O abismo socioeconômico do Brasil também se mostra profundo na pandemia de COVID-19. Embora o coronavírus não escolha vítimas, infectando pobres e ricos da mesma forma, o risco de perder a vida para a doença parece ser maior nas camadas mais carentes da sociedade, revela análise da mortalidade por COVID-19 na cidade de São Paulo da urbanista e doutora em saúde pública Suzana Pasternak, publicada em nota técnica no site do Instituto Questão de Ciência (IQC).
No estudo, Suzana, também professora titular aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP), cruzou dados de óbitos na pandemia nos quase cem distritos da capital paulista, em 2020, com informações sobre a estrutura etária da população e distribuição espacial no município, indicando uma mortalidade maior em regiões de renda média mais baixa, em especial na periferia, ainda que, de modo geral, tenham menor proporção moradores de idosos, grupo de maior risco de vida pela doença.
"A gente vê que distritos de renda mais alta tiveram em geral uma mortalidade menor por COVID-19 mesmo com muitos velhos”, resume. “Nas áreas ricas, mal ou bem quem tem comorbidades é tratado. Já nas regiões periféricas, os idosos muitas vezes nem sabem que têm diabetes, hipertensão, asma ou outras condições que elevam o risco de complicações. Assim, além de um atendimento em saúde pior ou mais precário, temos muitas comorbidades não tratadas. Se ser velho já é um sério fator de risco nesta pandemia, ser velho na periferia é um risco maior ainda”.
São Paulo em ‘anéis’
Para compor o estudo, Suzana primeiro tomou como base metodologia proposta por ela mesma nos anos 1970 que dividiu a cidade em cinco “anéis” – Central, Interior, Intermediário, Externo e Periférico – a partir do centro histórico, que tinha como parâmetro de corte justamente o porcentual de habitantes jovens (9 a 15 anos) de então, indo do menor ao maior. Essa divisão em anéis, unida a dados da Pesquisa Origem Destino de 2017, também foi usada como aproximação da prosperidade de cada região, visto que a expansão populacional e imobiliária de São Paulo seguiu padrão espacial semelhante, com a população de baixa renda sendo “empurrada” para a periferia, ou concentrando-se em áreas decadentes do centro antigo.
Assim, de modo geral (mas não exclusivo), quanto mais externo o distrito na estrutura dos anéis, mais jovem a população, e menor a renda. Com exceção notável do Anel Central, onde processo de revitalização nos últimos anos – com lançamentos imobiliários atraindo um público de jovens casais, solteiros, profissionais autônomos e estudantes interessado em morar perto do trabalho e opções de lazer, cultura e transportes – rejuvenesceu partes da região.
Desta forma, a depender apenas da estrutura etária, seria de se esperar uma mortalidade maior pela COVID-19 nos anéis Interior e Intermediário, ambos com maiores proporções da população com mais de 60 anos, aponta a nota técnica. Mas não foi isso que aconteceu, com a maior taxa, de 217,29 óbitos por cem mil habitantes, sendo registrada no anel exterior, seguida de 211,24 no intermediário e 198,4 no interior.
Os dados da evolução da pandemia no ano passado também deixam clara a marcha da doença rumo à periferia, com o vírus se espalhando no movimento pendular de trabalhadores para as regiões centrais da cidade. Vinda do exterior, a COVID-19 fez suas primeiras vítimas entre membros abastados da sociedade que viajaram para países afetados – o primeiro caso no Brasil foi confirmado em 26 de fevereiro de 2020, um homem de 61 anos que voltara da Itália e deu entrada no pronto-socorro do Hospital Israelita Albert Einstein, um dos melhores e mais caros do país. Sugestivo ainda que a primeira morte, uma paciente de 57 anos em 12 de março de 2020, no entanto, se deu no Hospital Municipal Doutor Carmino Cariccio, na já distante região do Tatuapé (Zona Leste, na fronteira do anel intermediário), e só foi descoberta mais de três meses depois.
"É uma hipótese que não podemos afirmar, mas os dados sugerem o transporte público, em especial ônibus e metrô, como um importante fator de contaminação”, comenta Suzana. “São pessoas que têm que trabalhar para sobreviver, não podem ficar isolados, e ao saírem se contaminam”.
Análise refinada
Diante destes resultados, a pesquisadora refinou a análise para cada um dos 96 distritos do município, revelando novos sinais de desigualdade no risco de morrer por COVID-19 em São Paulo, considerando fatores socioeconômicos. De acordo com este levantamento, dos dez distritos com maior porcentual de idosos, apenas um, Campo Belo – onde as pessoas com mais de 60 anos representam 24,56% da população – também figura na lista de maior mortalidade geral por COVID-19 em 2020, com 261,99 mortes por 100 mil habitantes. Todos os distritos desta lista estão localizados entre os anéis Interior e Intermediário da capital, com exceção de Consolação, localizado no Anel Central.
Por outro lado, dos dez distritos paulistanos com menor proporção de idosos na população – todos localizados no Anel Periférico –, apenas seis também figuram na lista dos com menor mortalidade geral pela doença na capital paulista no ano passado. Ainda assim, o percentual mais baixo de idosos parece ter ajudado a conter a mortalidade geral por COVID-19 na região, que encerrou 2020 abaixo das registradas nos demais anéis. Situação, porém, que pode mudar com o recente surgimento e disseminação de variantes do vírus.
"Até o fim de 2020 a periferia mais afastada evitou um cenário pior, talvez devido à menor proporção de idosos na população, mas este cenário pode mudar diante dos relatos de aumento da mortalidade da COVID-19 entre a população relativamente mais jovem, abaixo dos 60 anos”, considera Suzana.
Não que o quadro para a população idosa da periferia também seja melhor. Em um terceiro ponto do estudo, Suzana analisou a mortalidade específica por idade nos distritos da capital e verificou que ela foi muito maior entre os mais velhos que moram em áreas afastadas. É o caso, por exemplo, de São Miguel Paulista, distrito da periferia no Nordeste da capital. Lá, a mortalidade específica por COVID-19 na população com mais de 60 anos ficou em 1.297,31 por 100 mil habitantes, mais do dobro das 566,43 por 100 mil do distrito de Jardim Paulista, no Centro Expandido. Mas também chama atenção a presença dos distritos centrais do Brás e Belém, locais de grande concentração de cortiços e outras habitações precárias, na lista dos com maior mortalidade específica de idosos na capital
“A mortalidade total às vezes engana, mas é brutal a diferença na mortalidade específica por faixa etária na cidade”, avalia. “E o Centro pobre, refletindo a periferia pobre, é mais uma amostra que a renda é variável importante para o risco de morte na pandemia por todas suas consequências, como fome, desnutrição, estado de saúde, moradia inadequada etc”.
Exceção notável
Entre tantos números desfavoráveis à periferia, porém, também chama atenção o caso do distrito de Vila Andrade. Com a segunda menor taxa de mortalidade geral da capital, a região tem praticamente metade de sua população concentrada na favela de Paraisópolis, uma das maiores da cidade, onde iniciativas locais parecem ter ajudado a conter a pandemia.
"Paraisópolis de certa forma fez o que os governos deveriam ter feito: identificação e isolamento rápido de casos para controlar a disseminação do vírus”, lembra Suzana. “Uma rede de agentes comunitários avisa quando tem alguém doente e a pessoa é isolada antes que espalhe a doença por aí. É uma estratégia que pode ser feita sem grande custo e mesmo sem testes, num sucesso que se refletiu na baixa mortalidade da região. E um sinal de que pobreza não é sentença, e a COVID-19 pode ser controlada se forem adotadas iniciativas eficazes de contenção”.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência