Em 1896, o químico sueco Svante Arrhenius aventou a possibilidade de que a queima de combustíveis fósseis pelas máquinas usadas nas mais diversas atividades humanas acabaria por aumentar a quantidade de gases de efeito estufa na atmosfera terrestre, o que, com o tempo, levaria a um aumento da temperatura média global. À época, essa ideia parecia mera especulação. Como poderíamos afetar um sistema tão grande e complexo como o clima? Ora, mesmo se tivéssemos todo esse “poder”, as mudanças climáticas deveriam ocorrer ao longo de dezenas de milhares de anos. Nada com que precisássemos nos preocupar, portanto.
Nas décadas recentes, com o avanço dos estudos sobre clima, geologia e computação – para desenvolver modelos matemáticos cada vez melhores na tarefa de descrever e simular eventos atmosféricos –, percebeu-se que o aquecimento global decorrente de emissões antropogênicas (provenientes de atividades humanas, como a queima de combustíveis fósseis nos automóveis) de gases de efeito estufa é real: em 1992, de acordo com esta linha do tempo, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu que a elevação da temperatura média mundial era um assunto sério. Desde então, a comunidade internacional se vê às voltas com o problema de estabelecer – e, principalmente, cumprir – tanto metas como ações efetivas para mitigar o problema.
Nesse meio-tempo, é claro, o planeta não espera. As duas últimas décadas (2001-2020) foram as mais quentes já registradas na história recente da Terra, desde quando se começou a medir sistematicamente a temperatura em múltiplas localidades, por volta de 1880. De fato, existem meios de estimar até mesmo a temperatura média mundial ao longo dos últimos milênios e, ainda assim, os valores recentes são os mais altos de todo o período. Hoje, temos a temperatura média mundial em 14,6oC, o que já é cerca de 1,1oC mais alta que a média calculada para o período de referência dos chamados “anos pré-industriais” (1850-1900), que marcam o início das medidas sistemáticas de temperatura global e não se referem, propriamente, ao início da Revolução Industrial.
Para quem não está familiarizado com o problema, os gases de efeito estufa, como o dióxido de carbono (CO2) e o metano (CH4), impedem que parte do calor que a Terra, uma vez aquecida pelos raios do Sol, emite de volta em direção ao espaço atravesse atmosfera, de modo que contribuem para o chamado “efeito estufa”. Esse efeito é, em princípio, positivo para nossa vida, sendo responsável por manter a variação de temperatura entre o dia e a noite, por exemplo, dentro de uma faixa relativamente confortável. No entanto, as atividades humanas que emitem anualmente grandes quantidades desses gases vêm aumentando significativamente suas concentrações atmosféricas e empurrando a temperatura média global para fora da zona de conforto – humana e de inúmeras outras espécies.
Consequentemente, surgem as mudanças climáticas, que são modificações recentes nos padrões meteorológicos de diferentes regiões do planeta. No que se refere às ações para tentar frear o processo, um dos marcos, considerado um importante avanço nas negociações internacionais, é o Acordo de Paris, assinado em 2015, na França. Com ele, convencionou-se limitar o aquecimento global a um máximo de 2,0oC até o fim do século atual (2100), mas concentrar esforços para que esse aquecimento fique dentro de um alvo mais baixo: 1,5oC acima da referência pré-industrial.
Inércia climática
Uma concepção incorreta, que pode estar presente no imaginário das pessoas quando pensam sobre as emissões antropogênicas e seus efeitos no aquecimento global, é a de que, se encerrássemos as emissões de gases de efeito estufa hoje, amanhã mesmo a temperatura média global começaria seu lento processo de declínio. Há dois problemas em relação a essa ideia: a primeira é que ela está incorreta, como veremos; a segunda é que acreditar nela pode gerar a falsa sensação de que é sempre possível “esperar até amanhã” para fazer alguma coisa.
A primeira Lei de Newton, que muita gente aprendeu na escola – a chamada “Lei da Inércia” –, guarda uma lição interessante, que podemos simplificar assim: ela nos diz que para parar ou mudar a direção de um objeto em movimento, é preciso que uma força atue sobre ele. Veja o que acontece em um carro: quando ele está em movimento acelerado para frente e o motorista simplesmente tira o pé do acelerador, o veículo segue em movimento, por inércia; caso o motorista não tome uma atitude na sequência (de frenagem ou de nova aceleração), são apenas as forças de atrito e resistência do ar que farão o carro parar, e só depois de um certo tempo.
No clima, ocorre algo semelhante, o que se chama “inércia climática”: toda a quantidade de gases de efeito estufa emitida, digamos, nos últimos 12 meses, não será instantaneamente removida da atmosfera caso se decida encerrar as emissões hoje. Assim, o aumento da concentração atmosférica desses gases, causado pelas emissões do passado recente, continuará contribuindo para a elevação da temperatura média global no futuro, até que um novo equilíbrio climático se estabeleça. O tempo necessário para isso depende de diversos fatores geológicos, como as trocas de calor entre o ar e os oceanos e os efeitos do derretimento subsequente da cobertura de gelo no planeta (que, pela sua cor clara, atua como um refletor natural para o calor incidente sobre a Terra).
Pico de aquecimento
Na última semana, um artigo publicado na revista científica Nature Climate Change salienta a importância desse fenômeno, destacando que, para que se possa avaliar adequadamente o futuro da temperatura média global, é necessário levar em consideração tanto os efeitos inevitáveis das emissões antropogênicas de gases de efeito estufa já realizadas como as estimativas de novas emissões ao longo das próximas décadas, que estarão associadas às decisões políticas e econômicas da sociedade, como, por exemplo, a implementação (ou não) de fontes de energia que não sejam baseadas em queima de combustíveis fósseis.
Por meio desse mecanismo de inércia climática, torna-se evidente que, mesmo em uma condição hipotética na qual as emissões antropogênicas de gases de efeito estufa fossem encerradas hoje, a temperatura média global continuaria a subir antes de estabilizar e, por fim, diminuir. No artigo indicado, os pesquisadores aplicaram modelos climáticos a esse cenário ideal (que supõe encerramento das emissões em 2021) para estimar que o pico do aquecimento global atingiria 1,5oC e a temperatura média mundial no final deste século (2100) ficaria próxima do valor atual.
Mas, como todos sabemos, as emissões antropogênicas de gases estufa não pararam de repente no ano passado. Então, o estudo também calculou os dois parâmetros anteriores (temperaturas de pico e média mundial em 2100) para casos em que essas emissões venham a ser eliminadas em diferentes momentos do futuro. Porém, para esse exercício, há ainda outra variável importante que precisa ser analisada: as escolhas políticas e socioeconômicas que serão adotadas antes do encerramento das emissões.
Os diferentes cenários considerados pelos pesquisadores foram importados de padrões utilizados em estudos prévios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) – um grupo de trabalho internacional que é referência para estudos do clima e do aquecimento global –, e variam desde os mais otimistas (em que nossa sociedade adota ações, processos e produtos sustentáveis e com mínimo impacto ambiental) até os mais pessimistas (em que persiste um consumismo despreocupado com o meio ambiente e tecnologias baseadas em emissões de gases estufa).
Assim, considerando que o encerramento das emissões antropogênicas dos gases estufa ocorra em 2040, associado a um cenário socioeconômico intermediário entre o muito otimista e o muito pessimista vigorando até lá, o aquecimento de pico e o aumento da temperatura média global para o fim do século podem atingir, respectivamente, 1,9oC e 1,4oC, ambos, novamente, em relação ao período de referência da segunda metade do século 19. Caso as emissões se encerrem apenas em 2060, mantendo-se as mesmas condições socioeconômicas intermediárias, os dois valores passariam para 2,3oC e 1,8oC, respectivamente.
Como você pode imaginar, modificando-se o cenário socioeconômico para outro mais otimista ou mais pessimista, esses valores melhoram ou pioram. Além disso, é claro que esses incrementos na temperatura média mundial são calculados por meio de modelos matemáticos, que, portanto, sempre oferecem uma margem de erro: para um intervalo de confiança de 66%, essa margem, para os dados aqui discutidos, fica abaixo de 0,5oC.
Há quem diga que variações na temperatura média global de apenas alguns graus – ou de décimos de graus, em algumas comparações – geram efeitos insignificantes sobre o clima do planeta. Não é o caso, uma vez que ínfimas variações globais são resultantes de variações locais que podem ser grandes ou pequenas, a depender da região do planeta que analisamos. Assim, localidades específicas podem passar a sofrer tempestades mais frequentes e intensas, ondas de calor de maior duração, invernos mais severos e falta de chuva, por exemplo. Essa ideia de insignificância das mudanças na temperatura mundial é somente uma armadilha de argumentações negacionistas, como já discutimos anteriormente na Revista Questão de Ciência. As consequências do aquecimento global exigem preocupação e esforços para freá-lo, ainda que seja para evitar o incremento projetado em apenas décimos de grau Celsius.
Ações significativas
Sabendo disso, o que os dados aqui discutidos mostram é que, infelizmente, já estamos vivendo no limite das condições de validade do Acordo de Paris: afinal, mesmo o cenário idealizado (que simulou o que aconteceria se as emissões tivessem cessado em 2021) já leva a um aquecimento de pico que atinge o alvo mais baixo de aquecimento “autorizado”, ainda que a temperatura média no final do século acabe confortavelmente dentro das metas.
Para os cenários mais realistas, que preveem ações socioeconômicas intermediárias antes do encerramento das emissões antropogênicas, fica evidente que os números de aquecimento obtidos beiram os limites do acordo. É verdade que ainda há esperanças, mas isso ocorre apenas quando se estima o encerramento das emissões para meados de 2040. Portanto, está lançado o desafio para os próximos 20 anos: é preciso, por exemplo, fomentar ações globais que modifiquem profundamente tanto o consumismo desenfreado de recursos naturais como as atividades humanas geradoras das emissões dos gases de efeito estufa, o que passa, dentre várias outras medidas, por alterações no nosso sistema de transporte e de geração de energia elétrica.
Uma característica peculiar do Acordo de Paris é que a decisão pelo estabelecimento de um valor máximo para o aquecimento global foi coletiva, mas são os países signatários, individualmente, que devem declarar as ações que pretendem executar para contribuir com a meta. Isso indica que o comprometimento das autoridades precisa ser constantemente cobrado pela comunidade científica e pela sociedade civil. É preciso lembrar que mesmo esse aquecimento “aceitável” causará mudanças climáticas e graves impactos sociais.
Não é à toa que o presidente da Conferência do Clima de 2021 (COP 26), Alok Sharma, alertou que, com base nos compromissos assumidos pelos diferentes países até o momento, ainda se mantém “viva” a meta de 1,5oC do Acordo de Paris, “mas com fracos sinais vitais”. Ou seja, é necessário que os esforços globais sobre o assunto deixem de ser apenas objeto de discurso e passem para ações efetivas na redução de emissões dos gases de efeito estufa no curto prazo. De outro modo, não vamos apenas deixar de cumprir o Acordo de Paris, mas vamos ultrapassá-lo com bastante folga.
Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)