O sono é uma necessidade fisiológica básica, como comer e respirar, e as estimativas são de que passamos – ou, ao menos, deveríamos passar – cerca de um terço de nossas vidas dormindo. Assim, se ficarmos muito tempo sem dormir, ou dormindo mal, nosso corpo começa apresentar sinais de colapso, com a privação de sono por longo prazo chegando a levar à morte de animais em experimentos. No caso de seres humanos, a primeira a sofrer é nossa cognição, com dificuldades crescentes de atenção, memória e raciocínio, mas logo também surgem consequências físicas e psicológicas, que vão de mais chances de depressão, ansiedade e demência a maior risco de desenvolver condições como obesidade, doenças cardíacas, hipertensão e diabetes.
Dada sua importância para a saúde, é preocupante a prevalência de distúrbios do sono na população em geral, numa proporção que vem aumentando nos últimos anos. Diferentes estudos no Brasil e nos EUA apontam que de uma em cada três pessoas a até mais de 70% dos adultos sofrem ou relatam problemas para dormir ou durante o sono, que incluem de insônia a roncos e apneia, passando por terrores noturnos, síndrome das pernas inquietas, hipersonia (ou sonolência excessiva) e narcolepsia, numa extensa lista de mais de 80 desordens diferentes.
Tal contingente de afetados, no entanto, também é um alvo sedutor, e lucrativo para produtos que prometem muito e entregam pouco (ou nada). Um exemplo disso são os chamados “colchões magnéticos”, com algumas marcas sendo comercializadas a preços muitas vezes superiores aos dos convencionais. Num passo além dos vendedores “fantasiados” de médicos, com seus sempre presentes jalecos brancos, das lojas de marcas de colchão “comuns”, os fabricantes e representantes da variedade "magnética" recorrem a termos e conceitos de aparência científica para, mais que vender conforto, prometer benefícios fisicamente implausíveis à saúde – ou nada além do que seria esperado de hábitos de sono regulares –, em estratégias típicas das pseudociências.
“Magnetoterapia”
O fascínio humano com o magnetismo, e as crenças em torno de seus supostos poderes “mágicos”, remontam à própria descoberta desta força invisível de ação a distância. Em sua “História Natural”, escrita no primeiro século da Era Comum (EC), o historiador romano Plínio, o Velho (23 EC - 79 EC) conta que ela teria acontecido cerca de mil anos antes, quando um pastor, chamado Magnes, da região da Magnésia, no que hoje é a Turquia, teria observado que suas sandálias – ou, mais especificamente, os pregos de ferro nela usados – eram atraídas para o chão quando andava em alguma áreas, levando-o a identificar pedras que “armazenavam” esta força, um óxido de ferro que ficou conhecido como magnetita (Fe3O4), em sua homenagem.
De lá para cá, o magnetismo e sua “irmã” eletricidade (ambos fenômenos só seriam unidos em um mesmo arcabouço teórico no século 19, graças ao trabalho de cientistas como Hans Christian Oerstad, Michael Faraday, André-Marie Ampère, Charles-Augustin de Coulomb e, finalmente, o escocês James Clerk Maxwell) foram objeto de diversas propostas de uso terapêutico.
Desde as mais inócuas, como braceletes e anéis magnéticos para tratamento de artrite e dores nas articulações, usados sem sucesso da Grécia Antiga aos dias atuais, numa indústria que em 2006 faturava mais de US$ 1 bilhão anualmente, até aplicações promissoras, como a estimulação magnética transcraniana como terapia auxiliar da depressão, enxaqueca e, mais recentemente, transtorno obsessivo-compulsivo.
Nestes casos, porém, os efeitos se dão pela eletricidade induzida nos tecidos pelos pulsos magnéticos usados nestes tratamentos, fenômeno que não ocorre com campos magnéticos estáticos de ímãs em repouso, como os distribuídos em um colchão.
A grande maioria dos efeitos propostos da chamada magnetoterapia sofre de enormes implausibilidades físicas e biológicas. Uma das mais comuns busca relacionar seus supostos benefícios à presença de ferro na hemoglobina, a molécula responsável pelo transporte de oxigênio em nosso organismo. Por esta lógica, uma pulseira ou bracelete magnéticos, por exemplo, ajudariam a concentrar sangue rico em oxigênio nas áreas desejadas, em assim, o processo de cura.
Acontece que o campo magnético gerado por um ímã comum, como as peças de ferrite usadas para prender recados na geladeira, ou por “joias terapêuticas”, é muito fraco, da ordem de 4 microtesla (ou 0,000004 tesla) na superfície, e perde intensidade rapidamente com a distância, não penetrando mais que alguns poucos milímetros da pele, mesmo se colocado diretamente sobre ela. Mais que isso, o ferro presente no sangue é muito diferente do ferro metálico, que apresenta forte magnetismo pela forma como os átomos do material estão ligados entre si, num fenômeno chamado ferromagnetismo.
Já os átomos de ferro do sangue estão isolados entre si e incorporados às grandes moléculas orgânicas de hemoglobina, reagindo independentemente à ação de campos magnéticos. Não é por nada que ao segurarmos um ímã nas mãos, ou pousarmos um deles no corpo, nossas palmas ou pele não ficam imediatamente vermelhas, como deveriam, se o sangue fosse mesmo atraído por de modo tão notável quanto o alegado pelos adeptos da magnetoterapia.
Na verdade, para produzir efeitos perceptíveis no corpo humano, campos magnéticos precisam ser muito mais intensos, como os das máquinas de ressonância magnética usadas para fazer exames de imagem em laboratórios, clínicas e hospitais, destaca o físico Alexandre Reily Rocha, diretor do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
“Existe um efeito de um campo magnético sobre o corpo humano? Sim, existe, e um caso que é bastante utilizado na medicina é a ressonância magnética”, conta. “Num exame de ressonância magnética, você é introduzido em um grande ímã, de 4 teslas tipicamente, e o que ele faz é causar um efeito sobre os átomos de hidrogênio no seu corpo. Com este efeito, a gente consegue, usando uma série de tecnologias, visualizar dentro do corpo humano. Basicamente, o que estamos vendo são átomos de hidrogênio. E como o corpo humano é basicamente água, conseguimos ver diferentes concentrações de água nele, o que pode indicar lesões, por exemplo. Mas para vermos estes efeitos precisamos de equipamentos extremamente tecnológicos, avançados, e a pessoa deve ser inserida num campo magnético de 4 tesla, que é algo enorme, ordens de grandeza superior ao que teríamos com os ímãs destes colchões”.
Assim, diz Rocha, para ter efeitos observáveis em sua fisiologia, uma pessoa teria que dormir dentro de um aparelho de ressonância magnética ligado.
“E nada indica que dormir dentro de uma câmara de ressonância magnética tenha algum efeito benéfico”, acrescenta. “Pelo contrário, se aumentarmos este campo e formos para 6 tesla, por exemplo, temos indicações de que isso começa a ter um efeito deletério. A gente poderia aumentar o campo para ter uma melhor resolução, mas somos impedidos pela própria fisiologia humana. Há relatos de quem faz experimentos com isso de que a pessoa vomita dentro da máquina. Então, na ressonância magnética a gente trabalha no limite do desconforto, para ter a melhor resolução”.
Além do magnetismo
Mas os fabricantes e revendedores destes colchões não se limitam ao magnetismo na hora de propagandear os efeitos e supostos benefícios de seus produtos. Muitas vezes, além dos ímãs, incluem pastilhas de materiais que, alegam, emitem radiação infravermelha e íons (átomos eletricamente carregados), por exemplo, que teriam propriedades curativas ou trariam bem-estar aos seus usuários. Tudo em geral fruto da visão de um “empresário japonês” ou das pesquisas, décadas atrás, de um cientista “mundialmente famoso” deste país oriental, mas do qual não se acha um artigo publicado ou referenciado.
Segundo eles, as emissões de infravermelho das pastilhas colocadas nos colchões simulariam as dos raios solares, que criariam “uma onda energética desintoxicando as células e aumentando a imunidade do organismo”, além de “quebrar” moléculas de água “envelhecidas” em nossos organismos que seriam responsáveis pelo desenvolvimento de diversas doenças. Um dos fabricantes chega a afirmar que suas pastilhas são as únicas no mercado a emitir tanta radiação infravermelha que são capazes de “derreter gelo”. Fosse verdade, era mais provável que seus usuários saíssem de uma noite de sono cozidos, não curados.
“Eles pegam conceitos que são tecnicamente corretos do ponto de vista da física e começam a fazer uma extrapolação para escalas muito maiores, reivindicando efeitos e benefícios à saúde para os quais não existe nenhuma evidência”, critica Rocha. “São frases tão vagas que não chegam a estar erradas, mas ao mesmo tempo não fazem nenhum sentido, de forma que podem alegar efeitos até o infinito”.
Já os íons negativos supostamente emitidos por outras pastilhas nestes colchões ajudariam a “contrabalançar” moléculas com carga positiva que nossos corpos acumulariam devido aos “estresses da vida urbana”, o que também chamou a atenção de Rocha.
“Um sistema com carga elétrica, positiva ou negativa, normalmente é energicamente mais instável e, portanto, quer ficar neutro”, explica. “Então, um sistema que tem uma carga positiva gostaria de buscar cargas negativas para ficar neutro. É o que acontece na natureza em geral. Íons não gostam de existir. A natureza gosta de equilíbrio, então não há razão para que fiquemos ‘acumulando íons’ durante o dia. Além disso, é muito difícil pensar em um material estável que ‘escolha’ ficar emitindo íons, muito menos de forma selecionada, soltando apenas íons negativos”.
Mais recentemente, o marketing destes colchões passou a adotar o termo “quântico” em seu discurso sobre os benefícios dos produtos, incorporando assim outro termo “da moda” nas pseudociências em geral nos últimos tempos, lamenta Rocha.
“São palavras que o público em geral já ouviu da boca de um cientista”, conclui Rocha. “Eles pegam e usam dizendo que o ‘alguma coisa quântico’ vai te fazer bem, tentando convencer as pessoas num mau uso da linguagem científica. Isso que é perigoso”.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência