Tudo começou com um cristal. Afinal, que mal uma simples pedrinha pode fazer? Não que fosse estranha a esoterismos. Como muitos de sua geração, cresceu lendo seu horóscopo diariamente nos jornais e sites, ouvindo como a astrologia é coisa de gente jovem, bonita, legal e descolada. Tanto que pediu para uma amiga fazer seu mapa astral, e ficou impressionada em como achou que lhe descrevia tão bem, exatamente como esperava para uma libriana como ela.
Já na academia que frequentava, o papo era outro. Carboidratos eram um veneno. Açúcares então, nem pensar. Pode nem a frutose daquela sua maçã diária de que tanto gostava. Isso sem contar os venenos “de verdade” que colocavam na comida: agrotóxicos, transgênicos e que tais. Por isso, procurava só comprar produtos orgânicos, ovos de “galinhas felizes”, reduzindo o consumo de carnes, “cheias de hormônios e antibióticos”. Compensava as possíveis deficiências nutricionais da dieta com suplementos, sem deixar de lado, claro, o colágeno para a pele.
A personagem é fictícia, mas suas atitudes e decisões, bem reais e comuns num mundo em que o bem-estar se transformou, de uma sensação subjetiva de satisfação pessoal, em uma poderosa ferramenta de marketing, que se aproveita de sentimentos e atitudes inerentes à condição humana, como desejo, medo e tristeza, para alimentar lucrativos mercados, de livros de autoajuda a “milagrosos”, e caríssimos, cremes “antienvelhecimento” (não é por nada que o apelo à emoção também é uma estratégia muito usada na disseminação de desinformação e fake news, dos movimentos antivacina às mais mirabolantes teorias conspiratórias).
E não é pouca coisa. Levantamento feito em agosto de 2020 pela consultoria McKinsey & Company, cujo relatório foi divulgado em abril do ano passado, estima que o mercado do bem-estar movimenta US$ 1,5 trilhão (mais de R$ 7,2 trilhões) anuais em todo mundo, e cresce a uma taxa de 5% a 10% ao ano. São gastos com saúde que vão além de remédios e suplementos, e incluem telemedicina e aparelhos pessoais de monitoramento; boa forma, como matrículas e mensalidades de academias; nutrição; aparência (cosméticos e procedimentos não cirúrgicos de beleza, entre outros produtos e serviços); sono (de substâncias supostamente indutoras, como suplementos de melatonina, a travesseiros, colchões e aplicativos de monitoramento); bem como programas de meditação e mindfulness.
Ainda de acordo com o levantamento da McKinsey, que ouviu cerca de 7,5 mil consumidores em seis países – EUA, Reino Unido, Alemanha, Japão, Brasil e China –, o grosso dos gastos em produtos e serviços de bem-estar se concentra na rubrica “saúde”, numa proporção de vai de 43,1% entre os alemães a 64,6% entre os brasileiros, em mais uma amostra da força do setor de suplementos alimentares, como vitaminas e fórmulas emagrecedoras, um mercado que sozinho movimenta hoje US$ 110 bilhões anuais globalmente e deve chegar a US$ 327,4 bilhões em 2030.
“Os consumidores estão cada vez mais cuidando da saúde pelas próprias mãos: estamos vendo um crescimento em cuidados direcionados e guiados por dados, aplicativos que ajudam os consumidores a marcar suas consultas, conseguir as prescrições que necessitam e de aparelhos que os ajudam a monitorar sua saúde ou sintomas entre as consultas médicas”, destaca o relatório da McKinsey.
A pesquisa da consultoria também revelou uma maior preocupação dos consumidores com seu bem-estar nos dois a três anos anteriores ao levantamento, especialmente no Brasil e na China, onde 74,1% e 66,6% dos ouvidos, respectivamente, disseram ter aumentado a prioridade que dão a estes gastos ao longo deste período. Elevação de interesse que, para eles, também está se traduzindo em uma melhor percepção de sua qualidade de vida, com 61,7% dos brasileiros e 59% dos chineses considerando estarem se sentindo melhor no momento da entrevista, do que dois a três anos antes.
“O mercado global do bem-estar está saudável e crescendo”, conclui o relatório da McKinsey. “Em todas as categorias que pesquisamos, mais consumidores disseram que vão gastar mais em bem-estar do que os que disseram que gastarão menos. A maioria dos consumidores planejava aumentar seus gastos especialmente em algumas categorias, incluindo estimuladores de memória/cérebro, produtos antienvelhecimento, suplementos de beleza, procedimentos cosméticos não invasivos, nutrição (alimentos esportivos, sucos desintoxicantes, coaches de nutrição e alimentos fortificados) e ofertas de meditação e mindfulness”.
“Marketing do medo”
Um dos segredos por trás deste crescimento é o chamado “marketing do medo”, aponta Nick Tiller, pesquisador em fisiologia aplicada da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), em artigo recente para a revista Skeptical Inquirer.
“Na sua essência, o marketing baseado no medo é um argumento emocional”, explica. “O marketing do medo é tão eficaz porque ele explora o ‘viés de pessimismo’ – a tendência de nos anteciparmos a eventos negativos para melhor evitá-los. A publicidade baseada no medo estimula o sistema nervoso simpático, e a subsequente liberação de cortisol e adrenalina. Ansiedade é o resultado, seguida pela urgência em agir para ‘reduzir esta ansiedade adotando, continuando, descontinuando ou evitando um determinado curso de ação’. Em outras palavras, más notícias e medo chamam nossa atenção, ativando nossos instintos de sobrevivência primitivos e provocando poderosos efeitos psicológicos”.
Tiller cita como exemplo o setor de orgânicos, cujo discurso se baseia em alegações de que a agricultura tradicional usa pesticidas que podem provocar uma ampla gama de problemas de saúde, de alergias a câncer, além de os orgânicos serem livres de organismos geneticamente modificados (OGMs), apesar de pesquisas indicarem que estes não só são seguros como ambientalmente sustentáveis. Isso teria ajudado este mercado a mais de dobrar seu faturamento, apenas nos EUA, entre 2011 e 2020, saindo de US$ 27,3 bilhões anuais para US$ 61,9 bilhões.
“Alimentos orgânicos são frequentemente rotulados como ‘livres de pesticidas’, mas isso não é verdade. Eles simplesmente usam pesticidas orgânicos no lugar de sintéticos”, frisa Tiller. “Além disso, agências reguladoras, como a EPA (sigla em inglês para a Agência de Proteção Ambiental dos EUA), só testam os pesticidas sintéticos, permitindo aos produtores de orgânicos driblar a fiscalização. Pesticidas naturais também são em geral menos eficientes, exigindo concentrações maiores e mais aplicações para conseguir o mesmo efeito. Desta forma, pesticidas naturais e sintéticos provavelmente não apresentam diferenças em termos de riscos para a saúde, que são baixos em qualquer dos dois casos”.
O crescente interesse por produtos orgânicos também se insere no fenômeno mais amplo de que tudo que é “natural” é “bom”, em contraposição ao “artificial”, que seria inerentemente “ruim”. Noção tão disseminada que o relatório da McKinsey aponta com relação a suplementos alimentares que “consumidores ao redor do mundo disseram, em 41% contra 21%, que se tivessem que escolher entre suplementos mais naturais ou mais eficazes, escolheriam a opção mais natural”.
“A magnitude desta mudança (de atitude) é marcante. Os consumidores indicam uma preferência esmagadora por produtos naturais ou limpos, particularmente no Brasil e na China”, completa o texto.
Sem escapatória
Assim, não é surpresa que parte das pessoas passe a ver o bem-estar como um objeto de desejo e um objetivo de vida, o que seria algo bom – afinal, quem não que se sentir bem física e psicologicamente? – não fosse sua idealização como um estado irreal de felicidade e saúde permanentes que poderia ser alcançado via consumo e alinhamento a determinadas atitudes e práticas. Fruto de um discurso que a escritora, atriz, apresentadora de TV e ativista americana Annabelle Gurwitch chamou de “Big Wellness” (“grande bem-estar”, em tradução livre), numa referência às expressões “Big Pharma” e “Big Tobacco” que costumam designar os lobbies das indústrias farmacêutica e do fumo nos EUA.
“Não pensamos no Big Wellness como algo porque ele não é como o Big Pharma ou o Big Tobacco. O Big Wellness não é organizado como eles, mas ainda é uma indústria bilionária”, disse em recente entrevista à revista digital Salon, na qual relatou história que inspirou a personagem fictícia que abre este artigo.
“O ponto de inflexão para mim na percepção de quanto isso, como um vírus, infectou nossa psicologia foi quando fui convidada para um encontro na casa de uma grande amiga que é uma intelectual, uma pensadora crítica que era uma jornalista investigativa que deixou para trás sua carreira para seguir uma nova carreira fazendo astrologia, lendo mapas astrais e promovendo estas ‘festas da deusa’”, contou Gurwitch. “Minha amiga e todas nossas amigas nos juntamos e achamos que seria realmente divertido. Ela faz seu mapa astral e dá sua leitura. E a coisa é que foi realmente divertido. É assim que o grande bem-estar trabalha. Não é tanto dinheiro que vai te levar à falência, mas aí você compra o cristal. E isso não tem fim. Resistir é inútil. De alguma forma eles vão te pegar, com um suco, ou uma desintoxicação, ou um cristal, ou um cobertor felpudo ou um travesseiro. Não há escapatória nem por um minuto. Não estamos a salvo do Big Wellness”.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência