No primeiro semestre de 2020, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu um precedente importante para o julgamento de casos que envolvam o controle de políticas públicas baseadas em evidências no contexto da pandemia da COVID-19. A corte decidiu que o agente público poderá ser responsabilizado por erro grosseiro quando suas ações ou omissões contrariarem normas e critérios científicos e técnicos, estabelecidos por entidades reconhecidas nacional ou internacionalmente. Nas palavras do relator, ministro Luís Roberto Barroso, “consensos médicos e científicos são decisivos”.
Um ano depois, podemos perceber que o padrão de controle que o Supremo estabeleceu neste precedente pode ter sido um tiro pela culatra. O consenso técnico ou científico de entidade reconhecida pode vir a respaldar as ações e omissões de gestores negacionistas da ciência, como é o caso da secretária de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro. Em seu depoimento recente à CPI da Pandemia, a secretária sustentou que existem evidências científicas para o uso da cloroquina e hidroxicloroquina, e a sua posição pode ser corroborada pela principal e mais reconhecida entidade médica do país.
O Conselho Federal de Medicina (CFM), órgão responsável pela fiscalização e normatização das atividades médicas no Brasil, ainda mantém orientação estabelecida no Parecer n. 04/2020, que indicou situações nas quais se permite a prescrição da cloroquina e hidroxicloroquina. Apesar dos avanços nas pesquisas científicas desde então, que comprovam a ineficácia de tais substâncias para o tratamento da COVID-19, o CFM mantém o seu posicionamento. Para a entidade, a autonomia do médico deve ser preservada. Esta postura tem sido criticada por outras entidades da área médica, como é o caso da Associação Médica Brasileira (AMB) e da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
O entendimento do CFM foi explicitado em matéria publicada na Folha de S. Paulo. Mauro Luiz de Britto Ribeiro, presidente da entidade, acusou sociedades médicas de áreas especializadas, que se pronunciaram contra o referido tratamento, de politizarem a ciência e atacarem a autonomia do médico. O presidente do CFM também sugeriu que cientistas que não possuem formação em medicina, como biólogos e epidemiologistas, seriam incompetentes para se pronunciaram sobre o tema. E acrescentou: “Existem na literatura médica dezenas de trabalhos científicos mostrando benefício com o tratamento precoce com as drogas citadas acima”.
O consenso emitido por entidade técnica ou científica reconhecida costuma ser um bom indicador de expertise para pessoas cientificamente leigas, como é geralmente o caso dos gestores de políticas públicas e de seus controladores – os juízes. Mas o que justifica a deferência de um tomador de decisão aos critérios e normas estabelecidos por entidade técnica ou científica não é a sua mera existência, mas sim as condições de sua obtenção.
O acordo deve ter sido arduamente conquistado, por meio de debates com ampla participação. Além disso, deve estar fundamentado em elementos adicionais que o corroborem – como evidências e estudos publicados em periódicos de qualidade comprovada. A divergência entre entidades da mesma área do conhecimento também deveria acender a luz vermelha. Consensos alcançados por entidades técnicas e científicas podem ser genuínos ou espúrios; e julgadores cientificamente leigos não podem ficar apenas contando votos para um lado e para o outro.
Melhor seria se o Supremo tivesse estipulado um padrão de controle que envolvesse a análise de um conjunto de indicadores científicos, no estilo do chamado Teste Daubert, estabelecido em um precedente de 1993 da Suprema Corte dos Estados Unidos. No julgamento do caso Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals, a Suprema Corte entendeu que os juízes devem exercer a função de “guardas dos portões” do Poder Judiciário contra a entrada de toda forma de junk science. Para isso, os juízes poderiam se valer de um ou mais dos seguintes critérios: 1) examinar se a teoria ou técnica que embasa a opinião do expert foi testada; 2) se ela foi publicada em período científico com processo de revisão por pares; 3) qual a sua margem de erro conhecida ou potencial; e 4) se ela encontra aceitação geral na comunidade científica relevante.
Diante de uma eventual ação no Supremo que venha a questionar a prescrição de cloroquina e hidroxicloroquina pelo aplicativo TrateCov – lançado (e depois retirado do ar) pelo Ministério da Saúde –, a busca por consensos de entidades médicas reconhecidas pode complicar mais do que ajudar. Em vez disso, os ministros poderiam buscar outros indicadores científicos, na esteira do Teste Daubert.
Por exemplo, para avaliar a fiabilidade do estudo AndroCov – que, segundo o depoimento da secretária Mayra Pinheiro, fundamentou a criação do aplicativo –, os ministros poderiam investigar se ele foi publicado em revista científica qualificada. Em matéria recente da Folha de S. Paulo, os pesquisadores Sabine Righetti e Estevão Gamba revelaram que tal estudo foi publicado na revista The Cureus Journal of Medical Science, um periódico científico de questionável fiabilidade. A política de revisão expedita dos manuscritos submetidos tem sido questionada pela comunidade acadêmica internacional (aqui e aqui). De fato, constata-se que o artigo que apresentou o referido estudo teve o seu processo de revisão por pares iniciado e encerrado no mesmo dia.
Em referência à sua aceitação na comunidade acadêmica nacional, o periódico está classificado pelos avaliadores da área de Medicina I no estrato mais baixo do sistema Qualis Periódicos – o sistema da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) que avalia a produção dos programas de pós-graduação no país. Ou seja, qualquer discente ou docente vinculado a programa de mestrado ou doutorado do país que venha a publicar artigo neste periódico receberá pontuação zero, não sendo contabilizada esta produção para fins de avaliação do seu programa.
Uma análise um pouco mais detida do artigo também causa preocupação. Tecnicamente, o AndroCov é um escore clínico para o diagnóstico da COVID-19 elaborado a partir de um estudo realizado majoritariamente por pesquisadores nacionais, vinculados a institutos privados e universidades. O objetivo do estudo é permitir o tratamento da COVID-19 em estágio inicial, “quando drogas com potencial atividade antiviral poderiam demonstrar eficácia e evitar a progressão para estágios mais severos”. As referências que os autores oferecem para tais drogas com potencial antiviral – basicamente, nitazoxanide, hidroxicloroquina e ivermectina – são manuscritos relacionados aos ensaios por eles realizados e publicados em plataformas de preprint, que divulgam estudos não revisados por pares.
A crítica que se faz ao precedente do Supremo é a suposição de que o teste para saber se a política pública está baseada em evidências científicas possa ser pensado de forma atomística. O consenso de entidade técnica ou científica pode não ser idôneo para isoladamente cumprir esta função. É preciso ir além: buscar saber como o consenso foi efetivamente obtido; verificar se outras entidades reconhecidas possuem a mesma opinião; verificar se a posição está fundamentada em estudos publicados em revistas qualificadas e reconhecidas na comunidade científica, que contam com adequado processo de revisão por pares; investigar se há conflito de interesses; etc.
Além disso, não se pode esquecer que o Supremo dispõe de mecanismos institucionais para consultar experts no assunto – como é o caso das audiências públicas. Estudos sugerem que o processo de testemunhar debates entre especialistas é útil para que tomadores de decisão leigos possam determinar quem possui “superioridade dialética”. Logo, é fundamental que tais audiências possibilitem o efetivo debate entre os experts, como parece ser a atual tendência no Supremo.
Certamente, o Supremo avançou na matéria quando considerou que a não-observância de normas e critérios estabelecidos por entidade reconhecida pode levar à responsabilização dos agentes públicos por erro grosseiro. Contudo, a Corte poderia ter avançado na estipulação de um conjunto de indicadores cuja não-satisfação poderia justificar o controle científico das políticas públicas por parte do Poder Judiciário.
Rachel Herdy é Professora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e lidera o Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT). Artigo publicado originalmente no site Jota. Reproduzido com permissão da autora.