O início da pandemia de COVID-19, no primeiro semestre de 2020, foi marcado por muito desconhecimento e incertezas, o que fez deste período um campo fértil para a disseminação de mentiras e desinformação sobre a doença. No Brasil, este processo foi detalhado por Marília Gehrke e Marcia Benetti, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que identificaram os principais temas, plataformas e atores envolvidos na propagação de conteúdos falsos no começo da pandemia no Brasil. No estudo, publicado na revista Fronteiras - Estudos Midiáticos, elas mostram que as mentiras sobre a atuação do governo federal, ataques a adversários do presidente Jair Bolsonaro, defesa de tratamentos inúteis e informações falsas – e contraditórias – sobre vacinas foram espalhadas principalmente por pessoas do entorno ou apoiadoras de Bolsonaro, quando não pelo próprio presidente, tendo como maior plataforma as redes sociais.
Para tanto, a dupla de pesquisadoras da UFRGS analisou 407 textos classificados como falsos pela Latam Chequea Coronavirus, plataforma colaborativa criada por agências de checagem na América Latina que reúne, no Brasil, o trabalho da Agência Lupa, da agência Aos Fatos, do Estadão Verifica e da Agência France-Presse (AFP), publicados entre 15 de março e 21 de julho de 2020. As autoras também optaram por definir “desinformação” como conteúdo falso criado e disseminado com a intenção de enganar o público, tanto para prejudicar a reputação de pessoas e instituições quanto para obter vantagens financeiras ou ideológicas, evitando usar o termo fake news (notícias falsas) por ter sido “largamente empregado por políticos para atacar a credibilidade da imprensa e porque se trata de um paradoxo, já que as notícias apresentam, por definição, uma base factual”.
Principais temáticas
Primeiro, as pesquisadoras avaliaram os temas abordados pelos textos, que classificaram em sete categorias: China, contágio, cura, dados, economia, política e “outros”. Destes, o mais frequente foi “política” (25,55%), abrangendo também atos do governo, seguido de “cura” – o que incluiu tratamentos e vacinas – com 20,64%. Em terceiro lugar ficaram os conteúdos falsos relativos a dados e estatísticas (19,66%), enquanto em quarto vieram os textos sobre contágio e distanciamento (18,43%), em quinto os sobre economia (7,13%) e em sexto os sobre o papel da China (6,39%) na pandemia, com apenas nove (2,21%) não podendo ser enquadrados em nenhuma das categorias pré-definidas e caindo na de “outros”.
Daí, Gehrke e Benetti selecionaram 300 textos das agências Lupa e Aos Fatos para uma análise qualitativa mais aprofundada em busca de “compreender os principais sentidos construídos em cada tema e as estratégias de desinformação”. Segundo a dupla, sob o tema “política”, a narrativa dominante procurava favorecer o presidente Jair Bolsonaro, seja com textos enaltecendo sua imagem, seja atacando seus adversários, notadamente o Partido dos Trabalhadores (PT), o então governador de São Paulo, João Dória (PSDB), e o à época presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM, hoje fundido com o Partido Social Liberal, o PSL, pelo qual Bolsonaro foi eleito presidente, para formar o União Brasil).
Ainda de acordo com as pesquisadoras, estes conteúdos falsos buscavam beneficiar Bolsonaro mostrando o governo federal como “sensível e preocupado com o sustento dos mais vulneráveis” ao anunciarem projetos inexistentes ou distorcendo seu papel na liberação de auxílio econômico para a população afetada pelas medidas de distanciamento social; como “competente e ágil”, com informações mentirosas ou deturpadas sobre o enfrentamento da pandemia no país e elogios de líderes ou instituições internacionais à sua condução pelo presidente; ou, paradoxalmente, como “impedido de combater a pandemia” por uma leitura distorcida de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto.
Neste sentido, também se destacam textos que buscavam prejudicar adversários do presidente, como os que acusavam o PT, seus integrantes e outros políticos rivais, como Dória, de “irresponsáveis” por serem contra o uso indiscriminado de cloroquina, que então já havia sido cientificamente descartada como possível tratamento para COVID-19, ou como “hipócritas” por supostamente não cumprirem medidas de isolamento social, entre outras críticas.
Em linha com estes ataques, a segunda temática mais frequente nos conteúdos de desinformação abordavam tratamentos falsos para COVID-19, e as vacinas. Exemplos do primeiro tipo enalteciam principalmente não só a cloroquina como hidroxicloroquina, ivermectina, nitazoxanida e azitromicina – todas drogas comprovadamente inúteis contra a doença e que em algum momento foram, ou até continuam a ser, defendidas por Bolsonarou ou seus seguidores no combate à pandemia -, mas também incluíram sandices como consumo de água quente, chás, determinados alimentos ou condimentos como possíveis “curas caseiras”.
Já com relação às vacinas contra a COVID-19, que à época ainda estavam em desenvolvimento e mal tinham completado as primeiras fases de testes de segurança e eficácia, os conteúdos falsos analisados pelas pesquisadoras foram por vezes contraditórios, ora retratando-as de maneira exageradamente otimista, como afirmando que “a vacina cura em três horas”, ora sob um viés conspiracionista, ligando-as a planos de monitoramento da população e de dominação mundial por figuras como Bill Gates, ou duvidando de sua segurança.
Fechando os temas que englobaram quase 85% dos conteúdos falsos analisados pelas pesquisadoras da UFRGS, a categoria de “dados, números e estatísticas” sobre a doença incluiu desde alegações como de que os hospitais estariam vazios, às de que mortes por outras causas estariam sendo registradas como em razão da COVID-19, com acusações de que médicos, estabelecimentos de saúde ou até mesmo governos locais fariam isso em busca de vantagens financeiras ou mais recursos públicos, além de distorções em torno da taxa de sobrevivência dos infectados ou expectativas irreais quanto ao fim da crise sanitária.
Já com relação ao “contágio”, o principal alvo das mentiras foram as medidas de distanciamento social, como afirmações de que seriam inúteis ou de que bastaria isolar grupos considerados de maior risco para agravamento da doença, como os idosos, que seriam impostas à força, ou de que outras atitudes de prevenção, como uso de máscaras ou higiene manual com álcool gel, seriam perigosas.
Estratégias de desinformação
A seguir, Gehrke e Benetti procuraram identificar as principais estratégias de desinformação usadas para a disseminação dos conteúdos falsos no Brasil no início da pandemia. Aqui, elas utilizaram classificações propostas por outros pesquisadores mundo afora que as dividem sem sete tipos básicos: conteúdo fabricado (fabricated content), conteúdo manipulado (manipulated content), conteúdo impostor (impostor content), falso contexto (false context), conteúdo enganoso (misleading content), falsa conexão (false connection) e sátira ou paródia (satire or parody).
Segundo a dupla, quase a metade dos conteúdos falsos da análise qualitativa (48,34%) recorria à criação de um falso contexto, como o uso de fatos verdeiros ou imagens genuínas fora das situações reais correspondentes. “O fato ocorreu, mas não por aquele motivo; a fotografia é genuína, mas se refere a outra situação; o documento é verdadeiro, mas não diz respeito àquele assunto; o vídeo é real, mas é anterior ao fato a que está sendo relacionado”, apontam.
Já o segundo tipo de desinformação mais recorrente que elas encontraram foi o conteúdo fabricado (28,67%), isto é, totalmente falso e criado deliberadamente com o intuito de enganar. Nesta seara estavam mensagens que procuravam se aproveitar da ignorância e da falta de conhecimento da população sobre a ciência e o funcionamento das instituições, inventando personagens, centros de pesquisa ou declarações inexistentes.
A terceira estratégia mais usada foi a de conteúdo impostor, que aplica em um conteúdo falso o logotipo oficial de uma organização (ministério, partido político, empresa de tecnologia) ou frauda a declaração de uma fonte genuína, observada em 12,33% dos textos analisados, enquanto em quarto lugar, com 7,33%, ficou a de conteúdo enganoso, em que informações originalmente verdadeiras são distorcidas com táticas como uso de uma escala incorreta para mostrar os dados ou comparar dados incomparáveis.
