Não posso comprovar, mas acredito que uma força cósmica tenta impedir a conclusão deste artigo. Tenho trabalhado nele por quatro meses e, incrivelmente, sempre surge algum assunto mais urgente. Recentemente, foram o colostro, a OMS e o aspartame.
Porém, quis o destino que o terminasse, quase que em sincronia com a publicação recente de outros textos que exploram – de maneira muito mais brilhante do que a minha –, a temática das vibrações quânticas. Por exemplo, “O lado energético da homeopatia”, ou, “A armadilha muito cara da medicina vibracional” e, também, “Mesas quânticas dependem de fé, não ciência”. Mas devo ressaltar que o motivo principal para a elaboração deste texto foi o ressurgimento de uma personagem que abordei no artigo sobre nutrição ortomolecular – o famigerado Dr. X.
Desta vez, nosso personagem não aparece como ator principal, mas como um coadjuvante na pantomima criada por outro algoz da ciência, o Dr. Y, criador do método que descreveremos mais adiante.
Antes de adentrarmos neste universo psicodélico, destaco que todas as informações abaixo foram extraídas do site da empresa que, além de vender suplementos e florais “vibracionais”, oferece um programa de pós-graduação para profissionais da saúde e promove eventos na mesma área.
Para ficar claro: 99% das proposições utilizadas pelo método em questão não passam de pseudociência camuflada por conceitos que, superficialmente, aparentam ser científicos. Como um renomado autor já me aconselhou: “Quando tratamos de saúde, é necessário frisar, logo no início do texto, que a terapia/medicamento/suplemento pode ser prejudicial para alguém desavisado que não lerá o artigo na íntegra”.
O criador
A fim de compreender melhor o homem por trás da terapia, obriguei-me a assistir uma entrevista que durou quase uma hora, disponível no YouTube da empresa que comercializa a técnica.
Y, criador do método ortobiomolecular, formou-se em engenharia civil. Por sempre ter interesse na área da saúde, decidiu adentrar nesse novo campo de estudo. Concluiu cursos de terapia ortomolecular – uma pseudociência de que já tratamos aqui –, medicina biomolecular e radicais livres, uma pós-graduação em Nutrição e Qualidade de Vida. Além disso, realizou cursos de especialização no Instituto de Metodologia Quântica.
A entrevista transborda falácias lógicas, equívocos e incoerências científicas. Entre tantas pérolas, temos algumas afirmações recorrentes – e errôneas – em meio à enxurrada de pseudociência. Por exemplo: “a medicina normal só se preocupa com as consequências, a doença é uma consequência, enquanto nós, por outro lado, vamos na raiz do desenvolvimento da doença". Ou ainda: “todo processo de gravação está baseado no ímã, a molécula de água é um ímã, o corpo humano é constituído de 70% de água, a gente via que muitas coisas podiam ser associadas a isso, tanto na descoberta dos problemas que a pessoa desenvolve quanto no tratamento, por isso o método quantumbio não visa tratar a doença em si, mas sim fazer com que o organismo da pessoa consiga reagir e promover uma coisa chamada autocura”.
Alegações dessa natureza podem prejudicar muitas pessoas. Alguém pouco versado em ciência ou saúde pode dar ouvidos a essas afirmações e decidir desistir/não procurar um tratamento convencional – e respaldado cientificamente – para um determinado problema de saúde, e acreditar de fato que seu corpo é uma fita de videocassete que pode ser regravada.
Numa nota de rodapé em letras miúdas, perdida numa das páginas do site labiríntico, o visitante mais atento lê o seguinte: “Salienta-se que a terapia baseada em Biorressonância é considerada controvertida e não é reconhecida pela medicina tradicional, isso também se aplica aos produtos comercializados. As informações sobre doenças possuem conteúdo meramente informativo e não têm a intenção de substituir a avaliação e tratamento de um médico ou profissional de saúde. As informações nutricionais também são meramente informativas e não constituem ou substituem a avaliação de um profissional de nutrição. Os processos, técnicas e produtos não se tratam de medicamentos, drogas ou insumos farmacêuticos”.
