"O primeiro pecado da Humanidade
foi a fé incondicional;
a primeira virtude foi a dúvida."
Carl Sagan
Em todas as decisões que precisamos tomar com informações limitadas, não há como evitar o risco de estarmos errados. E mesmo sabendo disso, estamos sujeitos a dois vieses cognitivos bem recorrentes, o de excesso de confiança e o de confirmação. Parodiando o lendário general romano Pompeu, podemos dizer que durante a vida cotidiana “decidir é preciso, permanecer em dúvida não é preciso”. Resolvemos nossa incerteza simplesmente com o velho e bom "chute", que os mais esotéricos chamam de intuição, levando mais em conta a subjetividade das emoções do momento do que dados do mundo objetivo, e uma forma adequada de analisá-los.
Os vieses são atalhos mentais que ocorrem inconscientemente, derivados de adaptações evolutivas do processo de tomada de decisão para circunstâncias em que nossa espécie precisou decidir caprichar na eficiência, e não necessariamente na eficácia. Uma pesquisa da Universidade de Oregon, realizada no final dos anos de 1970, pelo trio Fischhoff, Slovic e Lichtenstein nos EUA, chocou o mundo quando mostrou que pessoas estavam erradas em até 70% das vezes… Mesmo quando afirmavam não terem quaisquer dúvidas para tomar uma decisão.
Esta tendência de olhar para o mundo sem se dar ao trabalho de duvidar das próprias convicções advém do que o psicólogo e ganhador do Prêmio Nobel de Economia Daniel Kahneman chamou de “sistema 1” do cérebro em contraposição ao “sistema 2”, que seria nosso processamento mais lento, porém mais eficaz, para compreensão da realidade.
O lento progresso da ciência e sua longa jornada contra preconceitos e misticismos em prol de uma análise dos fatos baseada na dúvida como pedra de toque pode ser resumido numa tentativa do sistema 2 de reduzir os equívocos do sistema 1. A ciência tem um olhar metódico e não imediatista. Prefere observação sistemática e experimentos planejados a falaciosas generalizações apressadas. A partir disso, teve a ousadia de questionar silogismos, o “pensamento venerável”, a razão pura, a especulação platônica, para conquistar um saber prudente, humilde e, principalmente, que se questiona continuamente à mercê não apenas da lógica, mas sobretudo das evidências.
Esta maneira cética de se tornar ciente, de conhecer algo a partir da validação de testes objetivos e replicáveis, consolidada por Galileu Galilei, é tão importante para o bem-estar de todos hoje em dia quanto era no século 16, na batalha contra o obscurantismo da Idade Média. Vieses são naturalmente parte da forma de pensar humana, só atenuados mediante treinamento e, assim, sempre dificultam a construção de conhecimentos por meio do método científico.
Carl Sagan já alertava em sua última obra, sua biografia intelectual "O mundo assombrado pelos demônios", de 1995, que a falta de uma educação entusiasta da forma de pensar científica pode gerar problemas sérios de inserção e convívio numa sociedade cujo funcionamento depende intensamente de ciência e tecnologia. Sem o devido treinamento educacional, vieses cognitivos acarretam uma verdadeira pandemia de ultracrepidanismo mundo afora, especialmente nas redes sociais.
Sob a proteção do anonimato e do distanciamento físico trazido pelas redes, a tendência de aceitar apenas o que conforta nossas emoções faz com que milhares de pessoas passem a integrar uma onda de negação de pesquisas sistemáticas que geram conclusões baseadas em evidências. Foi exatamente o que aconteceu de maneira assustadora nos momentos mais tensos da crise da COVID-19, com pessoas negando a importância da vacina e até a existência da doença. Essa impostura intelectual inibe debates, encerra certos temas como tabus, silencia o contraditório e rejeita toda e qualquer informação usando, como critério, apenas a conveniência gerada pelos vieses do sistema 1.
A triste ironia de nossa época é que aquela luz no fim do túnel que o Iluminismo fez surgir entre os que ousavam saber (“sapere aude” foi um dos lemas dos iluministas) encontra-se ofuscada quando vivemos num tempo em que o acesso a obras científicas não depende mais de poucas bibliotecas físicas. Como o acesso ao conhecimento é menos importante do que o manejo cognitivo das informações disponíveis, não se deve esperar maiores realizações apenas em decorrência da diminuição dos custos de acesso.
Mais uma vez lembrando Carl Sagan, a educação com ênfase científica é necessária como treinamento básico para viver no mundo contemporâneo. Fazemos parte da multidão que acredita estar completamente certa sobre determinados assuntos? Observamos apenas informações que reforçam nossas convicções? Kahneman, Fischhoff, Slovic e Lichtenstein, em suas pesquisas sobre os vieses cognitivos, verificaram que frequentemente acometem quem acha que sabe muito sobre temas em que não têm treinamento específico. Há ainda outro grupo, menor, que admite não saber e vive a vida sem se importar com ciência e tecnologia, e ainda mais outro, muito pequeno, formado por pessoas treinadas e convencidas de que é preciso rever sempre argumentos e conclusões à luz de novas evidências validadas.
Durante a vida, oscilamos entre esses grupos, mas para sabermos a qual pertencemos hoje, precisamos responder “sim” à seguinte pergunta: "eu deixaria de acreditar no que me parece, hoje, o fato mais importante de minha vida, se me fosse apresentada uma evidência validada apontando meu equívoco?" A necessidade desse "sim" é a única certeza de um cientista. O resto é dúvida.
Romero Maia é gestor de pesquisas do IBGE