Enquanto a COVID-19 segue descontrolada no Brasil, com o número de mortes diárias se aproximando da marca de 3 mil, o governo federal, liderado pelo presidente Jair Bolsonaro, continua apostando em saídas milagrosas no lugar de soluções reais, como a vacinação em massa, para a pandemia. A mais nova ilusão apregoada é um spray nasal em desenvolvimento em Israel supostamente capaz de curar casos moderados a graves da doença em poucos dias, alvo de recente e polêmica visita de delegação liderada pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ao país do Oriente Médio.
Denominada EXO-CD24, a molécula que integra o spray nasal israelense há anos vinha sendo pesquisada para o tratamento de câncer de ovário pelo seu criador, Nadir Arber, professor e diretor do Centro Integrado para Prevenção do Câncer do Centro Médico Sourasky/Hospital Ichilov, em Tel Aviv. Com a eclosão da pandemia de COVID-19, no entanto, ele e sua equipe decidiram investigar o potencial do medicamento no combate à doença.
O remédio, do tipo biológico, é composto por exossomas, espécie de vesículas usadas por células para se comunicarem com outras – daí o “EXO” em seu nome - preenchidas por uma proteína chamada CD24, envolvida em numerosos processos celulares e inflamatórios e, portanto, com função imunomoduladora. A ideia é controlar as chamadas tempestades de citocinas, reação descontrolada do organismo à infecção pelo SARS-CoV-2, coronavírus que causa a COVID-19, e um dos principais fatores para seu agravamento.
No início de fevereiro, Arber e equipe anunciaram sucesso em um ensaio clínico com um spray nasal de EXO-CD24 no combate à COVID-19. Os testes de fase 1, iniciados em setembro do ano passado, tinham como objetivo primário verificar a segurança no uso do medicamento. Segundo os pesquisadores, todos 30 pacientes diagnosticados com formas moderadas ou mais graves da doença tratados com o spray se recuperaram, 29 deles apresentando melhora num período de apenas três a cinco dias.
"O preparado é inalado uma vez por dia por alguns minutos, durante cinco dias”, disse Arber ao jornal “Times of Israel” então. “A preparação é direcionada direto para o coração da tempestade – os pulmões –, então, diferentemente de outras formulações, que contêm seletivamente uma certa citocina, ou agem amplamente, mas causam muitos efeitos colaterais severos, o EXO-CD24 é administrado localmente, funciona extensivamente e não tem efeitos colaterais”.
Mais de um mês depois do anúncio, no entanto, Arber e equipe ainda não relataram detalhes do experimento em um artigo científico, nem publicaram seus resultados. De acordo com descrição do ensaio clínico registrada no repositório americano Clinicaltrials.gov, a intenção inicial era tratar 35 pacientes entre 18 e 85 anos com diferentes dosagens de exossomas, sem grupo de controle, tendo como desfecho primário observar a ocorrência de efeitos adversos num período de 35 dias, inclusive efeitos que obrigassem o encerramento do estudo.
Apesar do estágio incipiente da pesquisa, do número reduzido de tratados e da falta de informações, porém, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, logo comemorou a descoberta do que classificou como “droga milagrosa” contra a COVID-19, no que foi rapidamente seguido por Bolsonaro. Dias depois, o presidente brasileiro informava já ter conversado com Netanyahu sobre a participação do país numa futura fase 3 dos ensaios clínicos do spray que, segundo ele, teria “eficácia próxima a 100%” no tratamento de casos graves da doença, além do encaminhamento de pedido para uso emergencial do medicamento à Anvisa.
Ignorando – ou fingindo ignorar – o longo caminho que o EXO-CD24 ainda tem que percorrer para se provar um tratamento eficiente e efetivo da COVID-19, e com pressa diante da explosão de casos e o então iminente – e, infelizmente, agora concreto – colapso dos sistemas de saúde do país, Bolsonaro também logo providenciou o envio de uma delegação para tratar do assunto em Israel. A comitiva que partiu (sem máscaras) de Brasília em 6 de março último, porém, tinha mais cara de “trem da alegria” do que um grupo técnico capaz de avaliar, com propriedade, a factibilidade de uso amplo do medicamento ainda nesta pandemia.
