Desde o início da pandemia temos observado a circulação de notícias, opiniões e mensagens de WhatsApp que tentam, de alguma forma, estimar o impacto da pandemia no Brasil e no mundo. Muitas delas visam minimizar, por meio de cálculos, estimativas e comparações com outros países, o que ocorre por aqui. Como se o Brasil não estivesse “tão ruim” quanto os veículos sérios de imprensa indicam, ou como se houvesse um exagero em relação à COVID-19, comparada a outras doenças.
Apesar de sabermos que, na verdade, o registro de casos de COVID-19 sofre com subnotificação, não foram poucas as fake news incitando a população a acreditar em uma “supernotificação”. Mensagens como: “Hospitais estão recebendo uma quantia X do governo para notificar COVID-19 como a causa de óbito por outras doenças” circularam e ainda circulam em aplicativos de mensagem, influenciando muita gente. Esse tipo de desinformação vem acompanhada de insinuações como “parece que agora só morre gente de Covid”, “outras doenças matam muito mais”, todos recados que tendem a endossar o pensamento enganoso de que “é só uma gripezinha”, propagado em rede nacional pelo próprio presidente da República.
Tudo isso quando também não vem à baila o famigerado “placar da vida”. Que destaca de maneira triunfal os quase 17 milhões de brasileiros “recuperados”, comparado a outros países cujo número de sobreviventes (e também infectados) é menor. Porém, nessa comparação pueril, ignora-se deliberadamente que, para haver 17 milhões de recuperados, foi necessário permitir a tragédia de que mais de 18 milhões de brasileiros se infectassem, dos quais mais de meio milhão já morreu.
O viés
O número absoluto de mortos, independentemente de qualquer cálculo, correção ou de comparações com outros países, já configura uma tragédia humanitária por si só e, por isso, merece toda nossa atenção e empatia. Mas, se ainda assim existe esse interesse ou necessidade em se comparar dados epidemiológicos, temos que tomar cuidado para evitar comparações injustas ou indevidas.
É claro que o número absoluto de mortes por COVID-19 é afetado pelo tamanho da população. E por esse motivo é que boa parte das comparações acaba se valendo da taxa de mortalidade. Esse cálculo se dá pela fórmula (em um mesmo período de tempo):
Essa é uma estimativa que pode ajudar a entender nosso cenário, mas sofre diversas interferências, principalmente na comparação com outros países (que têm características tão distintas entre si). E é justamente aqui, pautadas nessa fragilidade, que as fake news encontram terreno fértil. Se temos fortes indícios de subnotificação dos casos de COVID-19, isso pode fazer com que nossos números pareçam melhores do que os de países mais competentes na detecção de casos. Por outro lado, para aqueles que argumentam que há uma conspiração de “supernotificação”, existiria um exagero nos números de óbitos e na taxa de mortalidade pelo vírus.
O excesso
Em tempos de grande polarização, como resolver essa discussão de forma honesta, sem o risco de cair em um falso debate no qual haja “diferentes verdades” sendo confrontadas?
Temos que começar comparando o Brasil pandêmico com o Brasil anterior à pandemia. E para isso, precisamos nos familiarizar com o conceito de “excesso de mortalidade”. E o que é isso? Trata-se da variação no número de mortes por causas naturais (incluindo doenças) durante a pandemia, comparada à média do número de mortes dos 5 anos que a antecederam. A ideia deste cálculo é a de que o número de mortes tende a permanecer relativamente constante ao longo dos anos, com pequenas variações. Essa média dos últimos anos geraria um “Valor Esperado”, que pode ser expresso na forma de um intervalo entre um valor mínimo e um valor máximo. Ou seja, se estamos em junho de 2021, vamos comparar a quantidade de mortes por causas naturais do Brasil, neste período, com a média de morte dos meses de junho de 2015 a 2019 (essa média é o nosso valor esperado). O tanto de mortes que ficar acima do esperado é considerado excesso de mortalidade.
Em termos matemáticos, vamos nos deparar com a seguinte fórmula:
Pega-se, portanto, o total de mortes de um período de interesse da pandemia no Brasil (2020/2021), subtraindo desse valor a média do total de mortes do mesmo período de 2015 a 2019. Esse é o excesso de mortalidade absoluto (valor do numerador).
Para encontrar o valor relativo, ou seja, a porcentagem do Excesso de Mortalidade, divide-se esse valor pela média de mortes de 2015 a 2019 (denominador).
Se você não é um amante de números e fórmulas, podemos visualizar melhor isso no gráfico gerado pelo painel de análise do excesso de mortalidade por causas naturais no Brasil, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS):
Interpretando o gráfico, a faixa cinza se refere ao valor esperado de mortes para um determinado período. É o intervalo entre o mínimo o máximo de óbitos de 2015 a 2019.
A linha azul são as mortes em 2020, enquanto a linha roxa mostra as mortes em 2021, até agora. Isso representado em semanas ao longo do ano (cada ano tem 53 semanas). Note que, entre as semanas 12 e 16, a linha azul, que corresponde a 2020, começa a seguir em direção ao limite superior dos valores esperados. Justamente em março, quando foi declarado o início da pandemia por aqui. Em abril começa a ocorrer o excesso de mortes, no qual essa linha permanece praticamente todo o tempo acima dos valores esperados.
Olhando para a linha roxa, o impacto é ainda maior. Ela se destaca totalmente dos valores esperados na pré-pandemia, permanecendo muito acima, inclusive, do excesso de mortalidade de 2020.
É importante reforçar que esta técnica não é baseada nas notificações de causas de morte, ou seja, ela simplesmente mostra todo excedente de mortes durante a pandemia. Não importa se houve subnotificação ou supernotificação: é uma contagem de túmulos, que mostra que, em 2020 e em 2021, um número excessivo de brasileiros perdeu a vida, na comparação com o que seria considerado “normal” de acordo com a história dos cinco anos anteriores.
E em que 2020 e 2021 diferem dos cinco anos anteriores, em termos de causas de morte no Brasil? Não caiu meteoro, não entramos em guerra. A única diferença relevante é a presença da COVID-19. Este método é imune ao viés da super ou subnotificação, encerrando esse suposto “debate”.
Os dados mostram que não é possível usar atenuantes ao se falar da pandemia. Em junho de 2020, tivemos 33% de excesso de mortalidade. Em fevereiro de 2021, 38%. Observe que, em março deste ano, o pico é assustador em relação ao esperado.
Se considerarmos o período de janeiro a abril de 2021, o excesso de mortalidade é de 64% (211.847 mortes a mais do que o esperado para o mesmo período), com um pico de mais de 80%. Não é possível haver um aumento de mortalidade desses sem uma causa importante. Podemos colocar nessa conta, portanto, as mortes diretas por COVID-19, mas também as causadas por outras doenças que não tiveram atendimento adequado ou suficiente, devido à sobrecarga do sistema de saúde, ou pelo fato de as pessoas procurarem menos os serviços de saúde por outros motivos neste período. São impactos indiretos, mas relacionados também à pandemia e sua gestão.
Em resumo, trata-se de uma medida global do efeito da pandemia em nosso país.
A comparação justa
Por isso, não há sustentação para o argumento de que “estão exagerando os dados de óbito por Covid”. A não ser que uma pessoa acredite ser natural um aumento substancial de mortalidade em um país “de uma hora pra outra” sem uma causa definida, simplesmente precisamos encerrar esse delírio negacionista. Os dados estão aí. Apenas precisamos trabalhar com eles de modo a eliminar vieses.
Por fim, se houver necessidade em traçar comparações entre países (para entender a realidade e não em uma tentativa de minimizar o que ocorre por aqui), experimente comparar o excesso de mortalidade relativo do Brasil com o excesso de mortalidade relativo de outras nações. É uma medida mais honesta para entender de modo mais geral o efeito da pandemia.
Quem fizer isso perceberá que o Brasil é um dos países com maior excesso de mortalidade, e que estamos vivendo momentos difíceis. Para acompanhar semanalmente o excesso de mortalidade, além do site do CONASS citado anteriormente neste artigo, o site Our World in Data, da Universidade de Oxford, possui uma aba sobre este assunto (Excess mortality during the Coronavirus pandemic (COVID-19) - Statistics and Research - Our World in Data) na qual é possível visualizar este dado ao redor do mundo.
André Bacchi é professor de Farmacologia do Curso de Medicina da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico por meio dos podcasts Synapsando, Scicast, Spin de Notícias e Scikids