O que é pior: falso diploma ou falsa medicina?

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27 mar 2023
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transfusão medieval

 

Em meados de março, Thiago Celso Andrade Reges foi preso por exercício ilegal da medicina, depois de ter atuado em vários hospitais do interior do Ceará. Ele havia conseguido, judicialmente, uma validação da formação no Brasil a partir de um diploma boliviano, mas o documento era falso. O Conselho Regional de Medicina do Ceará (Cremec) suspendeu a carteira profissional e abriu processo interno.

Pergunta fácil: por que prender alguém que comete fraude se passando por médico? Imagino que a resposta não deve gerar grande discordância entre os leitores: quem faz isso põe a saúde e a vida das pessoas em risco, uma vez que, por não ter formação adequada, prescreve remédios e tratamentos, e emite diagnósticos, que não são confiáveis – não há razão para supor que suas análises e recomendações tenham base em uma formação científica, no melhor conhecimento disponível na área médica. O que, imagino, deve estar presente na graduação e nas eventuais especializações de um médico legítimo.

Mas o problema que a situação evidencia não se encerra nela mesma. O caso acaba por suscitar outra questão intrigante: não seria a prática de “medicinas alternativas” tão responsável por colocar em risco a vida e a saúde dos pacientes quanto a prática de medicina sem diploma?

Para quem não sabe a resposta, aqui vão algumas dicas:

A primeira é que terapias alternativas baseiam-se em teorias rebuscadas sobre coisas que não existem: pontos na cabeça, ou na orelha, que, por estímulo, podem resolver problemas físicos e emocionais; alinhamento de chacrasenergia vital e memória da água; meridianos corporais; energias misteriosas emanadas pelas mãos; água "energizada" por "novos" estados da matéria; e a lista segue sem que se vislumbre um fim.

Aliás, elaborações teóricas ilusórias acabam sendo uma característica não apenas de práticas de medicina alternativa, mas das pseudociências em geral, como argumenta o filósofo da ciência Mario Bunge: na ciência genuína, diferentes campos de pesquisa aprendem e ensinam uns aos outros, gerando um sistema coeso. Os conceitos de “energia”, por exemplo, são quantificados adequadamente na física, na química, na biologia ou na engenharia. Por outro lado, o mecanismo pelo qual os planetas gerariam diferentes traços de personalidade – como se alega na astrologia – e as supostas energias emanadas pela água para poder ser localizada com uso da rabdomancia só existem como subterfúgio intelectual.

E a segunda é que todas elas têm base fraca ou inexistente de evidências confiáveis sobre eficácia e segurança. Algumas contam com estudos mostrando supostos resultados positivos que são apenas fruto de fatores de confusão, vieses na análise dos dados, dificuldade de realizar o ensaio clínico com cegamento, problemas na randomização dos pacientes e/ou falta de comparação adequada com placebo. Perceba que se a base de evidências para essas práticas fosse boa, não seria necessário denominá-las “alternativas”.

Cientificamente falando, tudo o que se diagnostica e prescreve sob o manto do “alternativo” é tão (pouco) confiável quanto o que é recomendado por qualquer indivíduo que esteja praticando a medicina sem nunca ter estudado o assunto.

Mas boa parte das “medicinas alternativas” é praticada de forma plenamente regular, sem enfrentar qualquer problema com a lei. Algumas modalidades estão a cargo de detentores do diploma de medicina – o que, ao menos, abre a possibilidade de o profissional, se minimamente responsável, reconhecer quando é hora de parar de bobagem e começar a tratar o paciente a sério. Outras são autorizadas por conselhos profissionais de áreas como biologia.

O próprio Conselho Federal de Medicina reconhece a homeopatia como autêntica especialidade médica; e nós, como sociedade, pagamos pela aplicação de diversas delas, já que são oferecidas através do Sistema Único de Saúde, o SUS.

O financiamento público dessas práticas, que obviamente colocam a saúde dos pacientes em risco (como derrames causados por quiropraxia, amputações por ozonioterapia, e morte por otite após opção por tratamento homeopático), ainda fere o princípio da boa administração de recursos públicos: se a verba é limitada – como, de fato, é –, então a gestão deve priorizar o que há de melhor para cumprir os propósitos da aplicação do recurso, que, neste caso, significa promover e financiar práticas devidamente reconhecidas em boas evidências. É uma questão simples de se analisar custo/benefício.

Para quem ainda não está convencido, basta sair da medicina para outras áreas da ciência para tornar mais evidente o absurdo desse financiamento: o que a população pensaria sobre o uso de recursos públicos para financiar pesquisas e práticas de uma “física alternativa”? Que sustentasse, por exemplo, que não é necessário projetar obras a partir da boa aplicação das Leis de Newton na engenharia.

Não faltariam prédios caindo pelos cantos da cidade. Com as medicinas alternativas, a lógica é a mesma. Mas o que está em jogo não é a estabilidade dos viadutos, mas a vida das pessoas.

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)

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