O que pode explicar o “negacionismo profundo” em pleno século 21[i]? Encontrar alguém que defenda que o mundo é plano, enquanto usa seu celular de última geração, poderia ser visto como uma anomalia isolada, não fosse o fato de haver uma horda planetária crendo neste tipo de coisa. Investigar negacionismos extremos como este pode ser a chave para compreender casos menos exóticos, mas, ainda assim, muito mais letais, como a rejeição a vacinas.
Nossa espécie não chegou até aqui por acaso: conseguimos nos reproduzir mais rápido do que morremos. E isso não seria possível se não partilhássemos, negacionistas e não negacionistas, de vários instintos comuns.
Alguns são bastante óbvios, como o de sobrevivência, compartilhados não só por humanos, mas por gazelas, avestruzes e seu bichinho de estimação. Entretanto, há uma característica que nos distingue das demais espécies e que nos permitiu não só sobreviver, mas nos tornar senhores do mundo: a inteligência. É fácil identificar alguma inteligência em outros animais, como em golfinhos, mas jamais no grau encontrado em humanos.
Por “inteligência”, entenda-se “a capacidade de estabelecer inferências lógicas relativamente complexas”. Se uma criancinha lhe faz uma pergunta e você responde: “eu não sei”, ela provavelmente entenderá. Já se você responder, “eu não sei e não sei se alguém sabe”, não tenho certeza se ela entenderia, mas se você responder “eu não sei e não sei se alguém sabe de alguém que saiba”, ela provavelmente ficará confusa. É por isso que somos mais inteligentes do que criancinhas.
Apesar de não haver nada de intrinsecamente nobre na inteligência – afinal, se alguma espécie tornará este planeta inabitável, será a nossa –, foi nossa inteligência, mais elevada, que nos permitiu desenvolver a lógica e, com ela, “racionalizar o mundo”.
A racionalização do mundo não depende só da capacidade de estabelecer conexões lógicas, mas também de querer estabelecê-las. Todos sabemos que “querer não é poder”, mas aqui estou enfatizando que a volta também é verdadeira: “poder não implica em querer”.
Entendo que o fato de seres humanos sentirem necessidade de usar sua inteligência para estabelecer conexões lógicas deve ser catalogado como mais um instinto. Se não, por qual razão objetiva os antigos se dariam ao trabalho, por exemplo, de demonstrar que o conjunto de números primos é infinito?[ii]
Talvez não seja tão óbvio entender por que esta característica tenha sido evolutivamente útil em comparação a outras, mas nem tanto. Indivíduos que extraíam prazer na resolução de quebra-cabeças lógicos talvez sejam mais propensos a arquitetar formas eficientes de se defender de predadores, atendendo ao supremo instinto de sobrevivência.
Já na outra ponta, pertencente ao grupo de instintos populares, partilhados também por peixes e pássaros, está o instinto de bando. Indivíduos isolados nas savanas africanas teriam muito menos chance de sobreviver a predadores do que unidos; e isso deixou marcas. Não consigo ver qualquer outra força motora por trás da união visceral das torcidas organizadas. O ser humano precisa se sentir parte de algo, mesmo que frívolo. Não se trata de uma crítica; mas de uma constatação.
Em resumo, minha tese está ancorada na hipótese de que a força motora de cientistas, filantropos e negacionistas tem a mesma origem: obedecer aos instintos. A diferença está na ascendência dos diferentes instintos em cada indivíduo.
Se filantropos são dominados pelo instinto da compaixão e cientistas (pelo menos em princípio) pelo da razão, os negacionistas, em minha opinião, são dominados pelo de bando. Isso não seria um problema, não fosse o que une este bando: a negação à razão. E é justamente isso que os torna extremamente perigosos. Negar as vacinas não coloca em risco apenas os membros deste bando, mas a todos nós: são incendiários de uma floresta que todos chamamos de lar.
Considerando-se toda a energia que negacionistas precisam gastar para convencer a si próprios, antes de mais ninguém, que suas estórias fazem algum sentido, não é óbvio por que decidiram trilhar esta via. Mas meu palpite, pelo menos no que diz respeito à maior parte deles, é que ao se contraporem à Ciência, acreditam estar conferindo ao clube negacionista um status equivalente ao de uma academia científica. Não funciona assim! Sair gritando pelas ruas que se é Napoleão Bonaparte não torna ninguém Napoleão Bonaparte; apenas evidencia um descolamento da realidade.
Isso nos leva à pergunta final: o que fazer quando identificamos que o mundo tem mais negacionistas que imaginávamos, e que alguns deles ameaçam todo o ecossistema?
Do ponto de vista prático, a resposta é simples: exigir que as autoridades sejam pautadas pela razão e restrinjam a ação destes grupos; ou seja, exatamente o oposto do que faz o atual governo federal.
Já do ponto de vista conceitual, a resposta é muito mais sutil. Nossos conhecimentos atuais de física moderna apontam para o fato que o livre arbítrio é uma ilusão, e que mesmo a escrita deste artigo é resultado dos diferentes instintos que me dominam, os quais, em última instância, determinam o que sou. Claro que, independente disso, qualquer ação local impactará, em geral, o sistema global. Mas o ponto que quero enfatizar é que a Humanidade é apenas parte de um sistema maior, regido pelas mesmas leis da natureza que determinam do farfalhar das folhas à órbita das galáxias e, sendo ele supercomplexo, é virtualmente impossível saber o que vai emergir no final de tudo isso.
Pode soar assustador reconhecer que estamos à deriva, navegando ao sabor dos instintos rumo a um futuro incerto, mas ter a percepção deste fato e aceitá-lo com estoicismo me parece um privilégio reservado (pelo menos na Terra) apenas a nós, humanos. Chamem a isso de milagre, se quiserem; eu não me oponho.
George Matsas é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Consultivo do IQC. E-mail: george.matsas@unesp.br
NOTAS
[i] Este é um artigo opinativo com o qual se pode concordar ou discordar, ao contrário de fatos comprovados pelo método científico como o de que vacinas são mais eficientes do que placebo para combater infeções. Este artigo não é recomendado para leitores que não tenham isso claro.
[ii] Eu não sou um neurocientista, mas se o fosse, procuraria relacionar aquilo que chamamos de consciência com nosso instinto de usar nossa inteligência para estabelecer conexões lógicas. É o que nos difere de computadores; nenhum deles sai procurando conexões lógicas aleatórias pelo simples prazer de fazê-lo (...ainda).