Estudo revela dimensão do negacionismo da indústria do petróleo

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18 jan 2023
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poço de petróleo

Nos últimos anos, vieram a público dezenas de documentos internos de empresas de combustíveis fósseis, suas organizações representativas ou clientes, como a indústria automobilística, mostrando que há décadas sabiam que o crescente uso de seus produtos levaria a um processo de aquecimento global, com consequências para o clima de todo o planeta. Apesar disso, em sua face pública, o setor insistia em negar ou semear dúvidas sobre o assunto. Análise de uma série de documentos de uma destas empresas, a gigante americana ExxonMobil, expõe a dimensão deste negacionismo climático cínico.

O estudo, publicado recentemente na prestigiada revista Science, focou nas projeções e gráficos presentes nos documentos internos da empresa, revelando que a companhia e sua direção não só sabiam dos potenciais impactos da queima de combustíveis fósseis sobre o clima da Terra como seus cientistas calcularam, com grande acurácia, a dimensão deste aquecimento. Os autores, liderados por Geoffrey Supran, então no Departamento de História da Ciência da Universidade de Harvard, EUA, revisaram 32 documentos internos produzidos por lideranças ou cientistas contratados da ExxonMobil entre 1977 e 2002, assim como 72 artigos científicos de autoria ou coautoria dos cientistas da empresa publicados em diferentes periódicos entre 1982 e 2014.

Neste conjunto, o trio de pesquisadores – que também inclui Stefan Rahmstorf, climatologista do Instituto Potsdam para Pesquisa de Impacto Climático, Alemanha; e Naomi Oreskes, também do Departamento de História da Ciência da Universidade de Harvard e coautora de Mercadores da Dúvida (Merchants of Doubt, no original em inglês) – identificou 16 projeções de aumento da temperatura da Terra em 12 documentos, sendo sete memorandos internos, distribuídos entre 1977 e 1985, e cinco estudos revisados por pares publicados de 1985 a 2003. Uma dúzia das projeções veio de modelos climáticos desenvolvidos ou executados por cientistas da própria ExxonMobil, em geral em parceria com pesquisadores independentes.

Os autores do trabalho publicado na Science partiram então para analisar a acurácia destas previsões, cruzando-as com dados observacionais tanto das mudanças nas temperaturas ao longo do tempo quanto relativas a alterações na força radiativa – a diferença entre a radiação solar absorvida pela Terra e a energia radiada pelo planeta de volta ao espaço. Conhecida como resposta climática transiente inferida (iTCR, na sigla em inglês), esta segunda métrica está na base dos modelos climáticos conhecidos como de “Balanço de Energia” que eram usados pelos cientistas da área até o fim dos anos 1980, quando forma substituídos por modelos mais complexos, chamados de “Circulação Geral”.

Segundo os autores, de modo geral as projeções de aquecimento global dos cientistas da ExxonMobil, numa média de 0,2º Celsius (± 0,04° C) por década, acompanharam de perto as mudanças no clima observadas até 2019. Com relação ao aumento da temperatura ao longo do tempo, dez das 16 projeções se mostraram em linha com os registros históricos, duas previram um aquecimento maior que o observado e as outras quatro, aquecimento menor. Já quando o aumento da temperatura foi relacionado à iTCR, 12 das 16 projeções ficaram em linha com os registros históricos.

Os autores também calcularam a acurácia de cada uma das 16 projeções dois cientistas da ExxonMobil no que chamaram de skill score (nível de perícia, em uma tradução livre), em que uma pontuação de 100% indica um alinhamento perfeito das previsões com as observações. Com relação às mudanças na temperatura ao longo do tempo, a média das projeções ficou em 67 ± 7%. Quando levadas em conta apenas as previsões feitas com modelos desenvolvidos pelos cientistas da empresa, o score alcançou 72 ± 6%. A nota mais alta foi de estudo revisado por pares publicado em 1985, com 99%.

Já usando a métrica iTCR, o nível de perícia das 16 projeções ficou em 67 ± 9% na média, e em 75 ± 5% nas modeladas pelos próprios cientistas da ExxonMobil, com o mesmo estudo de 1985 alcançando o maior score, de 92%. A título de comparação, o trio de pesquisadores lembra que as previsões que o cientista da Nasa James Hansen apresentou ao Congresso americano em 1988, para alertar sobre o aquecimento global, tiveram níveis de perícia calculados entre 38% a 66% nos três diferentes cenários de força radiativa que ele relatou para o aumento da temperatura ao longo do tempo, e de 28% a 81% na métrica de iTCR.

“Assim, na média, as projeções de aquecimento global relatadas pelos cientistas da ExxonMobil eram tão acuradas quanto às de cientistas independentes da época, e seus próprios modelos eram especialmente acurados”, destacam os autores do estudo na Science. “Na medida que estas projeções representam o conhecimento da época sobre os efeitos prováveis da queima de combustíveis fósseis na temperatura global, podemos concluir que a Exxon sabia, nos anos 1970-1990, tanto quanto os acadêmicos e cientistas do governo sabiam”.

 

Negacionismo e desinformação

Apesar deste conhecimento, a ExxonMobil trabalhou, em público, ativamente na negação e na criação de falsas controvérsias em torno do aquecimento global antropogênico - isto é, provocado pela ação humana - e que tem como seu principal impulsionador a queima de combustíveis fósseis, ressaltam os pesquisadores. Para isso, usou táticas comuns de desinformação, sendo a primeira uma das mais básicas descritas por Oreskes em seu livro: “enfatizar as incertezas em torno das conclusões científicas sobre o potencial de aquecimento dos gases do efeito estufa”, como mandava fazer, em 1988, um dos memorandos internos da empresa revelados nos últimos anos e citado no artigo na Science.

A análise mostra que, nos seus relatórios e apresentações para a direção da ExxonMobil, os cientistas da própria empresa em nenhum momento expressam qualquer dúvida quanto à realidade do aquecimento global antropogênico, ou sugerem que ele possa vir a não ocorrer. Nem concluem que as incertezas seriam grandes.

“Mas, apesar disso, a ExxonMobil continuou a fazer estas alegações até pelo menos o começo dos anos 2010”, apontam os pesquisadores, como quando em 2000 o então presidente da empresa, Lee Raymond, escreveu que não haveria “suficiente compreensão científica das mudanças climáticas para fazer previsões razoáveis ou justificar medidas drásticas”, ou quando, já em 2013, seu sucessor na presidência da ExxonMobil, Rex Tillerson, disse que “permanece o fato que há incertezas em torno do clima, de quais são os principais causadores das mudanças climáticas. Há outros elementos no sistema climático que podem prevenir (os efeitos) desta única variável (a queima de combustíveis fósseis)”.

Outra tática de desinformação usada pela ExxonMobil foi gerar dúvidas em torno da validade e acurácia dos modelos climáticos. Novamente, os próprios documentos e estudos financiados pela empresa mostram que as dúvidas não tinham cabimento. Além disso, até os anos 1990 a empresa insistiu no mito - em voga entre alguns cientistas ainda nos anos 1970 - de que a Terra estaria caminhando para outro período glacial e uma nova “Idade do Gelo”. Então, porém, seus próprios cientistas já se alinhavam com a maioria da comunidade científica, que considerava que o fenômeno era altamente improvável.

A ExxonMobil também continuou a afirmar não ser possível dissociar o aquecimento antropogênico de flutuações naturais, mesmo com seus cientistas, prevendo corretamente em relatórios internos e estudos publicados entre 1979 e 1985, quando o efeito antropogênico ficaria evidente, no ano 2000 ± 5 anos. De fato, em 1995 o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC) declarou então já ser possível detectar os efeitos na ação humana na temperatura global, o que reiterou em 2000 e em todos seus relatórios de avaliação subsequentes.

“Em outras palavras, o entendimento da ExxonMobil sobre a ciência climática era suficiente não só para projetar o aquecimento de longo prazo como para prever quando ele seria discernível”, escrevem os autores. “Apesar disso, publicamente a ExxonMobil afirmava que a ciência era muito incerta para dizer quando – e se – o aquecimento global causado pelos humanos poderia ser mensurável”.

Diante disso, os pesquisadores consideram que sua análise por se tornar mais um argumento nos muitos processos, investigações e movimentos da sociedade civil que pedem que a ExxonMobil e outras empresas do setor sejam responsabilizadas por enganar e mentir para o público, seus clientes e até seus acionistas sobre a ciência climática. Em 2019, tanto o Parlamento Europeu quanto o Congresso dos EUA realizaram audiências sobre o assunto, enquanto o atual presidente americano, Joe Biden, por mais de uma vez declarou seu compromisso em responsabilizar a indústria de combustíveis fósseis “como fizemos com as farmacêuticas, como fizemos com as companhias de tabaco”, cita o trio de autores do estudo na Science.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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