Avolumam-se os sinais de alerta para uma correlação firme entre filiação religiosa e hesitação vacinal – isto é, relutância em aceitar vacinas – ou vulnerabilidade ao discurso antivacinas mais radical, recheado de teorias de conspiração, o dos chamados antivaxxers. E o grupo religioso que se mostra mais aberto a esse tipo de manipulação parece ser o dos evangélicos.
No Brasil, pesquisa publicada pela Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) no final de 2019 - antes do início da pandemia, portanto - apontava os evangélicos como a identidade religiosa mais receosa em relação a vacinas (19% declarando-se incertos quanto à segurança dos imunizantes, ante 11%-12% no restante da população). Estudo recente, realizado no Maranhão, associou a filiação evangélica a um maior risco de hesitação vacinal.
Outra pesquisa, esta conduzida em junho deste ano nos Estados Unidos, mostrava que integrantes do grupo demográfico “cristãos evangélicos brancos” estão entre os que mais dizem que “definitivamente nunca” iriam se vacinar contra COVID-19 (22%), atrás apenas dos moradores de áreas rurais (24%) e de membros do Partido Republicano (23%). Mais um levantamento, também realizado nos EUA, mostra que municípios com maioria evangélica têm taxas de vacinação mais baixas.
Pelo menos desde a segunda metade do século passado, o Brasil tem sido um país razoavelmente impermeável à propaganda de grupos antivacinas, que até a eclosão da pandemia atual vinham se restringido quase que apenas a um público de classe alta e adepto de um estilo de vida supostamente “natural”.
Mesmo diante dos comentários hostis à vacinação contra COVID-19 feitos pelo presidente Jair Bolsonaro e do desmantelamento deliberado do Programa Nacional de Imunizações, que já vinha sendo desprestigiado desde o início do governo e permaneceu meses sem comando em meio à pandemia, a maior parte da população brasileira segue se declarando disposta a receber o imunizante contra a COVID-19. Mesmo assim, o risco de “vazios” vacinais em setores específicos da população é preocupante.
Contexto
Antes de prosseguir, é importante pôr a aparente vulnerabilidade exacerbada dos evangélicos à propaganda antivacinas em seu contexto histórico, e evitar que uma questão social degenere em disputa religiosa. O problema não é a natureza ou doutrina específica desta ou daquela forma de devoção, e sim o modo como a natureza e a doutrina interagem com a conjuntura de cada momento, com o espírito e as pautas peculiares do tempo.
Até a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) ser colonizada por protestantes criacionistas, a maior ameaça – de origem religiosa – ao desenvolvimento científico brasileiro havia partido do catolicismo romano, quando em 2005 o então procurador-geral da República, o “terrivelmente católico” Cláudio Fonteles, resolveu usar o cargo para impor ao país o dogma da santidade do óvulo humano fecundado, e proibir pesquisas com células-tronco embrionárias. A pretensão de Fonteles foi derrotada, mas somente após longa batalha no STF.
Em termos de agenda social reacionária, também é bom lembrar que o Brasil precisou de um ditador protestante – o general Ernesto Geisel, luterano – para finalmente ver legalizado o divórcio, em 1977, vencendo a oposição quase centenária do clero católico: a primeira tentativa, frustrada, de legalizar e regulamentar a dissolução de matrimônios entre nós datava de 1893, quatro anos depois da proclamação da República (supostamente) “laica”.
E, claro, o único grupo fascista a organizar-se formalmente na história brasileira, a Ação Integralista Nacional, foi fundado por Plínio Salgado (1895-1975), intelectual e teólogo católico; e a forma mais saliente de fanatismo religioso no Brasil do século passado foi a praticada por outra organização católica, a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), fundada pelo devoto mariano Plinio Corrêa de Oliveira (1908-1995).
O criacionismo, que em anos recentes passou a assombrar a agenda nacional de educação e, até, de pesquisa, nunca antes havia gerado conflitos no Brasil não pela qualidade de nossa educação, mas pelo mero acidente histórico de o Vaticano ter preferido ignorar Darwin. O Vaticano condena o divórcio, e por isso os casais brasileiros que davam errado precisaram esperar 84 anos pelo privilégio de separarem-se e poderem constituir novas famílias. Dependendo das condições, até monges budistas instigam genocídios, como o cometido contra os rohingya em Myanmar.
