Que estamos enfrentando uma crise hídrica não é novidade: algo que afeta a capacidade nacional de geração de eletricidade por meio de usinas hidrelétricas. Para complementar a oferta, usinas termelétricas foram acionadas, mas, como agregam um custo maior à energia produzida, um novo patamar tarifário foi criado recentemente – a “bandeira de escassez hídrica” –, contribuindo com a escalada da inflação.
A novidade do momento é que, na última quinta-feira (14 de outubro), alguns integrantes do governo, mais especificamente do Ministério de Minas e Energia, participaram de uma reunião com Osmar Santos, porta-voz da médium Adelaide Scritori, que alega ter uma via de contato com o espírito do Cacique Cobra Coral, uma suposta entidade capaz de alterar o curso da natureza.
Enquanto algumas fontes indicam que o próprio ministro parece julgar que a intervenção espiritual pode ser uma boa ideia – ao ter ordenado à Fundação Cacique Cobra Coral (FCCC) para que “faça chover” –, outras informam que nada de concreto foi resolvido na reunião, que teria servido apenas para ouvir o que o porta-voz da médium – que, por sua vez, é porta-voz do espírito – tinha a dizer.
A FCCC
A médium Adelaide Scritori, atualmente, está à frente da organização fundada por seu pai, o também médium Ângelo Scritori. Segundo o site da FCCC, o nome da instituição é o mesmo da entidade espiritual que Adelaide incorpora desde menina. O Cacique também já teria vivido na pele de outras celebridades, como Galileu Galilei e Abraham Lincoln.
Não tenho dúvidas de que bastaria esse histórico espiritual importante para que a Fundação ganhasse muitos adeptos, mas ainda somos informados da capacidade do Cacique para influenciar fenômenos da natureza, o que, convenhamos, é um diferencial especialmente desejado em diversas situações.
Não à toa, diversas empresas e autoridades governamentais já recorreram à FCCC para tentar estabelecer acordos meteorológicos. Há parcerias bem conhecidas, como a firmada com os governos da cidade do Rio de Janeiro e de Brasília. O festival Rock in Rio também solicitava os serviços do Cacique para evitar que chovesse durante o evento, mas a parceria foi rompida em 2015, quando não foi possível evitar o mau tempo.
A FCCC também anunciou ter desempenhado papel importante ao, supostamente, impedir que uma nuvem de gafanhotos atingisse as plantações brasileiras. Em outro caso, a Fundação publicou nota onde parece destacar, com orgulho, que diversos grandes empresários afirmam ser praticamente compulsório consultar o Cacique antes de realizar eventos a céu aberto.
Podemos, portanto, encontrar relatos positivos e negativos da suposta ação espiritual oferecida pela Fundação. Daí, a pergunta que não quer calar: como avaliar, cientificamente, se o apelo às forças do além é uma estratégia válida para interferir nos eventos climáticos?
Solução infalível
Uma das ferramentas importantes que os cientistas dispõem para saber quais são boas teorias para descrever a natureza é submetê-las ao teste: isso pode ser feito, por exemplo, utilizando a teoria para fazer previsões sobre como determinado fenômeno deve acontecer. Veja: podemos usar a Mecânica de Newton para prever a velocidade de queda de um paraquedista, ou a trajetória de uma sonda espacial a caminho de Marte. Quando comparamos as previsões com o que realmente acontece, obtemos um bom acordo. É por isso que aprendemos sobre as Leis de Newton na escola, e engenheiros ainda as utilizam para projetar prédios e montanhas-russas.
Ao longo da história da ciência, diversas teorias que geravam previsões em desacordo com os fenômenos observados foram abandonadas. Embora a discussão seja longa, podemos citar alguns exemplos, como a ideia do “calórico”, uma espécie de “líquido” já proposto para explicar as transferências de calor, e o conhecido modelo de “bola de bilhar” de Dalton, que não previa que os átomos fossem, como já sabemos que são, constituídos por partículas menores.
É verdade que quando uma teoria científica falha, os cientistas também podem recorrer a explicações alternativas para evitar descartá-la logo de cara. No entanto, essas explicações têm limite, pois não se pode sair inventando “muletas teóricas” indefinidamente: e exigimos que cada “muleta” seja, ela mesma, testável. A necessidade de submeter explicações teóricas a testes concretos é essencial para o avanço da ciência. Se abandonássemos esse requisito, poderíamos seguir acreditando que era mesmo o Coelho da Páscoa que escondia os ovos de chocolate no quintal.
Dentro desse contexto, o problema da estratégia de se recorrer a médiuns é que ela nunca “falha”. Veja, por exemplo, a situação com a FCCC: se a chuva vier, teremos um aparente sucesso! Mas cuidado com a conclusão: é muito fácil acreditarmos que há uma relação causal entre dois eventos que se sucederam fortuitamente – no caso, o apelo ao além e a condição meteorológica posterior. Esse atalho de raciocínio pode fazer com que depositemos todos os créditos meteorológicos à médium e ao espírito, quando, na realidade – como já se discutiu na Revista Questão de Ciência –, sabemos que não é porque o “evento B” ocorreu após o “evento A” que, necessariamente, foi o primeiro que causou o segundo.
Por outro lado, se a chuva não vier, ao invés de reconhecermos que a estratégia do além é inútil, podemos partir para uma série de saídas retóricas: ou o pedido foi feito tarde demais, ou o espírito estava muito ocupado com outros assuntos, ou então o espírito simplesmente não atendeu ao apelo porque julgou, por exemplo, que não merecemos.
Ou seja, o desfecho negativo não leva, como deveria, à reavaliação da hipótese. Além disso, quando se faz afirmações sobre a natureza apelando para entidades não verificáveis – como espíritos – fica impossível testar cientificamente sua validade, algo que também é característico das pseudociências: exemplos desse tipo são a tal da “energia vital”, muito comum no contexto da homeopatia, e os “chakras”, que os místicos tanto gostam.
No que se refere a supostos eventos resultantes de interações entre os espíritos e o mundo material, antes que alguém aponte o dedo aos cientistas para acusá-los de serem puramente “cabeça fechada”, muito já se estudou: quando a investigação ocorre de maneira cientificamente correta, em ambiente devidamente controlado, esses fenômenos encontram explicações completamente naturais dentro da psicologia – como mecanismos de leitura fria para alegados contatos com parentes mortos – e/ou do charlatanismo – com inúmeros casos famosos, dentre eles o das irmãs Fox.
E mesmo quando determinado evento simplesmente não pode ser explicado de imediato, a ausência de explicação também não nos permite atribuir sua causa ao mundo espiritual, pois estaríamos apelando à falácia da ignorância: “ninguém sabe o que aconteceu, logo eu sei que foram espíritos”. Ora, se ninguém sabe, então ninguém sabe. Existem muitos outros devaneios que poderiam ser supostamente confirmados por esse mesmo caminho: “o evento foi causado por uma quebra momentânea das leis da natureza”, “o evento foi causado por ações de gnomos invisíveis” e “o evento foi decorrente de viajantes no tempo com tecnologia de invisibilidade e controle supremo da natureza”. Decidir a favor de qualquer uma dessas explicações fica a gosto do freguês. Todas elas, no entanto, são cientificamente inválidas.
Portanto, somando-se, ao mecanismo de explicação infalível, que permite fingir que toda evidência negativa é irrelevante, o fato de que a ciência, até o momento, não tem razão nenhuma para reconhecer a existência de entidades espirituais (infelizmente, eu diria), ficamos sem meios de sustentar que o apelo à ajuda do além seja mesmo uma boa estratégia.
Aliás, o mesmo tipo de explicação infalível poderia ser aplicado para um eventual desfecho negativo após apelarmos para o recurso da dança da chuva: assim, poderíamos, ao invés de recorrer à Fundação, marcar um dia e horário para que as pessoas parem seus afazeres e se dediquem à prática. Caso a chuva venha, a estratégia terá sido um aparente sucesso, fazendo muitos acreditarem que a dança foi mesmo eficiente; caso não venha, então o motivo é que não dançamos corretamente, ou não mentalizamos adequadamente, ou, ou...
Entidades reais
Segundo especialistas na área climática, as causas por trás da escassez hídrica são diversas, passando por ciclos naturais, desmatamento e as mudanças climáticas decorrentes do aquecimento global. Muito diferente do mundo imaginário sobrenatural, a respeito do qual só existem fantasias e conjecturas, já temos dados bastante concretos acerca de todos esses processos, como as inúmeras evidências do aquecimento do planeta e os resultados do acompanhamento constante da devastação da vegetação brasileira.
Porém, para esses problemas não há uma solução imediata. Não temos “botão de pânico” disponível para resolver a situação da noite para o dia. Os cientistas já alertam sobre questões ambientais há décadas – literalmente –, mas o que se vê é uma série de medidas, mesmo as provenientes de acordos internacionais, que precisam ser ainda melhoradas – e cumpridas – para surtir efeitos práticos somente décadas à frente. Face ao cenário difícil da realidade, recorrer aos espíritos pode ser mesmo um sinal de desespero.
Por fim, outra “entidade” bastante real que precisamos acompanhar é a destinação dos recursos públicos. Ao menos nesse quesito, uma boa notícia: as ações e parcerias firmadas entre entidades governamentais e a FCCC não geram ônus ao Erário. Agora, é preciso reconhecer que não seria uma grande surpresa se o serviço esotérico onerasse o Estado, pois financiar pseudociências já é algo presente na realidade nacional, bastando verificar a quantidade de práticas infundadas que são subsidiadas pelo SUS. É melhor não deixar o Cacique descobrir.
Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)