Atores e meios
Quanto aos responsáveis pela disseminação da desinformação, o estudo conseguiu identificar diretamente 50 pessoas ou instituições por trás da propagação de 60 dos conteúdos falsos. Não por acaso, praticamente todas do entorno ou apoiadoras de Bolsonaro. No topo da lista está o deputado federal Osmar Terra, seguido pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, um de seus filhos, Carlos Bolsonaro, o economista e ideólogo de extrema-direita Rodrigo Constantino, o deputado estadual cearense André Fernandes, o ex-deputado federal Roberto Jefferson e os sites Mídia Five e Gazeta Brasil.
Outros nomes de destaque citados pelas autoras são o jornalista Alexandre Garcia, o pastor Silas Malafaia, o empresário Winston Ling, o ex-assessor da Presidência Arthur Weintraub, hoje desafeto de Bolsonaro, a deputada federal Bia Kicis, o também filho do presidente e deputado federal Eduardo Bolsonaro, o falecido “guru” bolsonarista Olavo de Carvalho, o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e até a Secretaria de Comunicação do governo federal, que fez uma defesa institucional do uso da cloroquina.
“Não estamos afirmando que esses atores criaram os boatos e conteúdos enganosos, mas, sim, que tiveram papel fundamental na distribuição e no alcance desse tipo de material”, ressaltam as pesquisadoras. “Em linhas gerais, pessoas que incorporam papéis de autoridade não científica aproveitam-se de suas posições hierárquicas dentro de uma rede para questionar informações oriundas dos sistemas peritos, como a imprensa, as universidades e organizações internacionais. Assim, quando conveniente, distorcem a ciência e descontextualizam notas técnicas. Em comum, esses atores compartilharam conteúdo falso que sugere posicionamento contra o distanciamento social e a favor da retomada da economia, atacando políticos que efetuaram medidas para conter o espalhamento da doença, como o governador de São Paulo, João Dória. Também questionam os dados da pandemia”.
Quanto às plataformas usadas para disseminar a desinformação, as pesquisadoras notaram que muitos dos textos circularam em uma ou mais delas. Elas, no entanto, identificaram o Facebook como a origem da maioria dos conteúdos falsos (65,11%), seguido do WhatsApp (15,82%) e do Twitter (6,9%). Fenômeno que, dizem, pode ter sido alimentado pelo fato de que muitos dos planos oferecidos por operadoras de telefonia móvel dão acesso ilimitado a aplicativos de redes sociais e de mensagens e algum grau de viés de amostra, com as agências podendo ter checado mais conteúdo oriundo do Facebook, em razão da parceria com a plataforma que facilita aos usuários solicitarem verificação das informações distribuídas e denunciar a desinformação.
Assim, pela natureza das próprias plataformas, o texto foi o principal formato para a disseminação de desinformação (52,76% das ocorrências), seja sozinho ou muitas vezes acompanhando de imagens e vídeos, que foram por si o formato principal em 24,74% e 20,04% das ocorrências, respectivamente.
“Ainda que o texto seja naturalmente o formato mais recorrente, visto que funciona como base e complemento a outros materiais, chama a atenção a quantidade de imagens associadas aos conteúdos de desinformação e presentes em um quarto do corpus deste estudo”, escrevem as autoras. “O emprego de imagens junto aos textos tem, entre suas funções principais, ilustrar e enfatizar de forma seletiva os elementos de desinformação, além de estimular a fixação de uma crença e atribuir a desinformação a personalidades públicas”.
Diante disso, em suas considerações finais, as pesquisadoras frisam que embora a mentira não seja nem de longe uma invenção moderna, as tecnologias da modernidade e uma lógica que beneficia impostores, inclusive financeiramente, favorecem sua disseminação, criando o que citam “um ambiente de absoluta insegurança informativa”.
“Esse ambiente de desinformação já era um grande problema, mas no contexto da pandemia se torna fulcral porque traz consequências efetivas para o sistema de saúde, para o comportamento das pessoas e, no limite, para a própria vida”, justificam. “A desinformação depende essencialmente da manutenção dos preconceitos e das ‘crenças que paralisam a capacidade de pensar e de agir livremente’. É para manter o dogmatismo que os conteúdos falsos são produzidos e compartilhados, pois sujeitos pouco esclarecidos são mais fáceis de persuadir e motivar. Mais do que a informação particular de cada conteúdo, impor-tam as crenças e convicções que estão sendo alimentadas, bem como os interesses políticos e econômicos daqueles que produzem e compartilham mentiras e fraudes”.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência