Momentos de crise são campo fértil para o conspiracionismo, e com a recente guerra na Ucrânia não poderia ser diferente. A invasão russa, no fim de fevereiro, logo deu margem a variadas teorias sobre o que estaria por trás da agressão. Entre elas, a de que os EUA manteriam uma rede de laboratórios para desenvolvimento de armas biológicas (“biolabs”) na Ucrânia.
Lançada inicialmente (suspeita-se) pela máquina de desinformação russa, a história dos biolabs americanos na Ucrânia foi rapidamente capturada pela extrema direita dos EUA, em especial entre círculos de apoiadores do ex-presidente Donald Trump – não por acaso visto como “simpático” ao líder russo Vladimir Putin, se não um aliado dele. Daí, não demorou para que autoridades americanas e outros indivíduos e grupos dedicados ao combate à desinformação saíssem para desmenti-la. E aí que está o problema.
Não é de hoje que, numa guerra, a primeira vítima é a verdade – tanto que a frase costuma ser atribuída ao dramaturgo grego Ésquilo, que viveu a mais de 2,5 mil anos atrás (525/524-456 AEC). Mas é de nossos (estranhos) tempos atuais que a luta contra a mentira pode acabar por ajudá-la a disseminar-se. E é justamente o que indica análise feita dois pesquisadores australianos, publicada no site The Conversation, sobre os caminhos da história dos biolabs na Ucrânia no Twitter.
Daniel Whelan-Shamy e Timothy Graham, ambos da Universidade de Tecnologia de Queensland, contam que primeiro partiram para identificar grupos organizados que estariam espalhando a teoria conspiratória na rede social. Para tanto, buscaram contas que retuitassem mensagens contendo tanto a palavra “Ucrânia” quanto “biolabs” ao mesmo tempo, chegando a um total de 1.469 contas com 26.850 links entre elas.
A dupla então montou uma visualização que dividiu estas contas em grupos (clusters) nos quais cada uma era representada por um ponto, ligados por uma linha se tivessem retuitado a mesma mensagem sobre os biolabs da Ucrânia num intervalo de um minuto, em mais de uma ocasião. Com isso, identificaram 50 destes clusters, e aí veio a surpresa: apenas um destes grupos – e pequeno, por sinal – era de contas de conspiracionistas tentando espalhar a história. Os 49 restantes procuravam desmenti-la, centrados em figuras e instituições como Jen Psaki, porta-voz da Casa Branca, o Pentágono, e veículos de comunicação como o jornal Kyiv Independent e a emissora Sky News.
“Nossa análise conclui que aqueles mais proeminentes em espalhar a narrativa (dos biolabs na Ucrânia) foram o que tentavam desmenti-la. E a maior partes destes grupos retuitava Psaki”, escreveram.
Desinformação participativa
O caso dos biolabs americanos na Ucrânia seria um exemplo heterodoxo do que Kate Starbird, pesquisadora do Centro para um Público Informado da Universidade de Washington, EUA, chamou de “desinformação participativa”, que se aproveita de vieses cognitivos e outras características do comportamento do público online para espalhar mentiras e propaganda, num processo de retroalimentação, no lugar de usar ferramentas tecnológicas fraudulentas como robôs. Este fenômeno costuma ter início quando agentes de Estado, líderes políticos ou figuras proeminentes em redes sociais fazem uma publicação direcionada a suas audiências como parte de uma “operação estratégica de informação”, com o objetivo de manipular a opinião pública.
Daí, seus seguidores e apoiadores reverberam as mensagens e, impulsionados por vieses de confirmação, reenquadram-nas de acordo com as “visões de mundo” criadas por suas bolhas de informação. E assim vai-se construindo uma narrativa que é amplificada por organizações ou indivíduos influentes nestas bolhas, até ser recapturada e ecoada pelos emissores iniciais. Com isso, atingem novamente suas audiências com uma mensagem com apelo ainda mais refinado, reforçando o enquadramento e criando um clima de ressentimento coletivo que então pode ser mobilizado num chamado para a ação.
Em um fio ilustrativo no Twitter, Starbird cita como exemplo disso as suspeitas em torno do sistema eleitoral e do processo de votação lançadas por Trump nas últimas eleições presidenciais nos EUA, e que culminaram com a invasão do Capitólio, a sede do Poder Legislativo do país, em 6 de janeiro de 2020.
“Novo conspiracionismo”
A história dos biolabs americanos na Ucrânia também pode ser vista como um exemplo heterodoxo deste ciclo de desinformação participativa porque, como demonstraram Whelan-Shamy e Graham, não foram os emissores originais da desinformação, mas os que tentavam desmenti-la, os principais responsáveis sua disseminação. Desta forma, ainda que não intencionalmente, eles teriam se transformado em instrumento do que os cientistas políticos americanos Russel Muirhead e Nancy L. Rosenblum chamam de “novo conspiracionismo”.
O conspiracionismo “convencional” tem como uma de suas marcas o chamado “raciocínio motivado”. É por meio desta dinâmica cognitiva que adeptos das teorias mais estapafúrdias constroem racionalizações, argumentos e histórias, por mais mirabolantes e complexos, para sustentar suas crenças.
Já o novo conspiracionismo tira sua força dos números. Neste caso, a teoria ganha uma aura de “verdade oculta” em função apenas de seu alcance e fama, isto é, o quanto de atenção chama. E esta atenção pode vir tanto do trabalho de disseminação de seus adeptos quanto dos esforços para desmenti-la de seus críticos, como demonstraram Whelan-Shamy e Graham com os biolabs na Ucrânia.
Diante disso, fica a questão: ao se deparar com uma teoria conspiratória, deve-se procurar desmenti-la ou ignorá-la? Ainda não há uma resposta definitiva para isso, mas por enquanto a dupla de pesquisadores australianos sugere algumas estratégias. Para figuras proeminentes como Psaki, instituições como o Pentágono ou veículos de mídia, deve-se avaliar se um desmentido simples, sem insistir no assunto, não é suficiente para evitar ajudar ainda mais a disseminação.
Já para usuários “comuns” das redes sociais, permanece válida a recomendação de “pensar antes de compartilhar”. E se a história evocar fortes reações emocionais – um sinal comum na desinformação – e a vontade de compartilhar se tornar irresistível, optar por fazê-lo usando capturas de telas ou outras formas repassar o conteúdo, sem reforçar as conexões com a fonte primária, e assim interromper suas cadeias de transmissão.
CORREÇÃO (5/5/2022, 16h20): A versão original deste artigo dizia que o ataque ao Capitólio dos EUA por seguidores do ex-presidente Donald Trump havia ocorrido em 6 de março de 2021. A data correta é 6 de janeiro. O texto foi corrigido.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência