Em setembro de 2021, estudo publicado no periódico Scientific Reports afirmava haver evidências da destruição de uma antiga cidade no Oriente Médio, na região de Tall el-Hammam, ao nordeste do Mar Morto, pela “explosão” na atmosfera (airburst) de um objeto celestial (asteroide ou cometa), que os autores associaram a uma possível origem histórica do mito bíblico da destruição de Sodoma. Agora, após muitas críticas da comunidade científica, os editores da revista emitiram uma nota de alerta sobre a abertura de investigação de possíveis problemas com os dados e conclusões do estudo, o que pode levar à sua retratação e remoção da literatura científica, informou o site Retraction Watch, que monitora este tipo de ação. O estudo foi atacada por razões que incluem os métodos usados, suspeita de manipulação de imagens e até a evidência física, os supostos vestígios, que os autores dizem demonstrar que o local foi alvo de um evento catastrófico de origem cósmica.
Na época da publicação, o fator religioso-mitológico implícito no estudo logo chamou a atenção da mídia, com as notícias sobre o achado rapidamente fazendo a habitual ronda por alguns dos principais veículos nacionais e internacionais de comunicação. A reação da comunidade científica, no entanto, também não tardou. Poucos dias depois, aqui mesmo na Revista Questão de Ciência, publicou-se artigo que alertava para o fato de a Scientific Reports pertencer à editora Springer Nature, tomando emprestado o nome e prestígio da revista centenária em seus links sem nem de longe aplicar o mesmo rigor nos conteúdos que divulga.
Mais que isso, o estudo foi patrocinado por grupos fundamentalistas cristãos dos EUA, interessados em encontrar “provas” que comprovem relatos bíblicos. Um de seus principais autores, Philip J. Silva, é egresso da Faculdade de Arqueologia e História Bíblica da Trinity Southwest University, instituição que define sua missão como “sustentar a autoridade divina da Bíblia como a única representação da realidade inspirada por Deus para a Humanidade”.
Mas os problemas não ficaram por aí. De cara, Mark Boslough, físico da Universidade do Novo México (EUA) especialista em impactos planetários, em uma série de posts no Twitter também alertou para as conexões religiosas dos principais autores do artigo e de suas instituições, para depois apontar diversas ressalvas técnicas e científicas ao modo como os pesquisadores usaram seu modelo sobre airbursts para explicar como teria chovido “fogo e enxofre” sobre a antiga cidade, enquanto a esposa de Ló se transformava em uma estátua de sal. Já Matthew T. Boulanger, arqueólogo da Southern Methodist University em Dallas, Texas, e Joe Roe, arqueólogo computacional da Universidade de Berna, Suíça, destacaram como os autores ajustaram as datações de carbono dos materiais encontrados para classificá-los como coetâneos, isto é, produzidos na mesma época, e, portanto, indicativos de um evento catastrófico único.
Não demorou muito e Elizabeth Bik, microbiologista holandesa que ficou notória no meio acadêmico por suas denúncias de violações da integridade científica, também entrou no circuito. Analisando as imagens do estudo, apontou indícios de manipulação que Silva a princípio contestou, mas que um de seus coautores acabou admitindo. Isto obrigou o grupo a publicar, ainda em fevereiro de 2022, uma correção do artigo na própria Scientific Reports, com a inclusão das imagens originais, sem as alterações, que segundo eles foram feitas com fins puramente estéticos, como a remoção de fitas métricas, dedos e outros elementos, mas reconheceram terem sido “impróprias”.
Pouco mais de um mês depois, a polêmica continuou, com Steven J. Jaret, do Departamento de Ciências Planetárias e da Terra do Museu Americano de História Natural, em Nova York, e R. Scott Harris, do Departamento de Ciências Espaciais do Fernbank Science Center, em Atlanta, Geórgia, publicando na mesma Scientific Reports artigo em que contestam as evidências mineralógicas e geoquímicas apresentadas pelos autores. Segundo a dupla, as observações e dados do estudo, relativos à formação de cristais de quartzo pelo impacto, e as amostras de minerais supostamente recolhidas na áreas não cumprem os critérios estabelecidos para documentar evidências de um evento extraterrestre.
