Esse texto surgiu como um desabafo sobre meus colegas nutricionistas. Estava eu em uma aula de pós-graduação de uma renomada faculdade, quando, de repente, li o seguinte comentário de uma aluna em um grupo de WhatsApp: "Não há estudos confirmando que a utilização da fitomedadiona (vitamina K1) atenue o declínio do turn over ósseo (processo de remodelação óssea), mas a professora colocou como dosagem de suplementação 1mg/dia, medida muito conservadora, tinha que ser 7000 por dia". Obviamente, após esse primeiro impacto, imaginei que ela estava se referindo a uma medida diferente da apresentada, talvez em microgramas (mcg).
Por via das dúvidas, vamos considerar um valor mais realista. Digamos que ela estivesse falando de 7000 mcg (equivalente a 7mg), temos três problemas sérios com relação a isso e, infelizmente, eles se estendem para outras áreas:
1- Não há estudos na literatura e nem em órgãos competentes com relação à segurança de doses tão altas, como as descritas por minha colega.
2- Incorporando o papel de advogado do diabo, consigo entender a motivação por trás da suplementação de vitamina K para a saúde óssea. Além do seu papel no processo de coagulação, a vitamina K auxilia na formação de várias proteínas ósseas, principalmente na osteocalcina (proteína que parece estar envolvida no processo de mineralização óssea). Se estendermos esse raciocínio, podemos chegar à hipótese de que uma suplementação de vitamina K pode aumentar a produção da osteocalcina e, por consequência, a mineralização óssea.
Mas os dados, até o momento, se mostram inconclusivos com relação à vitamina K e a saúde óssea. Isso é reforçado por uma revisão sistemática com metanálise de MOTT, A. et. al (2019). Os achados demonstraram que a utilização da vitamina K, em mulheres pós-menopausa e pacientes com osteoporose, não foi satisfatória para melhora na densidade óssea, e nem na redução do risco de fraturas vertebrais. Ademais, os autores concluíram que há poucos ensaios clínicos para termos um parecer fidedigno da real ação da vitamina K na função óssea.
3- O último problema e, talvez, o mais grave, é o salto de lógica, onde são alçados à mesma categoria estudos in vitro, modelos animais e ensaios clínicos randomizados, com grupo controle e duplo-cegos. Essa extrapolação de dados nos leva a uma clássica falácia lógica, "falácia indutiva", mais precisamente “amostra limitada”, por exemplo: “Como há estudos científicos que observaram resultados promissores de determinado nutriente/medicamento/hábito, logo, ele funciona e as diretrizes sugeridas por esses resultados devem ser usadas”.
Contudo, esse não foi o ápice do meu dia. Após o comentário, seguimos para a próxima aula, onde ouvi uma declaração ainda mais espúria, proferida por uma doutora: “alimentos que se tornam ácidos após a ingestão, como as carnes, farinhas refinadas e o açúcar, são deletérios para pessoas com osteoporose, visto que os ossos precisam liberar cálcio e outras bases para neutralizar a acidez e manter o pH estável”.
Nesse momento, fiquei encafifado, pois me lembrava de que o controle do pH sanguíneo se dava por três mecanismos (sistemas tampões, regulação respiratória do pH e regulação renal do pH). Se houvesse algum impedimento para o bom funcionamento de um deles, os demais tentam compensá-lo e, caso não fosse o suficiente, ocorreriam distúrbios do equilíbrio ácido-básico (acidose metabólica, acidose respiratória, alcalose metabólica e alcalose respiratória).
Mas, então, qual foi a referência consultada por essa professora?
Realmente não sei. Procurei artigos que pudessem contextualizar e corroborar o argumento e, felizmente, encontrei duas fontes que elucidaram, de quem, como e de onde surgiu a proposição.
Primeiro vi um parecer de 2020 emitido pela Federal Trade Commission (FTC), um órgão público de defesa do consumidor baseado nos Estados Unidos, em que a entidade alerta para os supostos “tratamentos” contra COVID-19 divulgados pelo “doutor” Robert O. Young, um naturopata norte-americano que acredita (ou finge que acredita) nos imensos benefícios proporcionados por uma dieta alcalina perante patologias como diabetes e câncer. Nesse momento, percebi o quanto o poço era fundo.
Após me familiarizar com o apóstolo da alcalinidade, encontrei o artigo de BONJOUR, J. (2013). Nele, o autor explica a base da hipótese alcalina em relação à saúde óssea. Parafraseando: “a hipótese sugere que uma dieta com alto teor de alimentos ácidos aumenta a excreção de ácido pela urina, podendo ser um fator de risco para o aparecimento de osteoporose”.
Depois de elucidar como o organismo reage ao ingerir nutrientes que apresentam características acidificantes ou alcalinizantes, o autor entra nos pormenores em relação ao funcionamento de cada mecanismo de controle do pH e, após verificar a literatura científica, aponta que experimentos realizados em pacientes com acidose metabólica severa ocasionada por insuficiência renal, ou em pacientes saudáveis que ingeriram cloreto de amônio, sugeriram que o tecido ósseo seria um mantenedor do balanço ácido-básico. Com o passar do tempo, no entanto, essa hipótese foi refutada, tanto na teoria quanto na prática.
Conclui: “está demonstrado que variações da dieta humana ao longo de um espectro plausível de consumos não têm efeito no pH sanguíneo. Consistentemente com essa ausência de uma base mecanicista, estudos de longo prazo de dietas alcalinizantes não demonstraram nenhum efeito na mudança da fragilidade óssea ligada à idade”.
Entretanto, a ideia volta a aparecer esporadicamente, colocando os ossos como um potencial sistema tampão. Ademais, os defensores dessa visão consideram os nutrientes com potencial ácido como um dos fatores principais para o risco de osteoporose, particularmente as proteínas de origem animal. Diversos estudos em humanos demonstraram que não há, até o momento, relação entre excreção de ácido pela via urinária, balanço de cálcio, metabolismo ósseo e risco de fraturas osteoporóticas. Isso reforça que o ato de consumir alimentos/suplementos alcalinos e/ou evitar a proteína animal não se justifica com base na evidência acumulada nas últimas décadas.
Neste momento, podemos argumentar que o artigo citado anteriormente pode não representar a literatura atual, visto que se passaram oito anos desde sua publicação. Será que esse argumento está correto?
Segundo a revisão sistemática com metanálise e meta-regressão de 2021, uma dieta ácida levou a um aumento de ácido livre na excreção (“net acid excretion”) e a um aumento na excreção de cálcio urinário. Caso parássemos nesses dois marcadores, poderíamos ter a falsa impressão de que sim, uma dieta ácida é um fator de risco para osteoporose. Mas se continuarmos, veremos que o próprio artigo conclui que: “suplementos alcalinizantes talvez sejam benéficos para o metabolismo ósseo e dietas ácidas talvez não sejam prejudiciais para a saúde óssea”. Quanto ao possível benefício dos suplementos, o texto fecha com a seguinte ressalva: “O achado deve ser interpretado com cautela, e requer apoio de mais evidências clínicas”.
Essa conclusão vai ao encontro do desfecho apresentado por FRASSETTO, L. et al.(2018), neste, os autores avaliaram estudos que apoiavam ou contestavam a hipótese da “dieta alcalina”. O resultado demonstrou que não há indícios de que uma alimentação “ácida” aumente a degradação óssea. Ademais, esses achados corroboram com a base factual descrita por HANLEY, D. e WHITING, A. (2013), onde os autores, além de não encontrarem correlação entre osteoporose e dietas ácidas, lembram que idosos, em sua maioria, não atingem as necessidades proteicas diárias, um fator crucial para a saúde óssea.
Mas qual seria a motivação dos profissionais que fazem alegações infundadas, como a de que comer carne agrava osteoporose, ou de que mega-suplementação de vitamina K reduz o risco dessa doença?
Há várias possibilidades. Contudo, há três motivações que me chamam atenção e parecem levar ao cerne do problema.
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Evidência anedótica
Muitos desses profissionais que fazem atendimento clínico, ao obterem êxito com os pacientes, atribuem o sucesso a causas espúrias e criam padrões e utilizam protocolos que não apresentam validade científica, vide protocolo Coimbra (protocolo clínico que utiliza concentrações colossais de vitamina D para o tratamento de doenças autoimunes).
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Falsos messias
Infelizmente, uma grande parte dos profissionais da área da saúde é influenciada por pseudointelectuais e, por falta de pensamento crítico, fica imersa em uma teoria da conspiração dualista e perversa. Parafraseando: “Os médicos e a indústria farmacêutica estão empenhados em remediar o problema e não o tratar de fato. Felizmente, nós, portadores da verdade, ensinaremos como evitar doenças e ter uma vida mais saudável”.
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Egocentrismo
Ao analisarmos o aparecimento de um novo tratamento, a inclusão de um suplemento ou, ainda, uma nova diretriz a ser seguida para determinada patologia, é preciso levar em consideração uma vasta quantidade de artigos. Alguns vão concordar com relação à eficácia, outros talvez questionem a metodologia empregada. O debate gera novas questões, respostas e pode levar à execução de mais experimentos. Somente após todo esse processo é que será possível saber se determinada ação será eficaz para tratar um problema específico.
Muitos profissionais acabam se fazendo de “detentores da saúde”, colocando sua área como o fator principal para prevenção ou tratamento de doenças. Esses profissionais esquecem-se de que grande parte das patologias é multifatorial.
E, caro leitor, você pode se espantar com o que escreverei, mas sim, lamento profundamente que a alimentação não seja a razão primordial para a prevenção, tratamento ou cura de enfermidades. Quem dera fosse. Imagine o quão benéfico seria para os pacientes portadores de osteoporose se os únicos fatores para o aparecimento da doença fossem: falta de suplementação de vitamina K2 associada com D3 e uma dieta menos ácida. O problema seria sanado em um passe de mágica, todas as diretrizes governamentais seriam atualizadas e, por fim, voltaríamos nossa atenção para outras doenças que são ocasionadas por desequilíbrios de nutrientes. Infelizmente, não estamos em um mundo repleto de mágica, as práticas ortomoleculares não são comprovadas cientificamente e os estudos tanto de vitamina K quanto os de alimentação “ácida” não apontam para Pasárgada.
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
https://www.ftc.gov/system/files/warning-letters/ftc-covid-19-letter-robert_o_young
Acid Balance, Dietary Acid Load, and Bone Effects A Controversial Subject