Novo antiviral e a chance de um verdadeiro tratamento “precoce”

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4 out 2021
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A farmacêutica Merck anunciou, em comunicado à imprensa, o sucesso do seu novo antiviral, o Molnupiravir, no controle da progressão da COVID-19 para quadros graves. Os testes do novo antiviral ainda não foram publicados sob a forma de artigo científico ou revisados por especialistas independentes, mas o que se divulgou até agora soa promissor.

Os testes de fase 3 do medicamento (realizados, em parte, no Brasil), envolveram 762 voluntários, todos com diagnóstico positivo para COVID-19. A empresa reportou que dos 377 voluntários que receberam placebo, 53 (aproximadamente 14%) precisaram de hospitalização. Dos 385 que receberam o medicamento de verdade, apenas 28 (aproximadamente 7%) precisaram ser internados. Todos os voluntários eram sintomáticos, tinham pelo menos um fator de risco para progressão de doença, e receberam o tratamento – ou placebo – nos cinco dias após o aparecimento dos sintomas.

Os resultados foram considerados tão promissores que o DSMB (Data and Safety Monitoring Board), o comitê externo que acompanha o estudo, inclusive em seus aspectos éticos, decidiu interromper o teste para que o grupo placebo também pudesse ser medicado. Efeitos colaterais dignos de nota não foram observados em nenhum dos grupos, e o medicamento é oral: o tratamento consiste em duas pílulas por dia.

Fazer antivirais eficazes e seguros não é fácil. Vírus são criaturas minimalistas, que aproveitam muito da maquinaria da célula hospedeira, no caso do SARS-Cov-2, da célula humana, para se reproduzir. Isso significa que é muito difícil encontrar um medicamento que atrapalhe o vírus sem, ao mesmo tempo, prejudicar o funcionamento normal de células saudáveis.

Isso é completamente diferente no caso de bactérias, que são independentes da célula hospedeira para se replicar. Além disso, as “máquinas” das bactérias são diferentes das humanas, então fica mais fácil desenvolver medicamentos como antibióticos, que têm como alvos estruturas que só existem em bactérias. Para facilitar ainda mais, muitas dessas estruturas são comuns a diversas espécies de bactérias, o que faz com que um antibiótico possa funcionar para vários tipos de bactéria de uma vez. Por isso, temos muitos antibióticos genéricos, de amplo espectro, mas poucos antivirais.

O acyclovir foi um pioneiro antiviral, que levou inclusive a um Prêmio Nobel. Neste caso, a droga precisa ser ativada por uma proteína que só o vírus tem. Logo a droga só é ativa em células infectadas, não causando efeito colateral em outras células.

Achar um antiviral genérico é, portanto, um imperativo não só para combater esta pandemia, mas para pandemias futuras causadas, por exemplo, por outros coronavírus. Uma vacina é bem específica para uma doença. Um antiviral genérico pode, em teoria, dar conta de diversos tipos de vírus diferentes, desde que eles tenham um mecanismo comum. E de preferência, que este mecanismo comum não seja também comum à célula humana.

Vírus de RNA, como os coronavírus, têm uma característica em comum: precisam de uma enzima específica para replicar o seu material genético, que diferentemente do nosso, é baseado em RNA, e não em DNA. Não existe, numa célula humana, proteína capaz de fazer cópias de moléculas de RNA. Mas o vírus precisa copiar RNA para se reproduzir. Para isso, alguns vírus têm uma enzima chamada “RNA polimerase dependente de RNA”, ou RdRp. Esta enzima é essencial para que ele se replique. E afinal, o que o vírus “quer” é se multiplicar.

A RdRp parece, portanto, um bom alvo para um antiviral, certo? É exclusiva do vírus, e essencial para sua multiplicação. E muitos vírus de RNA compartilham essa enzima, então qualquer medicamento que afete essa proteína pode servir para espécies diferentes.

O Molnupiravir não é o primeiro antiviral que tem essa enzima como alvo. O Remdesivir também funciona atrapalhando a RdRp. Ambos os antivirais são o que chamamos de “análogos de nucleotídeos”. Lembra daquelas letrinhas que compõem o DNA, as famosas A, T, C e G? São os nucleotídeos. O RNA também é formado por essas letrinhas, só que no lugar do T, tem um U. A ideia de usar análogos dessas letrinhas é confundir a RdRp. Ela pensa que está usando um nucleotídeo, mas na verdade está usando uma cópia falsa, e que não funciona direito.

O princípio dos dois medicamentos é parecido, mas o modo de ação, não. Os dois imitam nucleotídeos, o Remdesivir imita a Adenosina (A), e o Monupiravir imita a Citosina e a Uracila (C e U). No caso do Remdesivir, após a incorporação de três nucleotídeos falsos, a enzima vai ficando mais lenta, até parar de vez. É como um carro freando.

O Molnupiravir funciona diferente: ele engana tão bem a enzima que ela não para, mas os nucleotídeos falsos induzem mutações. O nucleotídeo falso do Molnupiravir causa erros na replicação. Como ele imita tanto um C como um U, quando a enzima vai montar os pares para produzir a outra fita de RNA (lembra que A pareia com T, e C pareia com G, e assim vai-se replicando a fita?), ela não sabe bem se está vendo um C ou um U, e acaba errando no pareamento.  

Isso acontece muitas vezes durante a replicação do material genético do vírus, e o resultado é uma fita de RNA completamente inútil. Está tão cheia de erros que não vai servir para o vírus produzir suas próprias proteínas. Assim, dizemos que o Remdesivir é um bloqueador de cadeia, e o Monulpiravir, um análogo de nucleotídio mutagênico.

O medicamento também parece escapar do mecanismo de correção que o SARS-Cov-2 utiliza. Os pareamentos errados provocados pelo antiviral são bastante fortes, e a enzima de correção parece não perceber. Assim, as mutações não são corrigidas, e se perpetuam. Outra vantagem? Com tantas mutações, é pouco provável o surgimento de formas resistentes.

A maior vantagem, no entanto, pode ser a aplicação oral do remédio. O Remdesivir, por ser de aplicação direta na corrente sanguínea, acaba sendo utilizado só em ambiente hospitalar. O ideal para um antiviral é ser utilizado nos primeiros dias após a infecção, pegando a janela de maior replicação viral. Esperar a hospitalização pode ser tarde demais. Um remédio de uso oral pode, portanto, ser tomado após o diagnóstico, em casa, e impedir que o paciente precise de hospitalização.

Esse sim é um tratamento “precoce”. Mas com um medicamento que tem plausibilidade e probabilidade biólogica, mecanismo de ação bem descrito e um teste clínico de fase 3 favorável. Como sempre, o correto é aguardar a publicação transparente dos resultados e a crítica dos pares antes de sair soltando rojão, mas pode ser que finalmente tenhamos um medicamento específico para COVID-19.  

Natalia Pasternak é microbiologista, pesquisadora associada do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, presidente do Instituto Questão de Ciência, membro do Committee for Skeptical Inquiry (CSI), colunista do jornal O Globo e coautora de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto). Atualmente, é "visiting scholar" em Columbia University

Mauricio L. Nogueira é médico e doutor em virologia, e foi presidente da Sociedade Brasileira de Virologia. Atualmente é professor adjunto da Faculdade de  Medicina de São José do Rio Preto

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