Em 1999, algumas ONGs lançaram a “Campanha por um Brasil livre de transgênicos”, que ainda existe. Desde o ano de sua criação essa Campanha divulga, como seria esperado, uma narrativa fortemente contrária aos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs). Os principais argumentos são repetidos exaustivamente, e relacionam-se a supostos (porque nunca provados empiricamente) problemas ambientais, sociais, culturais e econômicos.
Em 2007, na vigência da nova Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005), a solicitação para a comercialização de uma vacina transgênica contra uma doença que ocorre em suínos foi vetada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) já que o quórum exigido, de maioria absoluta (14 votos), para aprovação não foi alcançado.
Em função desse caso, editorial do jornal O Estado de São Paulo afirmou que alguns integrantes da CTNBio, “tomaram assento apenas para dizer sistematicamente não às solicitações de liberação do cultivo comercial de organismos geneticamente modificados”. Nessa mesma época, o Greenpeace cometeu reiterados ataques morais contra os membros da CTNBio. Em resposta ao Greenpeace, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) reafirmaram “a sua confiança nos trabalhos da CTNBio, como órgão legal e legitimamente constituído para decidir sobre a segurança na utilização de organismos geneticamente modificados”.
O presidente da Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular alertou: “os transgênicos envolvem grandes interesses comerciais, tanto entre os seus defensores intransigentes (interesses originados de empresas do agronegócio, por exemplo) quanto dentre os seus igualmente intransigentes detratores (interesses originados de produtores de agrotóxicos, por exemplo)”. O presidente dessa Sociedade enviou carta à ONG, cuja cópia está disponível no site da CTNBio.
Durante o ano de 2011, um processo com pedido de autorização para uso comercial de um feijão transgênico, desenvolvido pela Embrapa com tecnologia autóctone, tramitou na CTNBio e, naquele mesmo ano, foi aprovado. Mas também foi o ano em que a “Campanha” investiu grandes esforços para se posicionar contra essa tecnologia, argumentando que a alternativa para os agricultores seriam as sementes crioulas.
Em julho de 2011, o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), enviou à então presidente Dilma Rousseff sugestão de "proibição da liberação comercial do feijão transgênico" da Embrapa. Esse documento, como era de se esperar, foi amplamente divulgado pela “Campanha”. Como reação à sugestão do Consea, um grupo de cientistas, membros e ex-membros da CTNBio, afirmou que estavam
“(...) habituados com ataques à ciência promovidos por algumas Organizações Não Governamentais que se opõem sistematicamente ao avanço da biotecnologia no Brasil, mas que tomaram com estupefação o conhecimento do documento com a sugestão de “proibição da liberação comercial do feijão transgênico (...) a utilização de sementes de feijão geneticamente modificado com resistência ao mosaico dourado será altamente vantajosa, pois garante proteção contra o vírus, evitando-se assim a aplicação do inseticida largamente utilizado para combater seu transmissor, a ‘mosca branca’ (...) o Consea, órgão do governo, ataca outro órgão do governo, a CTNBio, legitimamente constituída por força de lei, violando assim preceitos éticos que deveriam ser observados entre órgãos do Estado brasileiro (...) o documento do Consea é repleto de equívocos (...) é preciso denunciar que a posição do Consea, pedindo a proibição de todos os OGMs no país e alinhada a ONGs que representam interesses multinacionais, é contrária ao nosso desenvolvimento autônomo e extremamente prejudicial à eficiência e à modernização de nossa agricultura e pecuária”.
O uso comercial do feijão transgênico, insista-se, desenvolvido no Brasil, foi aprovado pela CTNBio em 2011. No entanto, apesar de o Consea não ter poder de veto, até hoje os agricultores não tiveram acesso a esse produto.
A decisão de não liberar essa tecnologia foi amplamente comemorada pelos grupos “contrários” aos transgênicos (exemplo aqui; contestação aqui).
Entre as entidades representadas no Consea estavam, à época, por exemplo, a Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (Abrasco); Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme); Articulação Nacional de Agroecologia (ANA); Rede Evangélica Nacional de Ação Social (Renas); Agentes de Pastoral Negros (APN); Rede de Mulheres Negras para a Segurança Alimentar e Nutricional (Mulheres Negras SAN); Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul); Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão (Assema), entre outros. Não foi possível encontrar justificativa documentada que comprovasse a relevância e a legitimidade dessas organizações, tornando-as candidatas naturais para tomar assento no Conselho.
Em abril de 2013, oito membros da CTNBio, indicados pelas sociedades científicas, incluindo o presidente da CTNBio, Flavio Finardi, foram notificados de que estavam sendo investigados pela Procuradoria Geral da União (PGU), a pedido do Deputado Federal Dr. Rosinha (PT do Paraná). A PGU investigava um possível conflito de interesses desses membros, por supostas ligações com empresas privadas (notar que a maioria dessas pessoas é formada de professores universitários, cientistas em regime de tempo integral).
Como reação, os cientistas investigados solicitaram formalmente um esclarecimento sobre atividades atuais e pregressas que constituiriam algum impedimento dos conselheiros da CTNBio que votam sistematicamente contra os transgênicos. Por exemplo, havia conselheiros que trabalhavam em uma das ONGs e integrantes da “Campanha por um Brasil livre de transgênicos”, mantendo blogs contra transgênicos, e que são autores de artigos e de livros contra transgênicos.
Em 5 de março de 2015, houve invasão do auditório onde os membros da CTNBio estavam reunidos, discutindo sobre o eucalipto transgênico. Houve agressão verbal e ameaça aos membros indicados pelas sociedades científicas. Já havia acontecido outra invasão, quando o presidente da CTNBio era o Dr. Walter Colli. Mas, dessa vez, houve a depredação do auditório. No mesmo dia, ocorreu a invasão e a destruição das instalações e dos equipamentos, além das plantas de eucalipto transgênicos, fruto de 14 anos de pesquisa e pertencente à empresa FuturaGene, em Itapetininga, São Paulo.
Diante do ocorrido, instituições científicas nacionais, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), repudiaram com veemência a invasão ocorrida na CTNBio e as ameaças feitas aos seus membros. Classificaram os atos como ataques à ciência e ao Estado de Direito, motivados por questões políticas e ideológicas.
Dois fatos chamaram muito a atenção entre os anos de 2007 e 2015. O primeiro: os filmes “O veneno está na mesa I” (2011) e “O veneno está na mesa II” (2014) , que condenam o uso de defensivos agrícolas e de transgênicos, contaram com o patrocínio do Governo Brasileiro, do Ministério da Cultura, da Fiocruz e da Petrobras. O segundo: o antigo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) publicou cinco livros escritos por militantes contrários aos transgênicos. Um deles reproduz uma página da Revista Sem Terra (do MST) onde constam (em tom de acusação) os nomes de membros da CTNBio, sem nenhuma prova factual comprobatória, que teriam “ligações perigosas”.
Talvez, por isso, seja possível concordar com a hipótese de que “(...) é o Governo Federal usando dinheiro público para fomentar o ativismo oficial contra as decisões de órgãos do próprio Governo Federal. Não se trata de sobreposição de serviços, trata-se de construção e desconstrução financiada pelo dinheiro do contribuinte pelo mesmo Governo”.
Ao analisar as reações contrárias aos transgênicos, descritas neste breve relato, pode-se afirmar que são distintas empiricamente da ação legítima de “movimentos sociais”. São reações organizadas por algumas ONGs. Contudo, embora numericamente pequenos e pontuais, foram atos capazes de exercer pressões de escopo considerável e significativo. Mas, não se sabe, ao certo quem as patrocina.
Luiz Antônio Barreto de Castro, que foi chefe-geral da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen), desconfia de pressões econômicas, registrando as seguintes perguntas: a quais interesses servem essas campanhas contrárias aos transgênicos? Que razões existem para justificar esse crime contra o Estado? Por que negar ao agricultor brasileiro o que não foi negado aos agricultores dos Estados Unidos, do Canadá, de Argentina, Austrália e China? Conclui que tais manifestações políticas servem especialmente a dois setores: os produtores de agrotóxicos e os competidores do Brasil no mercado de commodities alimentares.
A ironia está no fato de que muitos organismos transgênicos vegetais – utilizando a tecnologia Bt, por exemplo – tendem a usar menos defensivos agrícolas, já que incorporam no seu genoma um gene responsável pela síntese de uma proteína que mata, especificamente, as principais lagartas que destroem as plantações.
Apesar dessa constatação, os ativistas, quando mencionam a palavra “transgênicos”, imediatamente concluem com a expressão “e agrotóxicos”. Assim, repetindo a expressão “transgênicos e agrotóxicos”, adotam uma conhecida fórmula de indução psicológica por associação, já que ao ouvir uma das palavras, imediatamente se pensa na outra. É possível que, no início, há 25 anos, quando a empresa norte-americana Monsanto decidiu dedicar-se somente aos transgênicos, tenha assustado as grandes produtoras europeias de agroquímcos ou defensivos agrícolas e, por isso, estas tenham encetado uma campanha anti-transgênicos.
Se essa hipótese for verdadeira, o tiro lhes saiu pela culatra, já que todas entraram no campo das sementes transgênicas. Não teria mais dado tempo de desativar a campanha que, impregnada pelo medo, escapuliu do controle. Como o mundo dá voltas, a empresa alemã Bayer, atuante no campo farmacêutico e de agroquímicos, adquiriu a empresa Monsanto por US$ 63 bilhões e eliminou a marca que tanto bulício causou. E agora? Como fará a Europa para explicar que transgênicos não fazem mal?
Ideologias e interesses comerciais à parte, o fato é que, ficando estritamente no campo científico, os produtos desenvolvidos com biotecnologia moderna, e analisados cientificamente por órgãos como a CTNBio, formados em sua maioria por cientistas, são seguros. Não se pode esquecer que, globalmente, no ano de 2015 as populações urbanas ultrapassaram, em número, as populações rurais. Isso significa que, cada vez mais, há que produzir alimentos para alimentar seres humanos afastados do campo. A tecnologia, as terras, o clima estão no continente americano – EUA, Brasil, Argentina e Canadá, principalmente – que, pelo superavit na produção de grãos e animais de corte, são responsáveis pela segurança alimentar do mundo.
Maria Thereza Macedo Pedroso é pesquisadora da Embrapa Hortaliças. Walter Colli, ex-presidente da CTNBio, é professor e pesquisador da Universidade de São Paulo