O Método
O site que promove o método e vende os produtos correlatos é um pouco instável, ou apresenta links inválidos em algumas de suas páginas. Às vezes, por exemplo, a página que contém “ebooks” em formato pdf que explicam a vida do autor, o método ortobiomolecular e dão uma introdução à biorressonância parece sair do ar – o mesmo acontecendo com a página que promove os cursos de pós-graduação (lato sensu, imagina-se) ligados à prática.
Felizmente, tive a sorte de realizar o download de um desses ebooks. No caso, “Método Quantumbio: Tudo o que você precisa saber”. Neste, os autores detalham os conceitos utilizados na criação da Terapia Ortobiomolecular, indicam para quais distúrbios é recomendada como tratamento complementar, descrevem os exames que devem ser solicitados e, claro, disseminam depoimentos de profissionais da área da saúde e de pacientes.
Trata-se mais de um extenso material de marketing do que de ciência legítima. A estratégia é apresentar uma terapêutica supostamente revolucionária no campo da saúde com uma linguagem aparentemente científica, repleta de experiências anedóticas que “comprovariam” eficácia.
Apesar de resultar em uma conclusão semelhante, essa opção resumida e simplista não aborda os aspectos problemáticos da prática. AVISO: As alegações contidas nos próximos parágrafos foram extraídas do ebook e, em sua maioria, têm caráter pseudocientífico (alguém realmente acha que dá para levar a sério a ideia de que haveria “fatores comportamentais relacionados aos tipos sanguíneos”?).
A terapia, então, que os próprios criadores reconhecem ser “controvertida” e desprovida de mérito científico, é baseada no Hadô (ondas vibracionais), nos conceitos da biorresonância (método de análise que permite a leitura da frequência eletromagnética a nível celular), nos fatores comportamentais relacionados aos tipos sanguíneos e da poluição da modernidade e nas noções ortomoleculares.
De modo bem resumido, alega-se que uma consulta com um profissional ortobiomolecular, da qual faz parte o uso de um aparelho supostamente capaz (graças à “física quântica”) de captar “ondas eletromagnéticas” emitidas pelos órgãos e sistemas do corpo do paciente, bem como por estressores ambientais, detectando, além de “fatores emocionais e energéticos em desarmonia”, frequências de metais tóxicos, parasitas, energias desarmônicas e intolerâncias, permitindo definir uma conduta terapêutica de três partes.
Essas partes são: desintoxicação (com a eliminação das “frequências” de metais tóxicos e parasitas); mudança de dieta, com uso de suplementos; e ainda mais suplementos, agora para “harmonizar a função hormonal, auxiliando na reposição das funções vitais do cérebro e minimizando problemas de ansiedade, depressão, problemas de pele de fundo emocional, unhas frágeis, quedas excessivas de cabelo e auxilia a oxigenação corporal”.
Em outras palavras, caso você sinta uma dor de cabeça, um mal-estar, tenha micose ou seja diagnosticado com um problema hormonal, comprar suplementos é a solução!
Brincadeiras à parte, acredito que os leitores assíduos da RQC conseguiram identificar alguns sinais de alerta muito comuns nesse tipo de discurso, como por exemplo, “a bala de prata para todos os males humanos”, a noção de “desintoxicação de toxinas e metais tóxicos” ou, ainda a usurpação e utilização errônea de termos da física quântica.
A marca vende suplementos e florais vibracionais e, ainda mais problemático, um curso de pós-graduação direcionado aos profissionais da área de saúde.
Suplementos e florais quânticos?
Antes que os nutricionistas funcionais me acusem de heresia, deixo claro que existem, de fato, alguns suplementos nutricionais que funcionam. Pessoas com acesso deficiente a certos nutrientes, principalmente, tendem a se beneficiar. O tópico dos suplementos alimentares, por si só, merece uma abordagem isolada, visto que dependendo da substância, do público-alvo e do efeito investigado, um suplemento pode aparentar funcionar em estudos clínicos menos rigorosos, o que, infelizmente, gera uma falso atestado de eficácia e é explorado por fabricantes e influencers. Mas o assunto do momento é outro.
Afinal, o que caracteriza um suplemento e um floral como sendo “quântico”?
