A pseudociência dos médicos negacionistas na pandemia

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2 nov 2020
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Durante a pandemia de COVID-19 no Brasil, um grupo negacionista chamou a atenção do público e da mídia pela sua formação, supostos “profissionais da saúde” de diversas especialidades. Intitulado “Médicos pela vida” (MPV), ele se destacou pela defesa da prescrição do inútil, e perigoso, “tratamento precoce” da doença e pelo discurso antivacina, contribuindo ativamente para que o país tivesse um dos piores resultados no enfrentamento da crise sanitária do planeta, com mais de 685 mil mortos e uma taxa de mortalidade cerca de quatro vezes maior que a média global – 3.196 vítimas por milhão de habitantes, contra 826 por milhão no mundo inteiro, em dados do último dia 31 de outubro.

E agora, um levantamento publicado pelo periódico Ciência & Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), revela que adeptos de práticas pseudocientíficas, como homeopatia e acupuntura, aparecem em maior número no grupo do que seria esperado pela presença dessas especialidades na comunidade médica nacional. Os autores do estudo - Isaura Wayhs Ferrari, Márcia Grisotti, Larissa Zancan Rodrigues, Marcella Trindade Ribas, Cristiane Uflacker da Silva, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e Lucas de Carvalho de Amorim, da Universidade de Brasília (UnB) – argumentam que esta sobrerrepresentação é um indicativo da convergência do discurso dos praticantes da chamada “medicina alternativa” com o de movimentos negacionistas, num fenômeno que merece investigações mais aprofundadas dados seus impactos nas decisões de políticas públicas e na sociedade.

“De forma geral, percebe-se que o discurso está amparado em uma sintaxe científica, ou seja, em expressões, termos específicos e a referência constante aos ‘fatos’ que comprovariam suas alegações (apesar de estes não serem citados). Entretanto, trata-se de uma estrutura utilizada de forma superficial e frágil, servindo apenas como um suporte para carregar as crenças, críticas e projetos políticos defendidos, tornando-os palatáveis à leitura do grande público ou de autoridades políticas. Assim, advogam para si o caráter de objetividade científica e de ‘verdadeira ciência’ em suas colocações”, escrevem.

 

Infame notoriedade

O MPV ganhou notoriedade em 23 de fevereiro de 2021 com a publicação, em alguns dos principais jornais do país, de um “informe publicitário” – peças pagas “disfarçadas” de notícia – a favor do chamado “tratamento precoce” da COVID-19. Num momento em que o Brasil via o número de casos e mortes da doença disparar, voltando a uma média móvel semanal de mais de mil óbitos por dia rumo ao recorde de mais de 3 mil pouco mais de um mês e meio depois, o grupo preconizava o uso de fármacos já descartados pela ciência, como hidroxicloroquina e ivermectina, em nome de uma suposta “autonomia médica” que convenientemente ignorava, e ainda ignora, o juramento primeiro da profissão, o hipocrático “Antes de tudo, não cause dano” (“Primum non nocere”).

Para surpresa de ninguém, as investigações da CPI da Pandemia no Senado Federal revelaram que entre os principais patrocinadores da organização negacionista está a Vitamedic, empresa farmacêutica fabricante de ivermectina que viu seu faturamento quase triplicar entre 2019 e 2020, passando de R$ 200 milhões para R$ 540 milhões, com as vendas do remédio explodindo, de pouco mais de 2 milhões de unidades (com quatro comprimidos cada) para 62 milhões.

A atuação prejudicial do MPV na condução da pandemia no Brasil vinha de muito antes do infame “informe publicitário”. Num primeiro manifesto ainda em maio de 2020, o grupo propagandeava a necessidade de oferecer um “tratamento pré-hospitalar da COVID-19” com um “protocolo medicamentoso” incluindo a hidroxicloroquina. Além disso, em setembro de 2020 o líder do movimento, o oftalmologista Antônio Jordão de Oliveira Neto, participou de audiência com o presidente Jair Bolsonaro junto com outros médicos representantes do Conselho Federal de Medicina (CFM) e de fora do Ministério da Saúde, no que a CPI do Senado demonstrou ser o ato inaugural do “gabinete paralelo” que assessorou, irregular e perniciosamente, o governo federal em sua trágica condução da pandemia no país.

 

Negacionismo pseudocientífico

No estudo publicado no Ciência & Saúde Coletiva, os autores liderados por Ferrari primeiro identificaram 276 médicos catalogados no site do MPV como integrantes do grupo. Depois, levantaram as informações acadêmicas e profissionais desses médicos junto ao CFM e à Plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). As buscas, contam, teve como objetivo “investigar aspectos relativos à especialização profissional; presença de currículo Lattes; realização de pós-graduação; produção acadêmica; participação em eventos científicos; e caráter da instituição de formação superior (pública ou privada)”.

Segundo os pesquisadores, o MPV é composto por 56,5% de homens e 43,5% de mulheres, proporção similar à demografia dos médicos brasileiros em geral, de 53,4% homens e 46,6% mulheres. Dos que tinham currículo Lattes, 55% disseram ser formados em universidades públicas, proporção mais que o dobro dos 25,8% constatados em âmbito nacional. A concentração pelos estados também difere bastante da distribuição nacional. Os integrantes do MPV concentram-se principalmente em Rondônia, Sergipe e Pernambuco, com baixa representação no Distrito Federal, Paraíba, Goiás e São Paulo.

Mas é na especialização que as distorções são maiores. Apesar de a proporção de especialistas no grupo (59,4%) estar próxima do cenário nacional (61,3%, contra 38,7% de médicos ditos “generalistas”), as áreas mais sobrerrepresentadas  foram homeopatia e acupuntura, com um valor percentual oito e seis vezes maior, respectivamente, do que seria esperado pela quantidade de médicos especializados nestas categorias no Brasil como um todo.

Em sua discussão sobre os achados, os autores argumentam que o papel central que homeopatas e acupunturistas têm no MPV está relacionado à aprovação pelo Ministério da Saúde, em 2006, da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde (SUS). “A incorporação dessas práticas no SUS é encarada como fundamental, uma vez que se observa a crescente legitimação no âmbito social”, comentam. Legitimação que põe no mesmo patamar práticas baseadas em evidências e pseudociências oferecidas como “alternativa à medicina especializada e tecnocientífica”, “adversas à medicina científica” e que hoje compreendem “qualquer forma de cura que não seja propriamente biomédica”.

“Nesse sentido, observa-se uma aproximação às declarações dos MPV, que, de forma geral, defendem a abordagem holística do indivíduo e uma assistência humanizada, alegando afastamento em relação a interesses e empreendimentos comerciais e políticos envolvendo a ‘indústria farmacêutica’, responsável pelo desenvolvimento e ampla venda de vacinas contra a COVID-19”, acrescentam. “O ponto que se sobressai, portanto, diz respeito à natureza da relação entre hesitação vacinal, a defesa do tratamento precoce e a prática de terapias alternativas/integrativas/complementares", ponderam os autores. "A defesa e promoção de terapias alternativas ao modelo biomédico de medicina, identificadas nas afirmações dos MPV, encontram boa aceitação nos discursos antivacinação... A defesa de um modelo de saúde integral, holista e humanizada é apropriada, muitas vezes, equivocadamente, criando uma arma potente contra práticas de imunização através de vacinas. A crítica e insatisfação com o modelo biomédico, com a superespecialização e com sua proximidade à indústria farmacêutica, observada nas últimas décadas no Brasil, neste caso, são convenientemente utilizadas para atacar a vacinação e defender o tratamento precoce”.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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