Daí, a discussão já tinha migrado para o PubPeer, site dedicado à revisão por pares de artigos científicos após sua publicação, onde Boslough voltou à carga, em preparação para texto crítico que viria a publicar na revista Skeptical Inquirer no primeiro bimestre de 2022, elencando as muitas questões até então levantadas em torno do estudo, desde o viés de alguns de seus autores, incluindo o passado suspeito de um deles, até a manipulação de imagens e dados. O físico também lamentou a atenção dada às ligações religiosas da suposta descoberta tanto na mídia generalista quanto na especializada, lembrando que apenas uma semana depois da publicação o estudo já acumulava 242 mil acessos, comum de seus autores chegando a declarar que momentaneamente era “o artigo científico mais lido na Terra”.
Ao mesmo tempo, relata o Retraction Watch, Boslough mantinha contato com Rafal Marszalek, editor-chefe da Scientific Reports, a quem pedia insistentemente a retratação do estudo, ou ao menos sua correção, principalmente pela utilização equivocada e alterada de seu modelo de airburst. “Já faz um ano e um quarto desde que ele foi publicado e ainda há muitas instâncias de alegações falsas e dados errôneos que até agora não foram corrigidas”, escreveu o físico em e-mail de dezembro passado a Marszalek, citado pelo site. Ao que o editor-chefe da revista, ainda de acordo com o Retraction Watch, se desculpou pela demora em responder às suas demandas. Marszalek disse que a discussão no PubPeer se desenvolveu muito além das críticas iniciais e pediu paciência enquanto avaliava as questões levantadas.
Diante disso, no início de fevereiro deste ano Boslough voltou a contatar o editor-chefe da Scientific Reports. Desta vez copiando o Retraction Watch, o seu e-mail reafirmava o pedido para retratação do estudo ou ao menos a remoção ou correção da figura relacionada ao seu trabalho. “Não quero que as alegações falsas delas sejam erroneamente atribuídas a mim… Você poderia por favor colocar uma expressão de preocupação neste artigo até que ele seja retratado ou esta e outras correções sejam feitas?”, solicitou.
Enquanto isso, o Retraction Watch também fazia pressão, questionando a assessoria de imprensa da Springer Nature se alguma atitude de fato estava sendo tomada quanto às suspeitas e problemas em torno do estudo. Em resposta, em 10 de fevereiro deste ano a editora enviou declaração de Marszalek informando que as investigações sobre o estudo ainda estavam em curso, com os editores da Scientific Reports “analisando as preocupações levantadas, que incluem mas não estão limitadas às questões surgidas nos comentários no PubPeer”.
“Este processo pode levar algum tempo enquanto consideramos cuidadosamente as evidências disponíveis e damos a todas as partes envolvidas a chance de responder. Vamos atualizar nossos leitores com mais informações assim que pudermos”, continua o texto. E, de fato, apenas cinco dias depois, em 15 de fevereiro, a revista publicou nota do editor junto ao estudo que diz: “Os leitores estão alertados que preocupações levantadas sobre os dados apresentados e as conclusões deste artigo estão sendo avaliadas pelos editores. Futuras respostas editoriais vão se seguir à resolução destas questões”.
Procurado pelo Retraction Watch após a publicação da nota, Marszalek explicou que dada a complexidade do trabalho de nova revisão de artigos publicados e das questões levantadas sobre o estudo, o periódico considerou ser oportuno alertar os leitores sobre elas a esta altura, mas que por questões de confidencialidade não poderia fazer mais comentários. Já Boslough considerou a nota um “desenvolvimento positivo muito atrasado”, mas não suficiente.
“Francamente, creio que este artigo não tem salvação e nenhuma quantidade de correções será suficiente para que ele seja publicável”, disse ao Retraction Watch. “Por exemplo, pontos de dados em seus mapas da direção dos destroços (Fig. 17) parecem ser fabricados e os autores não parecem ser capazes de fornecer os dados brutos ou métodos para que outros possam ver como eles chegaram aos vetores de vento sobre os quais suas conclusões são baseadas. Espero que esta expressão de preocupação leve a um maior escrutínio de outros estudos deste mesmo grupo com alegações problemáticas similares baseadas em dados e métodos que nunca revelaram”.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência