Evoluir sem desfigurar: o desafio da universidade

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19 jun 2023
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Muito se tem falado sobre os motivos da redução do número de inscritos para os vestibulares nas universidades públicas. O problema é complexo e as causas, diversas, indo desde razões socioeconômicas, com estudantes de baixa renda tendo que largar os estudos precocemente para trabalhar, até a procura por cursos a distância de qualidade bastante discutível, com baixíssimo valor de mensalidade, mas que no fim entregam um diploma de graduação com o mesmo valor legal do certificado de uma grande faculdade.

Um dos principais motivos apontados para o aparente desinteresse de estudantes nas universidades, principalmente as públicas, é o formato tradicional dos cursos, que não estariam em consonância com as necessidades da sociedade de hoje. Artigo recente publicado na Science contrapõe dois modelos de progressão na graduação, pipeline e pathways, defendendo que o segundo apresentaria uma vantagem em relação ao primeiro.

O modelo pipeline, que em português pode ser traduzido como um “duto”, tubulação fixa por onde um fluxo (de água, gás, óleo e, no caso abordado, de estudantes de graduação) é empurrado sempre adiante, refere-se a uma trajetória acadêmica relativamente estanque, com poucos caminhos alternativos (ou oportunidades de criar novos caminhos), com disciplinas organizadas sequencialmente, numa estrutura em que várias são pré-requisitos de outras. Já no formato pathways, uma referência a caminhos mais flexíveis, haveria mais espaço para o estudante definir o seu próprio itinerário com base nos seus interesses, habilidades e objetivos profissionais.

O artigo da Science compara as matérias escolhidas por estudantes da Universidade da Califórnia – Berkeley: alguns cursos, como engenharia civil ou filosofia, não mostram muita diferença na escolha das disciplinas. Por outro lado, cursos como ciência da computação ou administração apresentam grande variação nos assuntos escolhidos. Essa diferença pode indicar que não existe um formato único, que se aplicaria bem a todas as áreas de conhecimento, e cada curso deveria discutir internamente qual seria o modelo mais apropriado.

Não é difícil entender essa heterogeneidade de comportamentos entre os diferentes cursos. Alguns são intrinsicamente mais flexíveis do que outros: em física, por exemplo, não dá para acompanhar uma disciplina de mecânica quântica sem que se saiba cálculo – o pré-requisito é necessário. A despeito disso, os autores do artigo defendem o formato de caminhos mais flexíveis, argumentando que o pathways daria protagonismo ao aluno na formação do seu currículo de acordo com o progresso no curso.

Embora seja fundamental o diálogo acadêmico para definir o melhor formato curricular, ou mesmo para qualquer ação da universidade, é importante que não se perca de vista o principal objetivo desse tipo de instituição: retornar para a sociedade os melhores resultados com base na excelência intelectual. Esta visão simplista-pragmática não contempla todas as nuances do processo complexo que é preciso percorrer até se chegar ao resultado desejado, mas pode orientar um debate público que, da maneira que está hoje, pode até descaracterizar o que se quer aperfeiçoar.

Uma coisa que aprendemos desde os anos iniciais em física é hierarquizar os problemas que se deseja resolver. Imagine organizar uma viagem de férias com amigos e colocar no mesmo nível de importância o destino, a acomodação, o transporte e a combinação das cores das meias que cada um vai levar. Pior ainda se toda a discussão que realmente interessa ficar interrompida em rodas de conversa porque não se consegue avançar na discussão das peúgas.

Ignorar que a função primordial da universidade é ser a melhor fonte de conhecimento, capital humano e ideias inovadoras – que poderão ser assimilados pela sociedade e usados por empresas, governos etc. para resolver os mais diversos problemas – e esperar que se torne uma grande redentora de todos os males, que se proponha a salvar o mundo, pode fazer com que o debate interno se disperse e que se perca o primordial.

Outra questão colocada pelo artigo da Science consiste no olhar individual voltado para o jovem estudante que tem de optar por alguma área muito cedo – isto aumentaria a probabilidade de decepção e abandono do curso escolhido e, na maioria dos casos, a desistência de buscar qualquer tipo de formação superior. Não há garantia, porém, de que o mesmo estudante que é inseguro demais para escolher (ou seguir) um pipeline teria maturidade para montar o próprio currículo, num esquema pathways.

Estruturar políticas públicas (ou institucionais) a partir de um foco em casos particulares ou hipóteses sobre desfechos individuais é complicado – vale lembrar, por exemplo, a discussão sobre liberdade de expressão. Dizer que ela vai até onde não ofenda alguém é vazio porque é possível conjecturar que sempre existirá alguém que ficará ofendido, inclusive com o silêncio.

A maneira como se formam os itinerários escolares no ensino superior deve ser discutida com base na experiência dos alunos e em diversos outros fatores, inclusive no fato de que o professor deve ensinar e o aluno deve aprender. Vivemos hoje numa sociedade extremamente polarizada onde o intermediário parece ter deixado de existir em favor dos radicalismos.

Não é preciso deixar de olhar para além do campus e nem de buscar adaptar a realidade universitária às necessidades do mundo, mas é preciso que essa adaptação não se imponha ao preço de descaracterizar completamente o modelo de universidade de pesquisa que temos atualmente.

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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