimentos ultraprocessados (NOVA 4) contribuíram com 13,7% para a dieta diária total, com a Noruega sendo o principal país responsável por essa contribuição.
Após realizar ajustes em relação às variáveis sociodemográficas e de estilo de vida, os pesquisadores concluíram que um aumento no consumo de alimentos minimamente processados estava associado a um menor risco de desenvolvimento de todos os tipos de câncer. Além disso, aferiu-se que o consumo de alimentos processados estava associado a um aumento no risco de desenvolvimento de todos os tipos de câncer. Adiante, salienta-se que uma maior ingestão de produtos ultraprocessados, após a correção de Bonferroni (método usado para reduzir o risco de resultados falsos positivos, quando os mesmos dados são submetidos a testes consecutivos), demonstrou uma associação positiva e significativa para os cânceres de cabeça e pescoço.
Outros testes estatísticos foram conduzidos, e também mostraram associação positiva entre o grau de processamento dos alimentos (principalmente nas categorias NOVA 3 e 4) e o risco de alguns tipos de câncer.
Com base nos dados encontrados, os autores formulam a hipótese de que o consumo de ultraprocessados e alimentos processados pode aumentar o risco de desenvolvimento de câncer, devido ao baixo valor nutricional desses alimentos e à propensão que trazem à obesidade. Dietas ricas em alimentos ultraprocessados tendem a ter pior qualidade nutricional, maior densidade calórica e estarem associadas à obesidade – um fator de risco para, ao menos, 13 tipos de câncer.
No caso de dietas ricas de alimentos processados, vê-se um aumento na densidade energética e um maior consumo de bebidas alcoólicas, o que, em parte, explica a associação entre alimentos processados e o risco de câncer – quando as bebidas alcoólicas foram removidas da análise, a associação entre alimento processado e câncer retal, fígado e câncer de seio pós-menopausa não se mostrou significante.
Além disso, foi verificado que o consumo de alimentos processados, mesmo levando em consideração o perfil nutricional e o IMC dos participantes, estava associado a carcinoma esofágico e câncer de cólon.
Os pesquisadores ainda especulam que o consumo de alimentos processados e ultraprocessados pode aumentar o risco de incidência de câncer por conta da exposição a substâncias com propriedades carcinogênicas presentes nas embalagens. Ou, ainda, por conta de aditivos alimentares utilizados na produção desses alimentos.
Por fim, os autores ressaltam os pontos fortes do estudo, como o fato de a análise ter sido realizada em um estudo de coorte prospectivo de larga escala, de longa duração e com um grande número de casos de câncer. Mas reconhecem que a análise apresenta limitações, como, por exemplo, a classificação NOVA ter sido baseada em diários alimentares coletados há mais de 20 anos. Desde aquela época, os alimentos ultraprocessados cresceram substancialmente no mercado. A pesquisa constatou que, na época, os ultraprocessados contribuíam com 32% do consumo energético total. Todavia, nos dias atuais, esse valor poderia representar até 60%. Essa discrepância talvez explique as baixas associações encontradas entre os alimentos ultraprocessados e o risco de câncer em comparação aos meramente processados.
Há alguns pormenores que devem ser destacados. O primeiro, e mais óbvio, é que se trata de um estudo observacional. Apesar de ser um trabalho de altíssima qualidade, ele só consegue traçar uma correlação entre a variável investigada e o desfecho. Para entendermos, de fato, uma possível causalidade entre os alimentos ultraprocessados e o desenvolvimento de algum – ou alguns tipos de – câncer, são necessários estudos com um modelo metodológico mais rigoroso. Além disso, a metodologia empregada não é capaz de eliminar completamente a influência de variáveis de confundimento.
E ainda que os questionários alimentares sejam ferramentas valiosas em pesquisa, tanto no contexto clínico quanto acadêmico, é importante considerar que os voluntários podem omitir informações sobre o consumo alimentar. Isso pode ocorrer tanto porque subestimam a quantidade de determinados alimentos consumidos, quanto para evitar julgamentos relacionados às suas escolhas alimentares.