A bordo, além do ministro Ernesto Araújo, estavam, entre outros, Eduardo Bolsonaro, deputado federal e filho do presidente; o também deputado federal e amigo da família Hélio Lopes, o “Hélio Negão”; Fabio Wajngarten, recém-exonerado secretário especial de Comunicação Social (Secom) do Ministério das Comunicações, cargo que o tornava, efetivamente, o porta-voz do presidente; e Filipe Martins, assessor especial da Presidência para assuntos internacionais. Dos dez nomes, apenas dois com alguma qualificação na área de saúde: o oftalmologista Hélio Angotti Neto, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, ligado a Olavo de Carvalho, astrólogo e ideólogo do governo Bolsonaro; e o também médico Marcelo Marcos Morales, secretário de Politicas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
Não que eles tivessem muito o que fazer lá. Dispensados do isolamento obrigatório de 14 dias para brasileiros que entram em Israel, os integrantes da comitiva foram confinados ao hotel e só saíram para breves encontros políticos, num dos quais o ministro Araújo precisou ser alertado que deveria colocar a máscara. Eles também tiveram vetada visita ao Hospital Ichilov, onde foram realizados os testes do spray nasal, realizando todas as reuniões de trabalho no próprio hotel.
Ou seja, nada que não pudesse ser resolvido numa conferência online ou deixado para depois, numa “viagem inútil” que já havia levado o subprocurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) Lucas Rocha Furtado a contestar sua realização por configurar um “dispêndio injustificado de recursos públicos”.
E uma viagem também precipitada diante do que já havia admitido o próprio criador do spray nasal, Arber, ainda em meados de fevereiro – “Não se pode dizer que o tratamento é efetivo com base em apenas em 35 pacientes”, disse – e comentou Ronni Gamzu, presidente do Centro Médico Sourasky, logo após a reunião com a delegação brasileira. “É um desenvolvimento de uma nova droga, então é questão de meses ou até anos”, disse em entrevista à Folha de São Paulo, acrescentando que mesmo que ela se prove eficaz, “não é um milagre” no combate à pandemia, que deve focar na vacinação. “Sugiro não pegar um remédio, agora, e fazer dele a verdadeira solução, porque a verdadeira solução é a prevenção. Temos que continuar nossa luta científica para encontrar curas, mas não esqueça: prevenção, prevenção, prevenção. Vacinação, vacinação, vacinação”.
Isso não impediu, no entanto, que o governo Bolsonaro apresentasse a viagem como um sucesso absoluto. Em linha com mudança no discurso do presidente às vésperas do embarque da delegação, a assessoria interacional da Presidência, chefiada por Martins, divulgou nota classificando como “resultados bastante concretos” uma série de iniciativas vagas e hipotéticas, como a possível realização de testes de fase 2 e 3 do spray nasal no país e acordos de cooperação com o Instituto Weizmann de Ciência e Centro de Pesquisa do Hospital Hadassah, em temas relativos à pandemia.
Cloroquina, primeiro delírio
O spray nasal israelense, porém, é apenas o último exemplo de uma série de falsas saídas “milagrosas” da pandemia propagandeadas pelo governo federal, e que ajudaram a construir o atual cenário de tragédia da COVID-19 no país, principalmente por proporcionarem uma falsa sensação de segurança e desestimular a adesão e cumprimento de medidas não farmacológicas de contenção da doença, como o uso de máscaras e o distanciamento social. Ainda no início da crise sanitária, em março de 2020, Bolsonaro abraçou com entusiasmo a ideia de que o antimalárico cloroquina e sua “irmã”, a hidroxicloroquina (HCQ), seriam tratamentos simples, baratos, seguros e eficazes da doença.
Comentários sobre uso de cloroquina contra a COVID-19 já circulavam em janeiro de 2020, com relatos de médicos chineses experimentando a droga no combate à doença, então praticamente circunscrita ao país asiático. Estes estudos exploratórios de “reposicionamento” de medicamentos existentes, sem grupo de controle ou outras características necessárias para uma real avaliação da eficácia do tratamento, acabaram produzindo o que se chamam de “evidências anedóticas” de que a estratégia funcionaria, ignorando o fato de que, devido às próprias características da infecção pelo SARS-CoV-2, a grande maioria dos pacientes se recuperaria com ou sem o remédio.
Com a divulgação, em 17 de março, pelo médico francês Didier Raoult de um estudo preliminar apontando suposto benefício da medicação para pacientes de COVID-19, especialmente quando associada ao antibiótico azitromicina, na comparação com um placebo, deflagrou-se o hype em torno da cloroquina. Raoult, que semanas antes havia publicado uma rápida revisão dos limitados estudos sobre os efeitos antimicrobianos da cloroquina in vitro – isto é, em culturas de células na bancada do laboratório –, foi ao YouTube anunciar sua descoberta, que também já havia chegado aos ouvidos do então presidente dos EUA, Donald Trump.
Animado, dois dias depois, Trump mencionou pela primeira vez a droga numa entrevista coletiva na Casa Branca, instando a FDA, a agência de controle de alimentos e bebidas do país, a liberar seu uso para COVID-19. O circo estava armado. Pressionada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) chegou a incluir a hidroxicloroquina na iniciativa Solidarity, uma pesquisa global de reposicionamento de medicamentos para tratamento da doença.
Enquanto isso, Raoult finalmente publicava artigo sobre seu experimento no International Journal of Antimicrobial Agents. Com uma amostra reduzida de pacientes e repleto de falhas metodológicas, o estudo logo foi alvo de críticas da comunidade científica, inclusive aqui na Revista Questão de Ciência. Com o tempo, ensaios clínicos melhor estruturados foram demonstrando a ineficácia da cloroquina para a COVID-19, inclusive o da OMS, cujo protocolo acabou suspenso preventivamente e, depois, descartado em definitivo por falta de indicações de benefícios.
O estrago, no entanto, estava feito. A cada achado nas pesquisas de que a cloroquina não funcionava contra a COVID-19, e poderia até ser prejudicial aos pacientes, seus defensores mudavam o discurso. Assim, ora o medicamento deveria ser usado em pacientes internados, e só funcionava se associado à azitromicina, como no experimento de Raoult, ora era preciso incluir zinco ou vitamina D na “receita” e usá-la como “tratamento precoce”, ou mesmo preventivo, da doença. Nascia então a primeira versão dos infames “Kits Covid” ainda alardeados e distribuídos por governos Brasil afora, com grave ameaça à saúde pessoal e pública, bem como o esboço original do protocolo de manejo de pacientes com cloroquina, ainda recomendado pelo Ministério da Saúde.
Alvo de reclamações e investigação junto à ordem dos médicos da França, Raoult, por sua vez, desde então renegou os resultados que havia anunciado sobre os benefícios da cloroquina no combate à COVID-19. Em carta ao mesmo periódico International Journal of Antimicrobial Agents onde publicara o estudo original, em março do ano passado, o médico francês admitiu erros que produziram viés em seus resultados, destacando que nova análise não encontrou diferenças significativas na necessidade de suplementação de oxigênio, transferência para UTI e mortes entre os pacientes que receberam hidroxicloroquina, associada ou não a azitromicina, em relação ao grupo de controle, que não recebeu as medicações.
A vez do remédio de piolho
Diante das críticas à falta de evidências da cloroquina como tratamento da COVID-19 em qualquer fase da doença, e os perigos a ele associados, principalmente pela associação à azitromicina, o governo federal não tardou em achar outra “cura milagrosa". Desta vez, o “bezerro de ouro” veio na forma do antiparasitário ivermectina.
A onda em torno do remédio para piolhos, carrapatos e algumas verminoses teve início com um estudo de pesquisadores da Universidade Monash, na Austrália. Publicado no começo de abril de 2020 no periódico Antiviral Research, relatava experimento da ação da substância sobre a replicação do SARS-CoV-2 in vitro. As doses necessárias de ivermectina para atingir uma concentração capaz de controlar o coronavírus, mesmo apenas em tubos de ensaio, no entanto, em muito superavam as consideradas as máximas seguras para uso em humanos, que por sua vez são cerca de dez vezes a dose recomendada na bula.
Pouco depois, foi publicado online o preprint de um estudo populacional sugerindo que a ivermectina poderia reduzir o número de mortes relacionadas à COVID-19. Tendo como base dados da empresa Surgisphere, o artigo acabou sendo removido pelos próprios autores, na esteira dos questionamentos sobre a validade das informações, que também levaram à retratação de dois estudos analisando reposicionamento de medicamentos para tratar a doença, entre eles uma meta-análise apontando não só a ineficácia como riscos no uso da cloroquina.
Mesmo diante das indicações de uma baixa possibilidade de sucesso – a ação antiviral da ivermectina em altas concentrações já tinha sido observada em outros experimentos in vitro sobre vírus como o da dengue, do Oeste do Nilo e influenza, sem ela nunca ter sido indicada para seu tratamento –, alguns médicos e pesquisadores decidiram investigar esta possibilidade.
Após concluírem (meio obviamente) que as doses usuais de ivermectina em nada adiantariam contra casos graves de COVID-19, foram realizados diversos ensaios clínicos com variadas dosagens e protocolos. Até agora, estes estudos têm resultados que, na melhor das hipóteses, podem ser considerados inconclusivos, seja por limitações como pequenas amostras, seja por falhas metodológicas desde a estruturação até o estabelecimento e análise dos desfechos. Assim, a FDA, a OMS e outras autoridades sanitárias de todo mundo, inclusive a brasileira Anvisa, além da própria fabricante do remédio, não recomendam seu uso fora do contexto destes estudos.
Apesar disso, a ivermectina passou a ser apontada como suposto tratamento da COVID-19 e foi incluída nos inúteis “Kits Covid”. Assim como aconteceu com a cloroquina, seus defensores ora alegam que ela só é útil nas fases iniciais da doença, ora como profilaxia, adaptando o discurso a cada experimento bem estruturado que não encontra benefícios claros no seu uso e confundindo o público com falsas alegações de evidências robustas a seu favor. Enquanto isso, o consumo indiscriminado e exagerado do medicamento, principalmente de forma “preventiva”, já provoca relatos de casos de pacientes com hepatite medicamentosa, seus fígados destruídos pelas altas doses, e necessitando de transplantes para sobreviver.
O vermífugo fugaz
Se com a ivermectina a (fraca) sugestão de que a medicação poderia ser útil no contexto da pandemia veio de experimentos in vitro, no caso da outra grande ilusão de “cura” da COVID-19 promovida pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, o vermífugo nitazoxanida, a evidência era ainda mais tênue. A molécula foi uma das seis identificadas entre mais de 2 mil medicamentos levantados como de potencial ação antiviral em estudos in silico, isto é, em simulações de computador, pelo Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) – subordinado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) - ainda no início da crise sanitária.
Embora a princípio a intenção do ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, fosse manter em segredo quais seriam estes medicamentos, o nome da nitazoxanida logo vazou e chegou ao público, com o remédio aos poucos também passando a ser precipitadamente indicado como tratamento ou prevenção da doença, o que obrigou a Anvisa a controlar sua venda. Mas foi o anúncio por Pontes e Bolsonaro em cerimônia no Palácio do Planalto em 19 de outubro – com direito a gráfico de banco de imagens – dos resultados de um ensaio clínico supostamente “padrão ouro” apontando alegada eficácia da medicação contra a COVID-19 que fez explodir seu uso.
O estudo em si, porém, ainda levaria alguns dias para vir a público. E quando finalmente outros especialistas tiveram acesso a ele, o panorama em nada apoiava a festa do governo em torno de seus resultados. Em artigos nesta mesma Revista Questão de Ciência, Alison Chaves, doutor em microbiologia e imunologia pela Unifesp, Felipe Nogueira, doutor em ciências médicas pela Uerj e divulgador científico, e outros apontaram as muitas falhas no ensaio clínico e sua condução, bem como tentativa que apresentar como positivo um estudo negativo, usando desfecho substituto em um subgrupo de pacientes, talvez como justificativa para o investimento de R$ 11 milhões numa pesquisa que desde o início tinha poucas chances de sucesso.
Diante da contínua falta de evidências, porém, no começo deste ano o Ministério da Saúde decidiu remover o medicamento de sua lista de remédios distribuídos na rede pública de saúde para o enganoso “tratamento precoce” da COVID-19.
Para além de todas as informações aqui apresentadas, no entanto, talvez o mais forte indicativo de que nenhum destes remédios, juntos ou separados, tem qualquer serventia no combate ou prevenção da COVID-19 esteja no fato de que, apesar de sua ampla distribuição e uso, o Brasil é o segundo país com mais vítimas da doença no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, não por acaso outra nação onde até recentemente o governo propagandeava ilusões. Nossos até agora mais de 282 mil mortos (cerca de 10,6% do total global) e 11,6 milhões de casos (10,3%) registrados na pandemia, num país com pouco mais de 2,5% da população mundial, não são mera coincidência.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência