Qualquer pessoa razoavelmente instruída espera saber o suficiente para não ser enganada. E geralmente acredita no que vê.
E não é de hoje. É bíblico. Ver para crer faz parte do ser humano, conforme já descrito em João 20, versículo 29. É tão antigo que as primeiras discussões sobre ilusões iniciaram com os filósofos gregos Epicarmo de Kos (c. 550 – c. 460 AEC) e Protágoras de Abdera (c. 490 – c. 420 AEC). Em termos gerais, Epicarmo defendia que os sentidos da visão, audição, olfato, paladar e tato não eram suficientes para compreender o ambiente ao redor do ser humano. Já Protágoras acreditava nos sentidos, mas desconfiava que o ambiente poderia influenciar as sensações. A palavra grega techné, raiz do termo tecnologia, provém do verbo tecer, no sentido de fazer, de construir, ou ainda, do conhecimento, seja uma arte ou um ofício.
Artistas em geral são mestres em enganar os sentidos. Tome como exemplo qualquer quadro, em essência, figurativo. Por definição, consiste de madeira plana ou tela de pano, portanto bidimensional. Mas tende a provocar alguma sensação, ou perspectiva, tridimensional. O historiador romano Caio Plínio Segundo, que viveu entre os anos 23 e 79 da nossa era, registrou um mito em torno de uma competição entre dois dos primeiros grandes pintores gregos em sua obra Historia Natural. Anotou que Zêuxis de Heráclea (464 - 398 AEC) pintou um cacho de uvas tão realista que pássaros tentavam bicar o desenho. Ao pedir para ver a pintura do contemporâneo Parrásio de Éfeso, solicitou que desembrulhasse o quadro apenas para descobrir que era uma pintura a simular uma embalagem. Zêuxis imediatamente reconheceu a derrota, porque enquanto ele enganara pássaros, a obra de Parrásio havia ludibriado os olhos do artista.
Reza outra lenda que o pintor florentino Cenni di Petro Cimabué (c. 1240 - 1302) tentou acertar uma mosca numa pintura de seu famoso aluno Giotto di Bondone (1267 - 1337), até perceber que consistia de mera tinta, conforme descrito no livro “As Vidas dos Artistas”, do arquiteto e pintor italiano Giorgio Vasari (1511 - 1574).[i] Não à toa, Giotto foi considerado, por muitos especialistas, o introdutor da perspectiva na pintura e um dos precursores do Rinascimento. Movimentos artísticos como o Pontilhismo do século 19, o Surrealismo, de 1920, ou a Op Art, da década de 1960, são alguns exemplos de como a arte continua a surpreender. Por sinal, há uma técnica francesa antiga conhecida como trompe l’oeil cuja expressão significa literalmente “enganar o olho”, muito usada em arquitetura e pintura.
No século 19, o médico alemão Johannes Peter Müller (1801 - 1858) levou as discussões sobre ilusões, sobretudo óticas, a um outro patamar. Müller debruçou-se particularmente sobre alucinações ao publicar os livros “Fisiologia Comparada da Visão de Homens e Animais, acrescida de um Experimento dos Olhos e o Olhar Humano”[ii] e “Fenômenos Fantásticos da Visão”[iii] em 1826. Apesar dos textos de grande profundidade, Müller acreditava que era possível ter alucinações ao se tomar grandes quantidades de café. Pouco tempo depois, o teólogo, filólogo e professor de matemática e física alemão Johann Joseph Oppel (1815 - 1894) cunhou o termo “ilusão ótica geométrica” a uma série de efeitos visuais.[iv]
A escola alemã interessou-se sobremaneira nesta época por ilusões óticas, sendo possível destacar os notáveis pesquisadores Johann Christian Poggendorff (1796 - 1877, físico), Hermann Ludwig Ferdinand von Helmholtz (1821 - 1894, médico e aluno de Müller), Johann Karl Friedrich Zöllner (1834 - 1882, físico) e Franz Carl Müller-Lyer (1857 - 1916, médico e psicólogo). Pode-se citar também o médico italiano Mario Ponzo (1882 - 1960), que destacou um célebre desenho de duas linhas convergentes e outras duas, estas paralelas, de igual tamanho – que, no entanto, enganam nossos sentidos.
Embora existam discussões sobre o assunto, o psicólogo inglês Richard Langton Gregory (1923 - 2010) definiu em 1997 as ilusões em dois tipos: físico (ou fisiológico) e cognitivo. Ou, em outras palavras, de acordo com a simplificação do próprio autor: problemas de “hardware” e “software”.[v] E que podem ser classificadas em quatro classes: ambiguidades, distorções, paradoxos e ficções, sendo as duas primeiras de natureza física e as demais, cognitivas. Um exemplo de ilusão física consiste em observar uma caneta parcialmente submersa num copo com água (classe distorção). Já o tamanho das linhas entre setas proposto por Müller-Lyer em 1889 corresponde a uma ilusão do tipo cognitiva (classe distorção).
Com o advento do rádio, e depois do cinema, a arte elevou a ilusão a níveis literalmente jamais conhecidos. O episódio da antológica série radiofônica “A Guerra dos Mundos”, transmitida na noite de Hallowen de 1938, causou alvoroço por supostamente provocar pânico em massa aos seus ouvintes - tudo planejado pelo ator, diretor e escritor americano George Orson Welles (1915 - 1985), com base em obra homônima do escritor inglês Herbert George Wells (1866 - 1946). É possível ouvir a transmissão original aqui. Como ficção, as telonas da sétima arte são pródigas em fomentar a imaginação, com muitos exemplos. Um deles foi o extraordinário sucesso de Boris Karloff, nome artístico de William Henry Pratt (1887 – 1969), que interpretou o personagem Frankenstein em filme homônimo de 1931 com uma atuação baseada em incríveis maquiagem, próteses e máscara que assombrou o mundo.
Embora a arte busque de alguma forma enganar os sentidos, e a ciência compreender seus mecanismos, isto está longe do significado moderno de fake news, tão em voga em dias contemporâneos, e didaticamente descrito em livros como “Ciência no Cotidiano: Viva a Razão, Abaixo a Ignorância!” (Editora Contexto, 2020), de Carlos Orsi Martinho (n. 1971, jornalista) e Natalia Pasternak Taschner (n. 1976, bióloga), vencedores do Prêmio Jabuti 2021. Historicamente, as raízes tanto das fake news quanto do negacionismo são antigas e entrelaçadas, e um belo exemplo teve como personagem o físico e matemático italiano Galileu Galilei (1564 - 1642), conforme descrito no livro “Galileu e os Negadores da Ciência” (Editora Record, 2021), obra do astrofísico israelense Mario Livio (n. 1945).
Infelizmente, em época de fake news, a realidade está constantemente sendo questionada e vilipendiada. E até o presente momento, sem conteúdo estético. É certo que não se pode confundir meras ilusões com fake news. Mas tome-se como contraexemplo a corrente viral de mensagens em redes sociais em 2018 sobre uma ilusão ótica creditada a um pseudoneurologista japonês. Creditava-se à imagem a capacidade de mensurar estresse – se alguém não notasse movimento, estaria calmo; se percebesse algum movimento, estaria estressado. De fato, a imagem não se movia e sequer tinha a intenção de mensurar algo de saúde mental. Posteriormente, foi corretamente atribuída ao artista gráfico ucraniano Yurii Perepadia (n. 1970) que a havia criado em 2016, e a fake news desfeita graças ao trabalho de agencias de checagem. A obra pode ser acessada aqui.
Tome como outro exemplo recente uma figura publicada no Twitter e creditada ao biólogo japonês Akiyoshi Kitaoka (n. 1961), professor de psicologia da Universidade Ritsumeikan em Kyoto, Japão. Ao move-la para cima e para baixo, pode-se ter a impressão de que este padrão estático está se movendo de maneira incomum. No entanto, consiste numa simples ilusão de ótica, conforme visualizado neste link.
Um dos primeiros manuais da ciência a promover a verdade e discutir o método científico foi publicado em 1637, e começa assim: “Inexiste no mundo coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem”. Foi escrito pelo filósofo e matemático francês René Descartes (1596 - 1650), contemporâneo de Galileu. No entanto, não basta apenas bom senso para deixar de se enganar por ilusões óticas, embora algum senso ainda seja razoável para distinguir a verdade de fake news grotescas.
Toda ilusão consiste numa confusão dos sentidos que provoca uma distorção da percepção. A palavra deriva do verbo latino illudo, que provem de ludo, significando “brincar”. Ilusões tendem, portanto, a brincar com os sentidos, e têm propósito muito diverso das fake news, que estão longe de serem consideradas algo pueris.
O século 21 está sendo pródigo em desenvolver novas ilusões. Até então, uma checagem relativamente cuidadosa era suficiente, e tem sido um importante aprendizado para a Humanidade. De um ponto de vista positivo, novas ilusões consistem em modernas maneiras de compreender como funciona o cérebro humano, suas percepções e limitações. Outro ponto a favor seria o de alçar a arte e a ciência em novos patamares.
Por outro lado, se é possível enganar com apenas um desenho, o que não se consegue fazer com meras palavras, áudios e mesmo vídeos? As chamadas deep fakes poderão se transformar nas próximas ferramentas que, utilizadas de forma vil, virão a derrubar democracias e estabelecer celeumas regionais. Serão necessários protocolos de segurança e novas tecnologias, que ainda guardam o sentido original de techné, a arte de tecer, de fazer.
Fisicamente, a leitura que se faz do mundo depende em certa medida da interpretação bastante eficiente do cérebro, que transforma imagens tridimensionais de modo muito eficiente por meio de circuitos neuronais evoluídos ao longo de milhares de anos.
Em suma, o que se vê é, em certa medida, uma ilusão criada por um cérebro poderoso e treinado ao longo da linha evolutiva da natureza. A interpretação visual do mundo foi, é e continuará a ser uma tarefa complexa. Ler o mundo, que é muito mais que apenas ver, deixou de ser algo trivial.
Desde a Antiguidade discute-se se é possível apenas ver para crer. A única certeza do futuro é que não bastará mais apenas (vi)ver para crer.
Marcio Luis Ferreira Nascimento é físico e professor de engenharia na Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia, autor de “Etcetera: Engenharia, Tecnologia e Ciência” (Editora da UFBA, 2018)
REFERÊNCIAS
[i] G. Vasari. The Lives of the Artists (“Vita de'più eccellenti architetti, pittori et scultori italiani”). Traduzido por Julia Conaway Bondanella e Peter Bondanella, Oxford World’s Classics, Oxford University Press (1991) 586 p.
[ii] J. Müller. Zur vergleichenden Physiologie des Gesichtssinnes des Menschen und der Thiere, nebst einen Versuch über die Bewegung der Augen und über den menschlichen Blick (“Fisiologia Comparada da Visão de Homens e Animais, acrescida de um Experimento dos Olhos e o Olhar Humano”). Knobloch, Leipzig (1826) 462 p.
[iii] J. Müller. Ueber die phantastischen Gesichtserscheinungen (“Fenômenos Fantásticos da Visão”). Hölscher, Koblenz (1826) 117 p.
[iv] J. J. Oppel. Über geometrisch-optische Täuschungen (“Sobre Ilusões Ópticas & Geométricas”). Jahresbericht des physikalischen Vereins zu Frankfurt am Main 1854–1855 (1855) p. 37–47.
[v] R. L. Gregory. Visual Illusions Classified. Trends Cogn. Sci. 1 (1997) 190-194.
[vi] F. C. Müller-Lyer. Optische Urteilstäuschungen (“Julgamento sobre Ilusões de Ótica”). Archiv für Physiologie Suppl. (1889) 263-270.