Marca da Besta
Em seu livro “Recusa de Vacinas: Causas e Consequências”, de 2013, o médico Guido Levi escreve que “entre os cristãos, são raros os grupos que fazem objeção à vacinação”. E destaca os evangélicos como exemplo positivo: “A maioria dos evangélicos tradicionais não só se mostra favorável às imunizações, mas inclusive colabora para sua difusão e aplicação”.
Ironicamente, um ano depois da publicação do livro, veio a primeira tentativa moderna de mobilizar o sentimento religioso contra vacinas no Brasil: a associação espúria entre sexualidade e a vacina contra HPV, que previne câncer do colo do útero, acabou convencendo pais religiosos conservadores, católicos e evangélicos, a evitar aplicar a vacina nas filhas.
A polêmica na época gerou um clima de incerteza a respeito da vacina, que desencadeou casos de doença psicogênica – quando a tensão emocional causada pelo receio da vacina assume a forma de sintomas físicos como convulsões ou paralisia – e abriu caminho para a criação do primeiro grupo formal antivacinas do Brasil, estabelecido em 2020.
Mas, se a vacina para COVID-19 não tem nenhuma ligação (espúria que seja) com sexualidade, qual a causa da hesitação maior entre evangélicos? Uma razão inicial parece ser uma espécie de “contágio ideológico”, em que grupos com agendas inicialmente distintas acabam absorvendo as pautas uns dos outros, quando fecham uma aliança ou creem estar diante de um inimigo comum. No caso, o conservadorismo religioso teria sido contaminado pela ideação conspiratória do parceiro da ocasião, a extrema-direita populista.
Mas a fertilização cruzada rendeu frutos para além de uma vaga desconfiança em relação aos imunizantes. Notícias vindas dos Estados Unidos, que ainda hoje são a principal matriz ideológica do cristianismo evangélico brasileiro, dão conta de que cresce o mito de que os certificados de vacinação correspondem ao “sinal da besta” descrito no Apocalipse de João. Segundo este livro – o último – da Bíblia, o fim dos tempos será precedido pela chegada ao poder de um tirano anticristão que, entre outras coisas,
“...faz que a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e servos, lhes seja posto um sinal na sua mão direita, ou nas suas testas/Para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tiver o sinal, ou o nome da besta, ou o número do seu nome” (Apocalipse 13:16,17).
E receber esse sinal é um problema, porque, mais tarde, depois que as Forças do Bem virarem o jogo,
“...a besta foi presa, e com ela o falso profeta, que diante dela fizera os sinais, com que enganou os que receberam o sinal da besta, e adoraram a sua imagem. Estes dois foram lançados vivos no lago de fogo que arde com enxofre./E os demais foram mortos com a espada que saía da boca do que estava assentado sobre o cavalo, e todas as aves se fartaram das suas carnes” (Apocalipse 19:20,21).
Não culpo ninguém por achar isso tudo uma bobagem, mas se uma parcela significativa da população achar que não é bobagem, temos um problema. Ano passado, a TV Record, emissora controlada pela denominação evangélica neopentecostal Igreja Universal do Reino de Deus, exibiu a telenovela Apocalipse, dramatizando os versos acima em roupagem contemporânea, e a suposta atualidade dos “sinais” do fim dos tempos é presença constante na pregação feita lá.
Mesmo o discurso vinculando a vacina à “marca da besta” já circula, há meses, entre missionários evangélicos em ação no Brasil, tanto brasileiros quanto estrangeiros, segundo reportagem do UOL.
Resta saber se essa rejeição de caráter doutrinário-religioso vai se restringir à vacina contra COVID-19, ou se denominações evangélicas abraçarão um antivacinismo mais amplo, condenado todas as imunizações. Se isso acontecer, o movimento, que já se prestou ao papel de porta de entrada para o criacionismo no país, acabará servindo de canal para algo muito pior e mais perigoso.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)