Conforme avança e cresce o número de pessoas vacinadas, crescem também as tentativas de desinformar a população sobre esta que é a mais importante ferramenta no combate à COVID-19. Nesse sentido, é interessante notar que os argumentos falaciosos mais utilizados pelos adversários da vacinação em geral envolvem a “possibilidade”, ficcional, de a vacina provocar mortes, ou então algum efeito adverso drástico, como infertilidade.
Vocabulário
Essa escolha de vocabulário não é aleatória. Ninguém espalha por aí que vacinas causam unha encravada ou flatulência. Por quê? Porque o impacto do termo “infertilidade” é mais poderoso. Além disso, a estratégia não é nova. Isso também foi falado sobre a vacina para HPV, inclusive na forma de artigo suspeito, que depois foi removido do periódico no qual foi publicado.
Ainda que no Brasil seja crescente o número de mulheres que não pretende ter filhos, a maioria das brasileiras em idade fértil afirma que, no futuro, gostaria de ser mãe. Nesse contexto, é fácil entender que tenham receio de que uma vacina estrague esse sonho. Exatamente por esse motivo que o argumento falso de que vacinas causam infertilidade configura um agressivo apelo ao medo, deliberadamente pensado para assustar essa população.
Esse discurso se aproveita da exaltação crescente de um estilo de vida mais “natural”, promovido em contraste com a “demonização” de tudo aquilo que é industrializado. E mais do que isso, tenta fornecer às mulheres uma falsa sensação de “eu tenho controle sobre meu corpo, e por isso não quero utilizar uma substância que irá me impedir de ter filhos”. Como hoje se reconhece que, ao longo da história, a autonomia da mulher, principalmente na hora de tomar decisões sobre reprodução, foi sistematicamente desrespeitada ou ignorada, esse argumento antivacina acabam prometendo uma “contrapartida” que devolveria à mulher esse autodomínio, ao recusar o imunizante. O que fica de lado nessa equação é que essa autonomia, no caso da recusa em vacinar-se, é exercida com base em informações falsas e, portanto, não é autonomia, mas autoengano.
O autoengano cria um paradoxo: ao, em tese, assumir o controle do seu corpo e recusar a vacina, na verdade abre-se mão desse controle, pois aumenta-se a vulnerabilidade à infecção pela COVID-19. É a falsa “cultura de bem-estar natural” fazendo seu lobby nas sombras: sem vacinas, mais pessoas doentes e dispostas a se submeter a qualquer tratamento pseudocientífico.
O fato é que não há evidências que vacinas provoquem quaisquer problemas de fertilidade. Os estudos que investigaram a possibilidade não mostraram alterações em homens ou mulheres. Por outro lado, há indícios de lesões no sistema reprodutor masculino após infecção por COVID-19.
Não satisfeito até este ponto, o antivacina costuma acrescentar: "Mas há mulheres que alteraram a menstruação após a vacina". Sim, esta pode ser uma observação verdadeira. A vacinação provoca significativo estímulo do sistema imunológico, provocando alterações temporárias na fisiologia. Afinal de contas, estamos ensinando nosso corpo a combater uma doença. Assim como há atrasos, adiantamentos e alterações no ciclo menstrual causados por estresse, uso de medicamentos e infecções, isso também pode acontecer com uma vacina, mas nada tem a ver com impactos na fertilidade.
VAERS e sistemas de notificação
Em live recente, uma médica brasileira conhecida por promover ozonioterapia fez uma série de afirmações falsas sobre vacinas, apelando para a descontextualização de dados de sistemas de notificações de eventos adversos, como o VAERS e o VigiMed. A associação “Médicos pela Vida” (seria mais honesto se se chamassem “Médicos contra Vacinas”) e seus membros também têm citado de maneira recorrente esses dados em seus manifestos, lives e abaixo-assinados.
Em português a sigla VAERS (Vaccine Adverse Event Reporting System) significa Sistema de Notificação de Eventos Adversos de Vacinas. Trata-se de um programa de notificação de possíveis reações negativas a vacinas, gerenciado por dois órgãos federais de saúde dos Estados Unidos, CDC e FDA. Diversos países têm sistemas semelhantes. Nós temos, na Anvisa, o VigiMed. Esses sistemas de notificação são ferramentas importantes para acompanhar possíveis consequências negativas do uso de um medicamento ou vacina após sua aprovação e comercialização. É uma forma de "ficar de olho" nas vacinas, agora que estão sendo usadas em grande escala.
Profissionais e instituições de saúde, bem como pacientes, são encorajados a notificar qualquer reação suspeita que aconteça e que possa ter alguma ligação com a vacina. Por exemplo: se eu me vacinar hoje e daqui alguns dias eu morrer, essa morte será notificada no sistema. Da mesma forma, se eu passar mal, se tive algum problema de saúde próximo à utilização da vacina, posso notificar isso no sistema. Esses dados brutos serão posteriormente avaliados, interpretados e investigados para saber se existe de fato uma ligação entre o efeito reportado e a vacina, ou se foi só coincidência. É um trabalho investigativo fundamental que visa garantir a segurança da população.
É importante notar que passar mal após tomar vacina não significa passar mal por causa da vacina. Morrer após tomar vacina não significa morrer por causa da vacina. Retornando ao exemplo de questões reprodutivas, tanto a médica quanto a associação supracitadas afirmam que há riscos de a vacina provocar infertilidade, além de provocar abortos espontâneos . É importante notar que a taxa de aborto espontâneo no primeiro trimestre de gestação naturalmente varia de 10% a 20%. Se uma dessas pessoas tiver acabado de tomar uma vacina, pode cogitar que o aborto que sofreu tenha sido por causa da vacina e isso será notificado e entrará no banco de dados. Contudo, seria necessário que a porcentagem de abortos em vacinadas fosse maior do que a que ocorre naturalmente entre as grávidas em geral, no mesmo local e no mesmo espaço de tempo, para começar suspeitar das vacinas. Então, os dados desse sistema servem como ponto de partida para investigação, não como prova de que houve algum efeito causado por vacinas.
Ignorando esses fatos, grupos antivacina têm usado os dados do VAERS como a "prova cabal" de que vacinas provocam muitos efeitos graves ou mortes. Parece que ignoram ou esqueceram de ler o aviso que o próprio CDC oferece antes de conceder acesso a essas informações: “VAERS reports alone cannot be used to determine if a vaccine caused or contributed to an adverse event or illness. The reports may contain information that is incomplete, inaccurate, coincidental, or unverifiable” (em tradução livre: As notificações do VAERS, sozinhas, não podem ser utilizadas para determinar se uma vacina causa ou contribui para um efeito adverso ou doença. Essas notificações podem conter informações que são incompletas, imprecisas, coincidentes ou inverificáveis).
Para ilustrar de maneira caricatural esse aviso, o anestesiologista James Laidler fez propositalmente, em 2004, uma notificação no VAERS afirmando que a vacina que ele tomou o havia transformado no Incrível Hulk. A notificação foi aceita e entrou no sistema até o CDC ligar para o médico pedindo permissão para remover a curiosa “queixa”. Obviamente a permissão foi concedida, mas, caso não fosse, a “reação” estaria no banco de dados até hoje.
Vacina é autonomia
Distorcer e utilizar inadequadamente dados de notificação de sistemas de vigilância em saúde, bem como difundir efeitos adversos falsos, mas assustadores, para grupos vulneráveis caracteriza duas categorias de profissionais:
O profissional desinformado, que não conhece Epidemiologia ou Método Científico;
O profissional que conhece essas limitações e deliberadamente opta por promover essa desinformação porque possui interesses escusos.
Em ambos os casos estamos diante de prejuízos difíceis de mensurar.
Não podemos admitir que haja mulheres jovens em ventilação mecânica ou morrendo, bem como abortos, natimortos ou nascimentos prematuros precipitados por infecção pela COVID-19 por causa de fake news que afastam as mulheres da vacina. Nesse contexto, se vacinar faz parte de assumir o controle reprodutivo. Tenho plena consciência que não tenho protagonismo para falar sobre os direitos reprodutivos das mulheres. Mas disserto aqui como um profissional de saúde e professor que considera a educação emancipatória uma das formas mais eficientes de garantir a verdadeira autonomia dos indivíduos.
André Bacchi é professor de Farmacologia do Curso de Medicina da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico por meio dos podcasts Synapsando, Scicast, Spin de Notícias e Scikids