Em outro estudo, de HALL, K. et al (2019), intitulado “Ultra-Processed Diets Cause Excess Calorie Intake and Weight Gain: An Inpatient Randomized Controlled Trial of Ad Libitum Food Intake”, os pesquisadores realizaram um ensaio clínico randomizado e controlado com 20 voluntários, com o intuito de entender se o consumo de alimentos ultraprocessados poderia afetar o consumo energético. A metodologia empregada consistiu em randomizar os participantes em dois grupos, onde um deles recebeu uma dieta de produtos ultraprocessados e o outro com produtos in natura.
Cada “dieta” durou por duas semanas, foram administrados lanches – disponíveis o dia todo – e 3 refeições diárias que apresentassem o mesmo conteúdo de macronutrientes, calorias, densidade energética, açúcar, sódio e fibras. Após esse primeiro período, os grupos foram submetidos a mais duas semanas de dieta, contudo, recebendo a dieta alternativa. Além disso, destaca-se que os voluntários foram instruídos a consumir ad libitum, ou seja, o quanto quisessem, em um período de 60 minutos.
Como resultado, os autores observaram que os voluntários, quando presentes no grupo dos ultraprocessados, apresentaram um maior consumo energético – quase 508 kcal – em comparação ao grupo controle. Este consumo foi proveniente de um aumento no consumo de carboidratos e gorduras, mas não de proteínas. É importante destacar que, apesar das tentativas de igualar os parâmetros nutricionais das preparações de ambas as dietas, as refeições apresentaram variações substanciais em relação ao açúcar adicionado, fibras insolúveis, gorduras e à razão entre ômega-6 e ômega-3.
A despeito do maior consumo de calorias quando os voluntários recebiam a dieta de ultraprocessados, os participantes não relataram diferenças significativas em relação ao sentimento de prazer ou familiaridade das refeições, sugerindo que a ingestão energética não foi devido à palatabilidade ou familiaridade da dieta ultraprocessada.
Ainda mais interessante, os participantes da dieta ultraprocessada apresentaram uma taxa de consumo (quantidade consumida/minuto) significativamente maior do que aqueles no outro grupo, tanto em termos de calorias/minutos quanto gramas/minuto. Os autores sugerem que esse resultado pode ser decorrente das propriedades sensoriais dos alimentos ultraprocessados – serem mais macios, facilitando o processo de mastigação e deglutição –, o que poderia ocasionar no aumento da taxa de consumo e no atraso dos sinais de saciedade.
Foram realizados exames de sangue nos voluntários, em jejum, no início e nos últimos dias dos períodos de ambas as dietas. As medições obtidas após a dieta ultraprocessada permaneceram, em grande parte, inalteradas quando comparadas ao início da intervenção. Como possível explicação, os autores supõem que os indivíduos tinham, provavelmente, uma alimentação rica em ultraprocessados antes de entrar no estudo.
Entretanto, alguns marcadores distinguiram-se entre as dietas, caso do peptídeo YY (PYY), hormônio de supressão do apetite que é secretado após as refeições, proporcional à quantidade de calorias ingeridas e que permaneceu elevado durante o período da dieta minimamente processada. E da grelina, hormônio da fome envolvido na regulação de curto prazo do balanço energético e que aumenta durante os períodos de jejum. Ela permaneceu reduzida durante o período da dieta minimamente processada.
Os autores concluem que os dados sugerem que a eliminação dos alimentos ultraprocessados da dieta pode reduzir o consumo calórico e resultar na perda de peso; o cenário diametralmente oposto também é possível, uma dieta com uma maior proporção de alimentos ultraprocessados pode aumentar o consumo calórico e, consequentemente, ocasionará ganho de peso.
Os pesquisadores ainda ressaltam que não está claro se a reformulação de alimentos ultraprocessados poderia eliminar seus efeitos prejudiciais, preservando palatabilidade e conveniência. Até que tais produtos estejam reformulados e amplamente disponíveis, limitar o consumo de alimentos dessa categoria pode ser uma estratégia eficaz para a prevenção e tratamento da obesidade. Contudo, recomendam que políticas que desencorajam o consumo de alimentos ultraprocessados devem levar em consideração o tempo, habilidade, custo e esforço necessários para preparar refeições a partir de alimentos minimamente processados, visto que esses recursos não são tão acessíveis para indivíduos de condições socioeconômicas menos favoráveis.
O estudo tem limitações claras, como o baixo número de voluntários, a escolha por não realizar um wash-out (período entre os tratamentos, com o intuito de evitar observações errôneas decorrentes da primeira intervenção) entre as dietas e, claro, a dificuldade de generalizar os resultados obtidos em um ambiente controlado, com refeições e lanches gratuitos, com as condições da vida “normais”.
Vale também destacar os apontamentos feitos pelo editor do American Council on Science and Health, Chuck Dinerstein, em seu artigo a respeito do estudo – recomendo a leitura na íntegra.
Realizando uma síntese, Dinerstein sugere:
“(...) Acredito, na verdade, que a dieta ultraprocessada poderia alterar a saciedade – no caso, o sentimento de sentir-se satisfeito. Visto que dentre os achados encontrados, temos que os alimentos ultraprocessados apresentavam uma maior densidade energética (80% maior) – a diferença só diminuiu em relação às bebidas, contudo, estas têm um baixo efeito de saciedade. Além disso, os participantes da dieta ultraprocessada consumiram os alimentos mais rapidamente; e, por último, a dieta minimamente processada aumentou o sinal de saciedade (PYY) e diminuiu o sinal da fome (grelina).
(...)
“Embora os sinais de saciedade interajam diretamente com o cérebro, eles são profundamente influenciados pelo ambiente de informações em que estamos inseridos. Esse ambiente inclui a cultura alimentar, situação social e os níveis de estresse. Por isso, em muitos momentos, os sinais ambientais podem sobrepor todos os sinais de saciedade – a famosa ‘hora da sobremesa!’ é um episódio que muitos já devem ter experienciado.
(...)
“A pesquisa de Hall demonstrou claramente que uma dieta rica em alimentos ultraprocessados resulta em ganho de peso. Todavia, equalizar os nutrientes e as calorias pode ter sido em vão. Há uma vasta literatura que afirma que uma dieta rica de alimentos ultraprocessados é mais densa caloricamente e consumida mais rapidamente, dois fatores que, quando combinados, interferem drasticamente no sinal de saciedade. Em outras palavras, não existe um único culpado nutricional e nem um tipo específico de processamento que seja a raiz da epidemia de obesidade.”
No material suplementar do estudo (você pode acessar aqui), somos apresentados às refeições e lanches proporcionados para os participantes. Como exemplo, temos o café da manhã do primeiro dia.
Os voluntários da dieta ultraprocessada receberam uma tigela de sucrilhos sabor mel e nozes, dois copos de leite integral com fibras, um muffin de mirtilo e um pouco de margarina. Os voluntários da dieta minimamente processada receberam uma tigela de iogurte grego com morangos, bananas, nozes com azeite e sal e fatias de maçã com limão.
Conceito
Após essas considerações, temos a prova de conceito (uma maneira de falsear uma hipótese) realizada por HESS, J. et al. (2023). Os autores tinham como objetivo montar uma dieta que estivesse, ao mesmo tempo, de acordo com as Diretrizes Nutricionais para Americanos (DGA) de 2020 e em que mais de 80% das calorias fossem provenientes de alimentos ultraprocessados, definidos pelo sistema NOVA. Tendo isso em mente, elaboraram menus diferentes de 2.000 kcal para sete dias da semana, garantindo as quantidades necessárias da maior parte dos macros e micronutrientes, com exceção para o sódio e o açúcar – imaginou-se que, com a ênfase em ultraprocessados, ambas as substâncias excederiam as recomendações nutricionais.
Devido à variabilidade de interpretações possíveis tanto para a classificação NOVA quanto para os alimentos que estariam em conformidade com as diretrizes nutricionais da DGA, os autores elaboraram uma lista de potenciais alimentos que poderiam ser incluídos nos cardápios. As listas foram enviadas para serem avaliadas, independentemente, por dois especialistas em classificação NOVA e dois em DGA - caso houvesse empate se um determinado alimento estaria em mais de uma categoria, um terceiro profissional daria o voto de minerva.
O menu final apresentou um valor energético de 2.025 kcal por dia, onde 54% das calorias eram provenientes de carboidratos (recomendação de 45%a 65% das calorias totais), 26% de gorduras (recomendação de 20%a 35% das calorias totais) e 22% de proteínas (recomendação de 10%a 35% das calorias). Além disso, a dieta apresentou um valor aproximado de 7% das calorias totais provenientes das gorduras saturadas (recomendação, menos de 10%), 5% para açúcares adicionados (recomendação, menos de10%) e 37 gramas de fibras.
Com relação aos micronutrientes, a DGA de 2020 ressalta quatro nutrientes que são considerados preocupantes (cálcio, fibras, potássio e vitamina D) para a população americana. A dieta proposta conseguiu suprir três destes, as fibras mencionadas anteriormente, o cálcio (1558 mg/dia) e o potássio (3948 mg/dia), entretanto, faltaram 203 UI de vitamina D para atingir a recomendação diária (600UI). Além disso, o menu proposto apresentou uma menor concentração de Vitamina E (11,76 mg) e colina (351 mg) em relação às recomendações diárias 15 mg e 425 a 550 mg, respectivamente.
O conteúdo de sódio atingiu uma concentração de 4569 mg, excedendo a recomendação diária (2300 mg) por 2269 mg. Ou seja, quase o dobro da quantidade recomendada - obviamente, um ponto preocupante.
Para averiguar a qualidade da dieta, os autores utilizaram o Healthy Eating Index de 2015 (HEI-2015), uma ferramenta de mensuração de qualidade dietética, baseada na densidade (quantidade de nutriente por 1.000 kcal de alimento) ao invés de quantidades absolutas.
Após a análise, foi verificado que o menu proposto alcançou 86 pontos de 100, o que dá nota B – a nota só não foi maior devido à concentração excessiva de sódio e o baixo conteúdo de grãos integrais –, mas não atinge o critério de “excelência” proposto pela DGA.
Contudo, a pontuação obtida mostrou-se sensivelmente superior à observada pela dieta americana padrão (59 pontos). Isso mostra como é complicado categorizar os alimentos de acordo com o seu grau de processamento e impactos na saúde. Além disso, os resultados encontrados mostram que a classificação NOVA, por não observar o teor nutricional e nem o grupo alimentar, não é útil para determinar a qualidade de um alimento individual ou de padrões dietéticos.
Com base nisso, os autores sugerem que a relação entre os alimentos ultraprocessados e o desenvolvimento de doenças crônicas deve ocorrer por conta de outros fatores, não pelos níveis de processamento.
Entretanto, os mesmos reconhecem que há uma vasta literatura de estudos de corte transversal que, mesmo sendo de diferentes países, apresentam resultados semelhantes. No caso, a redução de alimentos ultraprocessados pode melhorar a qualidade da dieta, diminuir a ingestão de açúcar e, consequentemente, o peso corporal. No entanto, destacam que algumas asserções proferidas na revisão realizada por Juul et al., que observou uma associação positiva entre o consumo de alimentos ultraprocessados e o aumento do risco de doenças cardiovasculares, não condizem com os resultados obtidos no estudo atual.
Segundo Juul et al. “os alimentos ultraprocessados trazem nutrientes e ingredientes de baixa qualidade para a dieta e, consequentemente, substituem alimentos integrais e saudáveis, como frutas e vegetais”. A discordância se dá pelo fato de que, dentro do grupo dos alimentos ultraprocessados, também existem alimentos ricos em nutrientes, e que uma dieta em que 90% as calorias provêm de alimentos ultraprocessados também pode ser considerada de qualidade moderada para alta.
Os autores concluem que, embora o cardápio hipotético baseado em ultraprocessados não tenha sido testado em uma população humana para verificar possíveis impactos na saúde, os resultados mostram que os ultraprocessados – conforme designados pelo sistema NOVA – não devem ser considerados, em si, como automaticamente prejudiciais à saúde.
Entre as várias limitações do estudo, a mais evidente é que o trabalho gera um modelo teórico, o que torna impossível determinar se as alegações feitas pelos pesquisadores se concretizariam na prática. Como eles mesmos apontam, “não sabemos quais respostas fisiológicas essa dieta ocasionaria em humanos, além disso, existe uma necessidade de confirmar se o cardápio criado provocaria respostas semelhantes quando comparado a outros padrões dietéticos com altas pontuações no HEI-2015”. Vale lembrar que os alimentos inseridos no cardápio não são, necessariamente, os mais consumidos dentre os alimentos ultraprocessados, podendo ocorrer variações segundo condições sociais, econômicas e nutricionais.
Finalmente, salienta-se que alguns autores apresentam conflitos de interesse. Caso da Joanne L. Slavin, consultora da Simply Good Foods (empresa dona das marcas Quest e Atkins), da Quality Carbohydrates Coalition (coalizão de oito investidores da indústria alimentícia) e da Sustainable Nutrition Scientific Board (grupo de pesquisadores independentes engajados na investigação da importância de uma nutrição sustentável e nas soluções para as necessidades da Humanidade em 2050). Além disso, Slavin recebeu financiamento dos Institutos Nacionais de Saúde, Taiyo, Barilla Foods e do USDA nos últimos 12 meses.
Lembremos que conflito de interesse não significa que o estudo é ruim e os achados devem ser desconsiderados, só aponta a possibilidade dos autores alavancarem os resultados obtidos e minimizarem/ocultarem evidências contrárias.
Qual o problema?
Alimentos ultraprocessados apresentam, em geral, um perfil nutricional pobre e, ao mesmo tempo, um excesso de açúcar, gordura saturada e sal – três compostos conhecidos por realçar o sabor de um alimento, tornando-o mais palatável e calórico.
Como descrito no excelentíssimo artigo “Como o que comemos afeta a fome?” de autoria da Alicia Kowaltowski para a RQC, a adição de dois dos três ingredientes supracitados cria um alimento hiperpalatável, ou seja, que estimula a sensação de prazer e atiça o cérebro para comer mais.
Entretanto – e aqui está minha crítica ao sistema NOVA –, a hiperpalatabilidade não é uma característica exclusiva dos produtos ultraprocessados e, tampouco, decorrente do processamento, mas dos ingredientes inseridos ao longo do processo. Em princípio, o número de vezes que um insumo é transformado antes de virar comida não tem nenhuma relação lógica direta com sua qualidade final. Uma planta como a mandioca-brava, consumida in natura, com zero etapas de processamento, é mais perigosa para a saúde do que um pacote de salgadinhos “sabor isopor”.
Isso aponta para uma possível fragilidade do sistema de classificação, dado que, dentro do grupo “ultraprocessados”, encontramos produtos com diferentes densidades nutricionais, mas que, segundo o senso-comum criado em torno da categoria, devem ser evitados com a mesma veemência. Não parece razoável agrupar, por exemplo, um iogurte proteico e um macarrão instantâneo na mesma categoria simplesmente porque ambos passaram por diversas fases de processamento e receberam aditivos alimentares (corantes, saborizantes, entre outros). Em minha opinião, isso aparenta ser uma extensão da falácia de apelo ao natural, agora com um toque de quimiofobia.
Apesar das minhas críticas, reitero que uma dieta variada, com ênfase em alimentos in natura e minimamente processados, continua sendo a opção mais saudável para todas as pessoas. Entretanto, ao invés de seguir a regra de ouro do Guia Alimentar Para a População Brasileira “Prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados.”, proponho uma abordagem mais realista. “Se possível, opte por alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias em vez de alimentos ultraprocessados. No entanto, se desejar consumi-los, faça-o com moderação.”
Mauro Proença é nutricionista
Referências
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KLIEMANN, N. et al. Food processing and cancer risk in Europe: resultes from the prospective EPIC cohort study. Lancet Planet Health. 2023 Mar;7(3):e219-e232.Disponível em: <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/36889863/>.
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