Arroz transgênico e viés ideológico

Artigo
27 abr 2022
DNA

 

Este texto nasceu a partir de uma discussão entre colegas de faculdade enquanto decidíamos o que iríamos comer. Sugeri hambúrgueres de soja e, para minha surpresa, isso irritou profundamente um deles, não pelo sabor do prato, mas por ele ser feito a partir de soja transgênica.

Como ambos somos teimosos, nossa discussão durou mais do que devia e, obviamente, não chegamos a lugar algum. Lembro que já fui radicalmente contra tudo que não fosse “natural”, inclusive contra a utilização dos organismos geneticamente modificados.

Em geral, mudamos com o tempo. Mas nem sempre para melhor. E afinal, será que eu fui corrompido pelas empresas de biotecnologia, ou é meu amigo que está preso em vieses políticos?

 

OGMs

Segundo a Embrapa: ”OGM. É um organismo que recebeu um gene de outro organismo doador. Essa alteração no seu DNA permite que mostre uma característica que não tinha antes. A transgenia é uma evolução do melhoramento genético convencional, que permite transferir características de interesse agronômico entre espécies diferentes, com o objetivo de torná-las resistentes a doenças ou mais nutritivas, entre outras inúmeras aplicações”.

Apesar das revisões sistemáticas e do posicionamento de diferentes órgãos regulatórios (Anvisa, FDA, EFSA, entre outros) sobre a segurança desses alimentos, muitas pessoas continuam receosas em consumi-los. Esse “medo” tem como base a ignorância – neste caso, falta de informação, sem sentido pejorativo – e fake news. Como era de se esperar, os contrários aos OGMs apontam artigos que manifestam preocupação com relação à segurança dos alimentos transgênicos, seja na área da saúde, seja no meio ambiente. Não me alongarei sobre esses aspectos, visto que o IQC possui inúmeros textos sobre o assunto (aqui, aqui e aqui), contudo, posso afirmar que realizar a quadratura do círculo é uma tarefa mais simples do que achar argumentos [sólidos] que demonstrem que OGMs são prejudiciais à saúde humana ou animal.

 

"Non-GMO"

A dificuldade em achar artigos recentes que advogassem contra, ou insuflassem medo em relação aos OGMs, me levaram ao Non-GMO Project – organização sem fins lucrativos dedicada a promover e proteger marcas de alimentos não transgênicos. Curiosamente, a organização também concede o selo “Non-GMO Project Verified”, uma certificação cobiçada no ramo dos produtos naturais, com mais de 50.000 produtos verificados, representando um montante superior US$ 26 bilhões em vendas anuais. Obviamente, este serviço é pago.

Se não bastasse este conflito de interesse homérico, a organização publicou, em 2014, a segunda edição do seu livro gigante – intitulado GMO Myths and Truths – onde os autores argumentam que as alegações favoráveis aos organismos geneticamente modificados são, no mínimo, questionáveis ou falsas. Dentre elas, os pesquisadores abordam a redução da utilização de pesticidas, o auxílio no combate às mudanças climáticas, o provimento de alimentos mais nutritivos e safras maiores para alimentar a população mundial.

Por fim, os autores concluem que os alimentos transgênicos não cumpriram suas “promessas” e, ainda, trouxeram novos desafios aos fazendeiros, caso de sementes super-resistentes aos herbicidas e pestes super-resistentes à toxina de Bacillus thurigiensis.

 

Riscos?

Indo ao encontro dos dados apresentados pelo Non-GMO Project, o Ministério do Desenvolvimento Agrário publicou, em 2015, o livro “Lavouras Transgênicas Riscos e Incerteza: Mais de 750 estudos desprezados pelos órgãos reguladores de OGMs”, que, por sua vez, se propõe a examinar as questões de biossegurança – supostamente negligenciadas pelas agências de avaliação do risco de transgênicos, caso da CTNbio e seus órgãos de registro e fiscalização – e demonstrar (ao longo de 750 estudos validados por revistas científicas) a falta de consenso na comunidade científica sobre o tema da transgenia e seus impactos tanto na saúde como no meio ambiente.

Ao final, os pesquisadores concluem que não é possível decretar que a tecnologia envolvida no desenvolvimento de alimentos transgênicos não trará riscos à saúde dos consumidores e ao meio ambiente. Além disso, reforçam que a maioria dos documentos revisados pelas agências regulatórias são provenientes de fontes enviesadas – seja por financiamento de empresas interessadas, ou por pesquisadores que fazem/fizeram parte do quadro de funcionários.

Igualmente importante, os autores escrevem que a publicação do livro não apoia ou reafirma as conclusões dos artigos revisados. Citando ipsis litteris:

“As hipóteses de riscos, ainda que reiteradas, não atestam a existência de problemas reais, assim como, no extremo oposto, afirmativas repetidas de ausência de riscos, baseadas em estudos inconclusivos, não oferecem segurança efetiva ao consumidor”.

Infelizmente, o tom supostamente neutro desaparece após alguns parágrafos. Os autores logo afirmam que há mais de dez estudos que apontam “de forma conclusiva” para efeitos tóxicos, notadamente hepático-renais, associados ao consumo de plantas transgênicas liberadas comercialmente.

Tanto o material do Non-GMO quanto o livro bancado com verba federal emulam uma aparência científica, mas apresentam nuances conspiratórias. Isso fica claro quando nenhuma dessas fontes reconhece os próprios vieses com relação ao tema: só o outro lado tem interesses econômicos; nós, os preocupados com a segurança dos consumidores, não; descreditam órgãos regulatórios em escala global, como se houvesse uma conspiração mundial a favor dos OGMs; e realizam o cherry picking, escolhendo a dedo quais dados devem ser apresentados e quais serão suprimidos, e fazendo essa seleção não por critério de qualidade, mas de sintonia ideológica.

 

The Golden Rice Project

Para quem não está familiarizado, The Golden Rice Project é um projeto criado com o intuito de combater a deficiência de vitamina A por meio do arroz dourado, espécie biofortificada com beta-caroteno – pigmento que confere a coloração amarelo/laranja e possui efeito pró-vitamina A – a partir da introdução de genes de outras espécies: transgênico, portanto.

A vitamina A faz parte do grupo das vitaminas lipossolúveis (se dissolve em gordura). É um micronutriente essencial.

Pessoas deficientes em vitamina A podem vir a desenvolver xeroftalmia, uma condição clínica onde há uma alteração na produção ou na composição das lágrimas, gerando incômodos, inflamações e, até mesmo, perda da visão. Além disso, a hipovitaminose pode ocasionar alterações na pele e perda de paladar.

De acordo com a matéria publicada no jornal UN News (2018), a deficiência de vitamina A acomete, aproximadamente, 19 milhões de gestantes e mais de 140 milhões de crianças, deixando-as mais suscetíveis a doenças e expondo-as a risco de vida.

Para o enfrentamento deste problema de saúde pública, muitos países adotaram as “Diretrizes de Suplementação de vitamina A para crianças e recém-nascidos entre 6 a 59 meses de idade” propostas pela Organização Mundial da Saúde. O guia recomenda que recém-nascidos – entre 6 a 12 meses – devem receber uma dose de 100.000 UI e crianças – entre 12 a 59 meses – uma dose de 200.000 UI. Apesar de serem concentrações elevadas, os estudos indicaram que essas dosagens são bem absorvidas e estocadas, proporcionando uma proteção adequada entre 4 a 6 meses.

No Brasil, segundo os resultados parciais do ENANI (2019) – Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil –, a deficiência de vitamina A diminuiu de 17,4% em 2006 para 6,0% em 2019. Um dos possíveis responsáveis por esse desfecho é o Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A (PNSVA), instaurado em 2005 com o intuito de reduzir e controlar a hipovitaminose A.

Contudo, essa não é a realidade de outros países em desenvolvimento, principalmente aqueles do Sul e Sudeste Asiático. Nestes, o “arroz dourado” pode ser um divisor de águas no combate à deficiência de vitamina A, visto que metade da ingestão calórica diária das pessoas é proveniente do arroz convencional. De acordo como artigo de SAMIA, M. et al. (2019), a substituição total do arroz convencional pelo arroz dourado forneceria entre 89% a 113%, e 57% a 99% da recomendação necessária de vitamina A para crianças na fase pré-escolar de Bangladesh e Filipinas, respectivamente.

Contudo, os pesquisadores alertam que esses resultados não devem ser interpretados como a concentração real que será absorvida, dado que o conteúdo de betacaroteno cai dependendo do tipo de processamento, cocção e tempo de prateleira.

Partindo desses achados, DUBOCK, A. et al. (2021) afirmam que o consumo de arroz geneticamente modificado é uma estratégia interessante no combate à deficiência de vitamina A e, além disso, econômica, visto que a política de fortificação – acrescem vitamina A e zinco no arroz – atual de Bangladesh aumenta o custo do arroz entre 5% e 6%, enquanto o arroz dourado não ocasiona aumento de custo para o governo, para os produtores e para os consumidores.

Os autores concluem que o arroz dourado só não foi implantado pelos governos por culpa de grupos contrários aos alimentos geneticamente modificados – caso do Greenpeace, FoodWatch e GRAIN. Estes, por sua vez, alegam a falta de estudos que atestem a segurança e eficácia do produto, seus impactos no meio ambiente e a desnecessidade da utilização de alimentos geneticamente modificados, já que é possível plantar alimentos fontes de betacaroteno que não sejam transgênicos, caso da cenoura e da batata doce.

Vale destacar que o artigo de DUBOCK apresenta conflitos de interesse, visto que ele é membro e secretário executivo do Golden Rice Humanitarian Board. Contudo, problema idêntico aparece nas publicações contrárias aos alimentos geneticamente modificados.

 

E afinal?

Nesse momento você deve estar se indagando: “Se todos apresentam narrativas enviesadas, como saber quem está falando a verdade?” – como sempre, quem responderá é a ciência – apesar dos receios apontados pelos grupos contrários, há dois fatores que eles não levaram em consideração:

 

1. O arroz dourado não foi desenvolvido para substituir as demais frentes de ação: o próprio International Rice Research Institute (IRRI) afirma que ele deve ser utilizado em combinação com outras estratégias.

2. O arroz dourado – assim como qualquer outro alimento transgênico – não pode ser produzido e comercializado sem antes passar por rigorosos processos que atestem sua segurança. E se não bastasse isso, os laudos comprobatórios são revisados pelos órgãos reguladores de diversas partes do mundo (FDA, HEALTH CANADA, CTNBio, entre outros) e, somente após o parecer deles, o alimento é aprovado.

 

Por fim, vale ressaltar que a FDA, o Health Canada e o FSANZ – órgão regulador de alimentos da Austrália e Nova Zelândia – deram pareceres favoráveis ao arroz dourado, afirmando que não apresenta risco à saúde pública e é seguro para o consumo.

Claro, você pode interpretar isso como uma conspiração global das empresas de biotecnologia em parceria com esses órgãos para prejudicar a maneira tradicional que plantamos alimentos, ou entender que o alimento é seguro – fique à vontade para escolher sua resposta e, dependendo, colocar um chapéu de alumínio.

 

Rotulagem

Se nos basearmos no caso do feijão carioca, cuja versão geneticamente modificada para reduzir a necessidade de inseticidas na lavoura finalmente passou a estar disponível no mercado, após anos de falsa polêmica e sabotagem institucional, podemos imaginar que o arroz dourado sofrerá as mesmas complicações caso chegue ao Brasil.

Está em tramitação o PLC 34/2015, de autoria do deputado Luiz Carlos Heinze, que propõe a retirada do triângulo amarelo com a letra T presente nas embalagens de alimentos que contenham organismos geneticamente modificados. Além disso, o projeto retira a necessidade do símbolo para aqueles produtos cuja composição apresente um valor superior a 1% de substância transgênica, neste caso, os mesmos só precisam vir acrescidos dos dizeres “contém transgênico”.

Os contrários à aprovação apontam que o projeto de lei fere o Código de Defesa do Consumidor – o que é verdade –, visto que a omissão da informação diminui a transparência do produto e, consequentemente, impacta o poder de decisão do consumidor.

Mas por que pararmos nos transgênicos?  Transcrevendo um trecho do livro “A grain of salt: The Science and Pseudocience of what we eat”, do Dr. John Schwarcz:

“Então como devemos responder aos consumidores que afirmam ter o direito de saber o que estão comendo, mesmo que não haja preocupações com relação à segurança? Ótimo, mas por que focar somente em alimentos geneticamente modificados? Que tal perguntarmos a respeito da quantidade de partes de insetos ou pelos de ratos que há por porção (há parâmetros para isso), ou sobre quais pesticidas ou fertilizantes foram utilizados, ou ainda, quais toxinas foram introduzidas pelo método tradicional de hibridização, ou se os alimentos cresceram de maneira hidropônica”.

Vai entender essa seletividade, maquiada de preocupação.

 

Mauro Proença é nutricionista

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