Citando ipsis litteris material divulgado pela marca, “compostos vibracionais englobam diferentes linhas de produtos que contêm padrões quânticos (energia e informação) para cada especificidade, utilizando a memória da água, ou seja, a capacidade da água de gravar informações. Os compostos vibracionais atuam no campo sutil do ser humano pelo fenômeno da ressonância, equilibrando os canais de energia e proporcionando, assim, o bem-estar do organismo humano”. Os suplementos alimentares, por sua vez, “são produtos destinados a complementar a alimentação com nutrientes e substâncias bioativas, agindo de forma isolada ou combinada. Seus benefícios são ampliados pela inserção de padrões vibracionais, promovendo um melhor aproveitamento dos seus componentes. Para garantir a qualidade dos nutrientes, os suplementos alimentares passam por um processo de esterilização de última geração, conhecido como nano-laser frequence”.
A literatura científica não apresenta nenhum estudo que respalde suplementos com padrões vibracionais, o que aponta mais um indício de falta de validade das alegações. Ademais, surge o questionamento sobre o que constituiria um “padrão vibracional” e como, mesmo na ausência de uma base teórica sólida, ele poderia aprimorar a eficiência dos componentes. Os compostos vibracionais, por sua vez, partem de um pressuposto pseudocientífico ultrapassado e refutado diversas vezes aqui na RQC – lembrando, água não tem memória e nem sentimentos.
Pós-graduação?
Continuando minha busca incessante por problemas ofertados pela marca, deparei-me com a Pós-Graduação em Biofísica Quântica e Biorresonância Aplicada à Saúde.
Resumindo os pontos principais:
O aluno terá que desembolsar um valor superior a R$ 20 mil, terá aulas online (360 horas ao todo), aprenderá 14 disciplinas, sendo que 12 delas beiram a insanidade e não se referem a nada que exista no mundo real, por exemplo, a “análise bionergética através de equipamentos biofísicos”.
Para que tanta chatice?
Indo de encontro à máxima proferida por livros de auto-ajuda: “quando você aponta um dedo, tem três apontados para você”, é importante trazermos tais práticas à luz e suscitarmos o debate.
É absurdo haver tantos problemas no Sistema Único de Saúde, reconhecê-los e, ainda assim, alocarmos recursos públicos em terapias holísticas e máquinas de biorresonância – sim, isso ocorreu no município de Três Palmeiras (RS), com investimento de R$ 8.390. Lembre-se, os próprios promotores do método admitem que se trata de terapia “considerada controvertida e não é reconhecida pela medicina tradicional (...) também se aplica aos produtos comercializados”.
Claro, alguém que seja contrário ao meu posicionamento “positivista” poderia argumentar que a prova da eficácia de tais terapias é o fato dos pacientes se sentirem melhor após as consultas. No entanto, essa conclusão é falsa (evidências anedóticas não são evidências científicas) e incorreta (evita/esquece o princípio da falseabilidade).
Mauro Proença é nutricionista
Referências
YAMASHITA, M. O lado “energético” da homeopatia. 2023. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2023/06/29/o-lado-energetico-da-homeopatia.
ORSI, C. A armadilha muito cara da medicina vibracional. 2023. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2023/04/24/armadilha-muito-cara-da-medicina-vibracional.
SCHAPPO, M. “Mesas quânticas” dependem de fé, não ciência. 2023. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2023/07/20/mesas-quanticas-dependem-de-fe-nao-ciencia.
ORSI, C. Fuja de terapias “ortomoleculares”. 2020. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2020/07/06/fuja-de-terapias-ortomoleculares
YAMASHITA, M. Livro sobre “memória da água” não chega nem a estar errado. 2020. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/resenha/2020/03/20/livro-sobre-memoria-da-agua-nao-chega-nem-estar-errado.
YAMASHITA, M. Água não tem memória e gelo não se emociona. 2019. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/questao-de-fato/2019/02/02/agua-nao-tem-memoria-e-gelo-nao-se-emociona.
Três Palmeiras. Município adquire aparelho de Bioressonância Magnética Quântica. 2022. Disponível em: https://www.trespalmeiras.rs.gov.br/noticias/descricao/1044/Munic%C3%ADpio-adquire-aparelho-de-Bioresson%C3%A2ncia-Magn%C3%A9tica-Qu%C3%A2ntica.