Maioria das pessoas não precisa evitar glúten

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15 jun 2022
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Glúten, embora muita gente tenha medo dele (medo que o mercado de produtos “gluten free” ama e estimula), só é um problema real para pessoas com condições de saúde muito específicas, sendo a mais conhecida a doença celíaca. Pesquisas recentes apontam a possibilidade de existir um tipo raro de sensibilidade ao glúten não ligada à doença celíaca, além de uma dificuldade na digestão de certos carboidratos que pode deixar certas pessoas com inchaços e pela qual o glúten leva (sem merecer) a culpa.

Ainda assim, é desproporcional o número de pessoas que, assustadas pelo diz que diz estimulado pela indústria, vê no glúten o fator nevrálgico para o aparecimento das mais diversas patologias, variando de problemas gastrointestinais a problemas neurológicos e, claro, o ganho de peso.

 

O que é? Vicia?

Glúten é definido como uma família de proteínas encontradas nos grãos do trigo (gliadina e glutenina, principalmente), aveia (avenina), centeio (secalina) e cevada (hordeína). As proteínas do glúten são caracterizadas pelo alto teor dos aminoácidos prolina e glutamina, e são resistentes à ação de certas enzimas presentes no trato gastrointestinal.

Buscando rapidamente no YouTube, você verá diversos comentaristas que sustentam a hipótese de que glúten é um alimento viciante. Transcrevendo, de maneira resumida, o vídeo de um ávido defensor da dieta sem glúten:

“O trigo ocupa receptores opioides, os mesmos onde as drogas agem. Ao ocupá-los, isso gera prazer. É por isso que retirar o pão da dieta é tão difícil. Quantas pessoas, com fome, passam perto de uma padaria e não conseguem resistir no momento que sentem aquele cheiro de pão. Além disso, muitas pessoas têm prazer na hora de mordê-lo, chegando a gemer. Isso ocorre porque a gluteomorfina ocupa os receptores opioides. Em outras palavras, o trigo causa prazer.”

O leitor encontra algo de errado nessa fala? Não? Deixe-me elucidar. Se o alimento equivale a uma droga viciante, é de imaginar que pessoas viciadas em glúten consumirão quaisquer alimentos que sejam fonte desta proteína, caso dos pães, massas e, por que não, a farinha de trigo pura. Possivelmente, neste momento você imaginou o quanto é absurda a imagem de uma pessoa sentada à mesa, enfiando colheradas de farinha de trigo crua, pura, na boca, babando uma saliva esbranquiçada e gemendo de prazer. É um despautério.

É verdade que existem pesquisas sobre os efeitos das exorfinas – moléculas de ação semelhante à dos opioides, produzidas pela digestão de certas proteínas, entre elas o glúten – na saúde, mas a maior parte desses estudos envolve animais de laboratório (não gente), ou grupos muito pequenos de humanos. A conclusão geral é de que mais estudos são necessários.

No estudo de LISTER, J. (2015), os pesquisadores concluíram que exorfinas provenientes de alimentos são bioativas e afetam alguns traços do comportamento, como respostas espontâneas, memória e percepção de dor. Vale destacar que a investigação foi realizada em modelo animal. No estudo de TAKAHASHI, M. et al. (2000), os autores injetaram um tipo de exorfina, a A5, diretamente no cérebro de ratos e observaram que a substância reduziu a capacidade de perceber a dor. Os pesquisadores deram a mesma substância por via oral para os roedores e, como resultado, foi possível verificar que a exorfina A5 modificou o aprendizado e o comportamento de ansiedade durante testes de estresse.

Um dado curioso: o espinafre também apresenta uma exorfina com efeito opioide, no caso, a rubiscolina. Não sei quanto a vocês, mas nunca vi pregações para retirá-lo da alimentação e, muito menos, pessoas viciadas em espinafre, com exceção do Popeye.

 

“Retirei glúten e melhorei”

Por incrível que pareça, acredito que isso seja verdade. Há inúmeros especialistas que citam a melhora do quadro dos seus pacientes quando há a exclusão do glúten. Contudo, a soma de relatos isolados não é suficiente para demonstrar que o glúten deve ser banido da alimentação em geral. Relembrando, uma coisa acontecer depois de outra não prova que a “outra” causou a “uma”. Pode ser mera coincidência, ou efeito psicológico – a pessoa espera se sentir melhor depois de cortar o glúten, e é a expectativa, não a dieta em si, que causa o bem-estar. Para escapar dessas possibilidades de confusão, precisamos de estudos bem controlados.

Além da doença celíaca e da (ainda muito mal compreendida) sensibilidade ao glúten não-celíaca (SGNC), há duas condições conhecidas em que o glúten leva a culpa sem ser, de fato, o causador do problema.

Uma é a Fodmaps, acrônimo para Fermentable Oligosaccharides, Disaccharides, Monosaccharides and Polyols (oligossacarídeos fermentáveis, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis), grupo de carboidratos que, mal digeridos, pode causar uma produção excessiva de gás, distensão abdominal, fezes amolecidas, constipação e dor.

Adivinhe: pessoas que apresentam esses problemas digestivos podem se beneficiar de uma dieta “livre de glúten”, não necessariamente por conta dele, mas sim pela retirada da principal fonte de glúten (o trigo) e, por tabela, dos carboidratos fermentáveis presentes nele.

A outra condição é, claro, a alergia alimentar ao trigo (AAT), uma resposta imunológica descompensada ao cereal. Diferentemente da doença celíaca, indivíduos com AAT são sensíveis a quaisquer proteínas presente no trigo (albuminas, globulinas, gluteninas e gliadinas).

A recomendação dietoterápica vigente para essa patologia é a exclusão total de alimentos que possam apresentar trigo em sua composição.

 

Sem glúten é ruim?

Ainda não sabemos ao certo. Há estudos, ainda que conduzidos com pequeno número de voluntários, que identificaram uma mudança na microbiota intestinal de indivíduos saudáveis que passaram por uma dieta sem glúten. Essas mudanças podem, em tese, afetar a absorção de nutrientes importantes ou favorecer a disseminação de bactérias indesejáveis.

No meu mundo utópico, caso o paciente quisesse retirar o glúten da dieta, ele passaria por um nutricionista sério e capaz de substituir os produtos contendo glúten por outros de bom valor nutricional. Infelizmente, isso não é o que acontece.

Segundo a Sociedade Europeia Para o Estudo da Doença Celíaca, dietas sem glúten são, geralmente, baixas em fibra, o que pode levar à constipação e à perda dos benefícios para a saúde proporcionados pelas fibras solúveis e insolúveis.

Além disso, foi observado que crianças que seguem dietas livre de glúten apresentam um maior consumo de açúcares simples, gorduras, proteínas e calorias, quando comparadas ao grupo controle. Por fim, vale destacar que muitos produtos sem glúten apresentam um maior índice glicêmico, um maior aporte de gorduras e uma menor concentração de proteínas quando comparadas com produtos/refeições contendo glúten.

A lição que tiramos disso é clara: até o momento, não há dados que suportem a retirada do glúten da dieta, a menos que você apresente uma das patologias citadas acima. Se não for o caso, fique à vontade para comer o seu pãozinho - de preferência integral, para aumentar o aporte de fibras – sem culpa.

Mauro Proença é nutricionista

 

REFERÊNCIAS

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