Recentemente, o mundo inteiro se deparou com uma série de terapias que, além de ineficazes, estavam embasadas em estudos malfeitos. Grupos negacionistas começaram a mencionar artigos científicos de qualidade duvidosa para instigar falsas polêmicas contestando fatos bem estabelecidos pela ciência, e fizeram com que políticas públicas fossem erguidas sobre absurdos que contrariam a razão.
Note, porém, que o advérbio "recentemente", inserido no parágrafo anterior, não precisaria estar ali. A descrição acima, feita de maneira genérica, aplica-se, por exemplo, a várias terapias que podem ser encontradas no SUS, no rol das práticas integrativas e complementares. O negacionismo institucionalizado existe há tempos, mas nunca presenciamos tanta comoção da mídia e sociedade em cima dessas "práticas holísticas" como vemos com a cloroquina.
A má definição da fronteira entre crenças pessoais, de foro íntimo, e o esoterismo presente nessas terapias faz com que alguns cientistas desenvolvam uma seletividade conveniente e evitem criticar a sua prática negacionista de estimação – a besteira (e o perigo) estão na crença do outro, apenas.
Não se trata aqui de estabelecer um critério de demarcação sobre o que é ou não ciência. Apesar de importante no contexto filosófico, a definição desse limite não é necessária para dizer que, se jogarmos um tijolo de concreto num lago, ele afundará. O que chamaremos de negacionismo aqui é a negação de fatos bem consolidados – dizer, por exemplo, "vou soltar um tijolo desta janela e ele sairá voando" seria algo a incluir nessa classificação.
A despeito de toda a mobilização da imprensa contra as notícias falsas e negacionismos envolvendo tratamentos para COVID-19, alguns veículos sérios insistem em manter, sabe-se lá por que, um espaço "negacionista chique". Isso acontece, por exemplo, com a seção F5 da Folha de S.Paulo. É possível encontrar no mesmo cabeçalho da Agência Lupa ("primeira agência de fact-checking do Brasil"), projeto apoiado pela Folha de S.Paulo, o link para o “F5”.
O clique nesse link transporta o leitor para um universo paralelo que fala de astrologia e dá receita para a produção de água solarizada. A implausibilidade de que planetas e estrelas consigam distinguir e interagir individualmente com cada ser terrestre já foi descrita de uma maneira bastante criteriosa no Livro da Astrologia, de Carlos Orsi [editor-chefe desta Revista Questão de Ciência]. Já a receita de "água solarizada" remete à ladainha renitente, e enganosa, de que a água conservaria algum tipo de memória.
Colocar a garrafa em cima da televisão, gritar palavras de "amor e gratidão" para o filtro de água, chacoalhar e diluir um composto até que não sobre nada na mistura ou acender uma vela ao lado do vasilhame são apenas variações do mesmo tema: atribuir alguma qualidade esotérica curativa à água, com base em preceitos cuja compatibilidade com os fatos é comparável ao terraplanismo.
A luz proveniente do Sol é uma radiação eletromagnética que, após passar pela atmosfera terrestre, exibe um espectro de frequências que varia desde a região do ultravioleta até o infravermelho. A radiação eletromagnética pode ser classificada de acordo com a sua frequência (quantas vezes a onda oscila em um intervalo de tempo) – em ordem crescente de frequência, temos as ondas de rádio AM e FM, micro-ondas, infravermelho, luz visível, ultravioleta, raios X e raios gama.
A luz visível concentra-se em uma estreita faixa de frequência entre o infravermelho e o ultravioleta. Como consequência disso, a maioria das frequências de radiação é invisível aos nossos olhos. A partir do ultravioleta (UV), a onda possui uma frequência que permite que ela "arranque" elétrons de átomos e moléculas, transformando-os em íons – esse é o motivo de denominá-la “radiação ionizante”.
A interação da radiação ionizante pode causar danos no DNA, resultando no aparecimento de um câncer. A radiação não ionizante, embora não cause alteração nos genes, também pode provocar algum dano dependendo, por exemplo, da sua potência e do tempo de exposição da pele. É só lembrar que algumas cirurgias utilizam lasers nos procedimentos e que uma grande exposição ao Sol, mesmo com filtros barrando a radiação UV, pode causar sérias queimaduras. Voltemos à água solarizada.
O texto da Folha de S.Paulo traz uma narrativa de que a água, em contato com a luz do Sol, poderia conservar propriedades que ajudariam a "afastar a depressão" e "amenizar o desânimo". O artigo ainda descreve um procedimento para embrulhar a garrafa de água em plástico colorido, pois cada cor seria responsável por curar diferentes mazelas. A autora do texto ainda aponta um prazo de validade para as águas energizadas. A verdade é que todo esse procedimento de exposição da água ao Sol não fará nada muito além de aquecer a água – e só isso.
Todo negacionismo envolvido em procedimentos aquático-curativos (homeopatia, água solarizada, garrafa em cima de uma televisão ou ao lado de uma vela etc.) está concentrado na crença de que a água conserva alguma memória – acreditar ou propagar essa ideia cabe no mesmo balaio de cloroquiners e terraplanistas. Já abordei o tema da amnésia aquática em mais de um artigo nesta revista ("Livro sobre 'memória da água' não chega nem a estar errado"; "Água não tem memória e gelo não se emociona") e também na Folha de S.Paulo ("Homeopatia no SUS? Melhor não").
É compreensível que pessoas se interessem por amenidades, fofocas envolvendo celebridades ou análises de reality shows, e que a Folha de S.Paulo mantenha uma seção que contemple esses assuntos. O que não é compreensível é que o mesmo jornal que veicula palavras de ordem contra o negacionismo dê espaço para conteúdos que abertamente desinformam a sociedade. Talvez fosse conveniente aproveitar este momento em que boa parte da mídia se empenha para propagar notícias sérias, e abrir uma seção "crendices" que abrigasse todo esse conteúdo negacionista que o jornal ainda insiste em publicar.
Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência