À medida em que os contornos da adoção do tratamento precoce da COVID-19 começam a ficar mais nítidos, a partir de investigações realizadas no âmbito da CPI em curso no Senado, também ficam mais claras as ações e omissões institucionais que permitiram a disseminação de um protocolo farmacológico sem qualquer indício de eficácia.
A Agência Nacional de Saúde deixou de fiscalizar o uso de “kit-Covid” por planos de saúde, o Conselho Federal de Medicina endossou o uso off-label de hidroxicloroquina e deixou de investigar denúncias, e o próprio Ministério da Saúde, em maio de 2020, deu materialidade oficial ao tratamento precoce com o documento “Orientações do Ministério da Saúde para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da COVID-19”. Ação protocolada no Supremo Tribunal Federal (STF) em junho de 2020, solicitando a suspensão dessas orientações do Ministério da Saúde, ainda espera, há mais de um ano, julgamento.
Trata-se de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 707), interposta como cautelar relacionada à ADPF 672, que solicita a derrubada do protocolo do Ministério da Saúde para uso da hidroxicloroquina (HCQ) para tratamento da COVID-19, bem como garantia de que estados e municípios não serão obrigados a adotar tratamento precoce, como algumas ações do Ministério Público Federal pretendiam. É uma ação interposta diretamente ao Supremo Tribunal Federal (STF), solicitando medidas imediatas para a suspensão do protocolo, em função do dano potencial tanto à saúde da população quanto ao Erário, em função da política de incentivo ao uso precoce.
O dano, hoje sabemos, ocorreu. Entre manifestações do Ministério da Saúde, da Advocacia Geral da União (AGU) e da Procuradoria Geral da República (PGR), o processo se encontra no status de concluso ao relator – pronto para sentença – desde março de 2021. Coincidência ou não, o relator é Kássio Nunes Marques, ministro do STF apontado por Bolsonaro, que assumiu as ações que se encontravam sob a responsabilidade do recentemente aposentado Celso de Mello.
Embora o STF tenha agido de maneira célere e relevante em assuntos relacionados à pandemia, como nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.431 e 6.343 e na já mencionada ADPF 672 (em todas, versando sobre competência concorrente dos entes federativos no combate à pandemia), deixou de se manifestar tempestivamente sobre a política oficial que fundamentou negacionismos cujos impactos continuam sendo sentidos.
Embora seja possível discutir, e a defesa do governo via AGU vai nesse sentido, os limites do Judiciário quanto à interferência em políticas do Executivo, a ausência de posicionamento permitiu que o protocolo, levemente alterado, de julho de 2020 (Nota Informativa 17, sucessora das notas 9 e 11) tenha ficado no ar nas páginas do Ministério da Saúde até abril de 2021, quando foi retirado às pressas, por conta do início iminente da CPI. A inércia judicial permitiu que, durante praticamente um ano, enquanto milhares de pessoas morriam, a instância sanitária máxima do país recomendasse tratamento ineficaz.
A desistência oficial viria só em julho de 2021 com um parecer da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do Sistema de Saúde (CONITEC) rejeitando a eficácia da HCQ e outros fármacos no tratamento da COVID-19. A cautelar já apontava a ausência de manifestação da CONITEC, obrigatória para adoção de novos protocolos clínicos, como um entrave à política do governo federal.
O pedido já perdeu, em boa medida, o seu objeto. O Ministério da Saúde não mais endossa oficialmente o discurso do tratamento precoce (embora o presidente o mantenha), o Ministério Público Federal interrompeu sua ofensiva pelo oferecimento forçado de tratamento precoce e a Secretaria de Comunicação do Governo não mais divulga publicações em defesa do tratamento precoce.
É de se questionar, contudo, quantas vidas não poderiam ter sido salvas caso a chancela oficial a um tratamento sem qualquer respaldo científico não estivesse vigente durante os piores momentos da pandemia no país. Sem o Ministério da Saúde como elemento central de suporte técnico, boa parte do suporte periférico à tese provavelmente não teria vicejado.
Ainda que a decisão do Supremo tivesse sido no sentido de impossibilidade de interferência direta na política do governo, embora fatos como a mencionada ausência de manifestação obrigatória da CONITEC levem a pensar de modo contrário, isso poderia ter acelerado o debate paralelo sobre o fortalecimento de ferramentas institucionais para coibir abusos praticados por um Executivo sem compromisso com a democracia, com os princípios da administração pública e com políticas públicas baseadas em evidência (em especial, na área da saúde).
Fica evidente, mais uma vez, nossa dificuldade como sociedade de criar e manter instituições fortes, inflexíveis a personalismos, interesses de ocasião e rompantes autoritários. Nesse caso, vemos uma atuação de Ministério de Saúde, AGU, PGR e MPF orbitando os caprichos do presidente, aliada a uma morosidade injustificável para a prolação de sentença em ação relatada por um ministro indicado pelo próprio. Passada a emergência, haverá muito a se fazer.
Paulo Almeida é psicólogo, advogado, doutorando em administração pública e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência