O viés de estupidez

Artigo
29 mar 2021
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A pandemia da COVID-19 está correndo solta e, rigorosamente falando, ninguém em sã consciência reúne condições de adivinhar como tudo isso vai acabar. Entretanto, autores arrojados já se propõem a fazer análises e projeções. A obra recém-publicada Ten Lessons for a Post-Pandemic World de Fareed Zakaria, jornalista da CNN e escritor, analisa uma série de aprendizados relevantes que, aos olhos do autor, emergirão ao final desta catástrofe. Sem querer dar spoilers, alguns deles são: (i) Markets are not enough; (ii) People should listen to the experts – and experts should listen to the people, e (iii) Life is digital.

Para Zakaria, uma das coisas mais importantes que a pandemia trouxe foi aprimorar o modo como universidades, cientistas e empresas farmacêuticas desenvolvem vacinas. De fato, conseguir criar agentes imunizantes eficazes em menos de 12 meses é proeza histórica, de dar orgulho a toda Humanidade ou, pelo menos, a parte dela...

Após tomar conhecimento da obra e das ideias de Fareed Zakaria, revirei meu armário em busca de antiga carapuça otimista, raramente utilizada, e aproveitei a reclusão imposta pela fase emergencial do plano São Paulo para vasculhar a mente em busca de contribuição genuinamente nacional, germinada e cultivada em solo pátrio nesses tempos de COVID-19, que possa ficar perpetuada para as gerações futuras. E não é que acabei encontrando?

Peço permissão aos metodologistas, epidemiologistas, estatísticos, filósofos e acadêmicos em geral, para, modestamente, descrever o novo, mas já consagrado, Viés de Estupidez.      

Profissionais atuantes no campo das ciências, filosofia e psicologia, entre outros, frequentemente se deparam com a questão dos vieses ou, na literatura inglesa, bias.  Para o Dicionário Michaelis, viés pode ser definido como “percurso ou direção oblíqua” [1]. Essa definição básica serve para começarmos a situar o problema. Agora, vamos aprofundar um pouco mais a questão, nos socorrendo da Wikipedia: “Viés ou tendência é um peso desproporcional a favor ou contra uma coisa, pessoa ou grupo comparado a outro, geralmente de uma maneira considerada injusta... Em ciência e engenharia, um viés é um erro sistemático” [2].

Vamos continuar a navegar por essa questão dos vieses, mas não de maneira desmedida. Por isso, iremos apenas permanecer no site da utilíssima Wikipedia. “Um viés cognitivo (ou tendência cognitiva) é um padrão de distorção de julgamento que ocorre em situações particulares, levando à distorção perceptual, julgamento pouco acurado, interpretação ilógica, ou o que é amplamente chamado de irracionalidade” [3].

Para um aluno, como eu, dos anos 1970 do Instituto de Educação Estadual Júlio Prestes de Albuquerque, de Sorocaba, viés cognitivo é simplesmente “pensamento torto”. E saiba leitor que, mais uma vez, a conveniente Wikipedia, sob o título Lista de vieses cognitivos, enumera nada menos do que 37 tipos diferentes de erros [4].

Mas o viés de estupidez ainda não consta daquela lista. Acho que pode tratar-se de alguma falha de observação pois, afinal, esse tipo de coisa já existe há tempos e, ao que tudo indica, embora seja característica bem tupiniquim, não é exclusiva do Brasil, ou seja, não é um viés verde-amarelo raiz. Ou, possivelmente, seja apenas algo muito raro em outras paradas, mas, com certeza, não é por aqui.

Vou definir viés de estupidez como a “ausência sistemática de discernimento, devido à ignorância extrema, agravada pelo não reconhecimento das próprias limitações, e teimosia cega”.

O portador do viés de estupidez pode ser reconhecido por uma série de manifestações exteriorizadas em declarações, entrevistas, eventualmente em textos publicados nos meios de comunicação e, principalmente, por postagens em redes sociais. Os conceitos mais frequentemente ventilados são:

 

O vírus SARS-Cov-2 foi desenvolvido pelos chineses para dominar o mundo.

A COVID-19 não passa de uma gripezinha.

A OMS está cheia de vermelhos.

Tenho direito a não usar máscaras.

Tenho direito a não tomar vacinas.

Se eu tomar vacina, posso virar um réptil de cor esverdeada.

Aglomerações e festas não são problemas, principalmente se eu estiver bebendo álcool.

Esse vírus nunca vai me pegar.

Ninguém vai dizer o que eu devo fazer.

Se tiver sintomas de COVID-19 vou fazer “tratamento precoce” com hidroxicloroquina, anitta, ivermectina, azitromicina e vitamina D, que são medicamentos eficazes e isentos de riscos.

Minha fonte de notícias é o whatsapp.

A grande mídia conspira contra o mito.

Quem pode, manda, quem é esperto, obedece.

A estrutura do sistema de saúde está suportando bem.

Não venham me falar em lockdown.

Acreditem somente no que eu digo a partir de agora.

Etc, etc. etc ...

As manifestações do viés de estupidez podem aparecer isoladas ou em conjunto, caracterizando os assim chamados fenótipos de estupidez, assunto muito complexo, que, infelizmente, não temos condições de abordar no presente texto.

É muito importante que os cidadãos identifiquem a presença do viés de estupidez, para poderem guiar-se melhor nesta tormenta, ainda que, como disse recentemente um filósofo popular “quem não estiver confuso, não está bem informado”. O aspecto mais importante a ser descoberto é como combater esse tipo de viés, mas, confesso, não sei quais são as respostas corretas. Ser honesto e falar a verdade sempre ajudam, mas são comportamentos muito perigosos, tanto hoje como no passado. 

Por enquanto, o melhor parece simplesmente seguir as medidas profiláticas tradicionais: manter isolamento social de políticos populistas, aproveitadores e mentirosos, bem como votar melhor nas próximas eleições. Esse último feito certamente é tremendo desafio, maior do que vacinar toda população contra a COVID-19 em tempo hábil.

Para concluir, desejo parabenizar e me solidarizar com os pesquisadores sérios do Brasil, que estão trabalhando arduamente em busca de soluções para os problemas desesperadores que vivemos. Infelizmente, a maior contribuição brasileira em tempos de pandemia, reconhecida atualmente pela comunidade internacional, é o viés de estupidez. Quem disse que nós brasileiros não podemos contribuir com o progresso da Humanidade?

José Baddini-Martinez é professor adjunto de Pneumologia da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) e professor associado aposentado da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP)

 

REFERÊNCIAS

  1. https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/vies/ Acessado em 18/03/2021.
  2. https://pt.wikipedia.org/wiki/Vi%C3%A9s#:~:text=Em%20ci%C3%AAncia%20e%20engenharia%2C%20um,fornece%20resultados%20precisos%20em%20m%C3%A9dia.                         Acessado em 18/03/2021.
  3. https://pt.wikipedia.org/wiki/Vi%C3%A9s_cognitivo. Acessado em 18/03/2021.
  4. https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_vieses_cognitivos#:~:text=Os%20vieses%20t%C3%AAm%20uma%20variedade,distorcidas%20por%20cren%C3%A7as%20e%20desejos. Acessado em 18/03/2021.

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