O dia que a Terra não parou

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1 fev 2023
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Interior da Terra como imaginado no século 17

 

Parafraseando o escritor americano Mark Twain (1835-1910), as notícias do fim do mundo foram um tanto exageradas. A divulgação, semana passada, de um estudo sobre variações periódicas na velocidade de rotação do núcleo interno da Terra gerou algumas manchetes alarmantes, obrigando a equipe da Springer Nature, editora da prestigiosa revista científica Nature, a publicar uma incomum e rara “errata” de um informe distribuído à imprensa.

Na versão original, o chamado press-release dizia que pesquisa publicada em 23 de janeiro na revista Nature Geoscience indicava que a estrutura mais central do planeta – uma esfera sólida de ferro mais quente que a superfície do Sol, a 5,4 mil graus Celsius, com cerca de 2,4 mil quilômetros de diâmetro, e girando a aproximadamente 325 km/h no seu equador enquanto “flutua” no núcleo externo, uma densa “sopa” de ferro e algum níquel derretidos com cerca de 2,26 mil quilômetros de espessura – havia “pausado” (do inglês “paused”) sua rotação e poderia estar “revertendo” (“reversing”, novamente do original em inglês) seu sentido. Só que não era bem isso.

Fonte do campo magnético que protege a Terra e seus habitantes dos piores dos “humores” do Sol – desde o constante “vento solar”, um fluxo de partículas (principalmente prótons e elétrons) que escapa em alta velocidade de nossa estrela, a ocasionais erupções gigantescas de material e radiação -, a movimentação e interação entre os núcleos interno e externo do planeta são, assim, fundamentais para que ele continue habitável. Sem este chamado geodínamo, nossa atmosfera há muito já teria sido em grande parte erodida e lançada ao espaço – como estudos sugerem que aconteceu com Marte -, deixando o planeta ainda mais desprotegido. Desta forma, se o núcleo da Terra tivesse realmente parado de girar ou revertido a rotação, como indicado no informe à imprensa distribuído pela Springer Nature, as consequências seriam, mais que catastróficas, apocalípticas.

Mas foram justamente estas palavras que acabaram em grande parte das manchetes sobre o estudo na imprensa mundo afora. A começar pela própria Nature, que na seção de notícias de seu site trazia a pergunta “O núcleo da Terra parou seu estranho giro?”. BBC, CNN, Deutsche Welle e AFP foram alguns outros grandes veículos internacionais que também estamparam as palavras em seus títulos, que ecoaram em alguns dos maiores jornais e sites de notícias brasileiros, como O Globo, Folha de S.Paulo, G1 e UOL. E embora muitos deles tenham procurado destacar em subtítulos ou nos textos que a descoberta não era prenúncio do fim do mundo, e mudado seus títulos para versões menos "chamativas", como o New York Times, alguns não resistiram à tentação de parecer “apertar o botão de pânico” para chamar a atenção para suas histórias.

Na verdade, porém, o estudo assinado por Xiaodong Song e Yi Yang, da Universidade de Pequim, China, usou dados de terremotos registrados desde os anos 1990 - como se fossem um exame de “ultrassom” da Terra – para medir a rotação do núcleo interno com relação ao resto do planeta (manto e crosta), concluindo que ele estaria passando por um período de desaceleração, como parte de um ciclo natural de aproximadamente 70 anos.

Em 1996, Song, então no Observatório da Terra Lamont-Doherty, da Universidade Colúmbia, EUA, já havia publicado artigo em coautoria com o sismólogo americano Paul G. Richards em que apontavam – também com base em dados de terremotos, mas no período entre os anos 1960 e 1990 - que o núcleo interno da Terra girava mais rápido que o resto do planeta a uma taxa da ordem de um grau de circunferência por ano, num fenômeno conhecido como “superrotação”.

Assim, no novo estudo, Song e seu colega da Universidade de Pequim indicam que esta diferença na velocidade de rotação teria diminuído ao longo do tempo até aparentemente zerar em 2009, com o núcleo interno da Terra podendo inclusive ter passado a girar mais lentamente que o manto e crosta. Ou seja, o que “pausou” e pode estar “revertendo” é a superrotação, e não o giro do núcleo do planeta em si. Além disso, Song e Yang revisaram dados de terremotos desde os anos 1960 e observaram que fenômeno semelhante teria acontecido no início dos anos 1970. Mudança que coincidiria com outras alterações em medições geofísicas do planeta, como a duração do dia e propriedades de seu campo magnético, que acontecem com uma periodicidade entre seis e sete décadas, levando-os a sugerir que todos estes fenômenos estariam ligados por um “sistema de ressonância” entre as diferentes camadas da Terra.

Diante disso, a Springer Nature se viu obrigada a mudar os termos de seu comunicado à imprensa. Além de frisar que o estudo da dupla avalia o “diferencial” de rotação do núcleo interno relativo ao resto do planeta, saíram as palavras “pausa” e “reversão”, substituídas, respectivamente, por “desaceleração” e a frase “girando mais devagar que o manto”.

“Esclarecemos que o termo ‘reversão’ (e vários derivados dele) é comumente usado pela comunidade científica focada nesta área para descrever o fenômeno em questão, nominalmente a desaceleração ou aceleração do núcleo interno relativo ao manto”, diz texto da “errata”. “Reconhecemos, no entanto, que para uma audiência mais generalista estes termos podem ser enganadores sem contextualização adicional, e não deveriam ter sido usados no release para a imprensa”.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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