O Centro Interunidade de História da Ciência (CHC), da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) presta um grave desserviço à comunicação e à percepção pública da ciência ao chancelar um debate sobre a realidade do aquecimento global antropogênico (“Aquecimento Global: Verdade ou Mito?”, previsto para 8 de abril). Um debate assim tem tanto sentido de ser quanto um sobre a realidade do Holocausto durante a 2ª Guerra Mundial, ou pondo em questão a existência de escravos no Brasil colônia. Realizá-lo torna o CHC cúmplice da estratégia dos “Mercadores da Dúvida”, denunciada pelos historiadores Naomi Oreskes e Erik Conway, em livros e artigos.
[ATUALIZAÇÃO, 21/03/2021: Em algum momento após a publicação original deste artigo, a página oficial do CHC convidando para o debate parece ter sido tirada do ar. Para que a história não se perca, incluímos aqui "printscreens" da página original e do convite, ao pé do texto]
Além de Oreskes e Conway, já se debruçaram sobre a questão das controvérsias fabricadas em Ciência, da desonestidade intrínseca às ações que as promovem e dos perigos que trazem intelectuais e pesquisadores como o sociólogo Bruno Latour, os filósofos Lee McIntyre, Massimo Pigliucci e David Harker, entre outros.
“Falsa controvérsia”, ou “controvérsia fabricada”, é uma manobra de comunicação e relações públicas que busca convencer os cidadãos – e, mais crucialmente, os formuladores de políticas públicas – de que determinado assunto, já pacífico entre os especialistas da área, segue indefinido e “aberto ao debate”. A tática, inaugurada pelo movimento criacionista, foi depois adotada pela indústria do cigarro e, mais tarde, pela dos combustíveis fósseis.
Os manipuladores que trabalham construindo essas polêmicas-espantalho distorcem a natureza fundamental do debate científico, usando o dado filosófico de que nenhuma afirmação científica jamais está definitivamente comprovada (toda teoria pode ser revista, à luz de evidência nova convincente) para obscurecer o fato de que há, sim, teorias e hipóteses muito bem corroboradas, que podem e devem ser tratadas, na prática, como fatos estabelecidos (é difícil imaginar uma nova peça de evidência que vá reinstaurar o terraplanismo, por exemplo).
Nessa régua – que vai de “hipótese controversa” a “fato estabelecido” – onde se localiza o aquecimento global? De acordo com levantamento recente, nada menos do que 100% dos artigos científicos publicados sobre o assunto no primeiro semestre de 2019 concordavam que a mudança climática é real e causada por atividade humana. Em 2016, outro levantamento já havia encontrado um consenso de 90% a 100% entre especialistas.
É importante notar que os autores do trabalho de 2016 apontam que a existência de uma minoria de dissidentes é esperada, “porque o nível de consenso correlaciona-se com a expertise em ciência climática”. Em outras palavras, quem entende pouco do assunto tem mais chance de acabar negacionista. De qualquer modo, a existência de uma minoria de estudiosos que discorda do consenso numa área científica não torna uma questão, automaticamente, “controversa”: se fosse assim, as Leis do Movimento de Newton seriam “controversas”.
Desafios sérios ao consenso científico requerem evidência robusta, e avaliar a força da evidência é tarefa de especialistas treinados e competentes. Delegar essa tarefa à plateia de um debate público é como esperar que um quadro de Picasso seja autenticado numa assembleia de condomínio.
Em tempos recentes, a estratégia de ataque a teorias científicas extremamente bem corroboradas, ataque que quase sempre se dá a serviço de interesses econômicos e ideológicos, tem recebido o nome genérico de “negacionismo”, já que implica a negação, a cegueira deliberada diante da melhor informação existente sobre determinado tema – seja a origem da espécie humana, os crimes do nazismo, a inutilidade dos tratamentos precoces para COVID-19 ou o aquecimento global antropogênico, isto é, causado pelo Homo sapiens.
Os fatos do aquecimento global
A ciência básica por trás do mecanismo do aquecimento global é bem simples e está estabelecida desde o século 19: o dióxido de carbono (CO2) é um gás que aprisiona calor junto à superfície terrestre. E a atividade industrial humana, baseada na queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo, gás) vem aumentando a concentração de CO2 na atmosfera nos últimos séculos.
A primeira demonstração experimental conhecida de que o dióxido de carbono e o vapor d’água são gases que contribuem para o “efeito estufa” foi realizada pela pesquisadora – e militante feminista – americana Eunice Newton Foote (1819-1888), e publicada em 1856.
No artigo, intitulado “Circunstâncias Que Afetam o Calor dos Raios do Sol”, Foote descreve experimentos em que termômetros foram colocados em cilindros de vidro contendo ar úmido, ar seco e ar enriquecido com CO2. Os termômetros foram calibrados, os recipientes, expostos à luz do Sol e as temperaturas, depois de algum tempo, comparadas.
Foote conclui que “o maior efeito dos raios solares, determinei ser no gás de ácido carbólico”, ou seja, no CO2. E também: “Uma atmosfera feita desse gás daria à nossa Terra uma temperatura elevada; e se, como algumas pessoas supõem, em algum momento da história o ar estava misturado a uma quantidade maior [de CO2] do que no presente, uma maior temperatura (...) deve ter certamente resultado”.
A concentração atual de CO2 na atmosfera de nosso planeta já é a maior dos últimos 800 mil anos, pelo menos, tendo acelerado nos últimos três séculos, e disparado na segunda metade do século passado. A causa principal é a queima de carvão mineral e de combustíveis derivados de petróleo: gasolina, diesel, querosene. Devastação de florestas e desmatamento também não ajudam, claro. A temperatura atual, por sua vez, é provavelmente a maior dos últimos 100 mil anos.
O fato de que os níveis de carbono no passado e as temperaturas não variam exatamente da mesma forma ao longo de centenas de milhares, ou milhões, de anos às vezes é explorado por negacionistas, mas a verdade é que o clima terrestre responde a uma série de “forçantes” – condições, como a intensidade da radiação do Sol ou a trajetória do planeta em sua órbita, que influenciam o sistema climático. Atualmente, a forçante que predomina é a concentração de CO2 na atmosfera, mas nem sempre foi assim. Em momentos do passado, por exemplo, o Sol ou variações orbitais falaram mais alto.
O papel das ciências sociais
No fim do ano passado, o periódico European Journal of Philosophy of Science publicou uma revisão histórica que chamava atenção para o papel que certos setores da sociologia da ciência haviam desempenhado, nos anos 80 e 90 do século passado, para dar uma pátina de legitimidade intelectual ao negacionismo da mudança climática.
Diversos autores, inspirados pelo modismo falacioso da chamada “construção social forte” das ciências – segundo o qual não apenas muitas das pautas da pesquisa científica, mas também os próprios resultados concretos dos estudos são definidos por jogos de poder e interesse –, saíram a campo para atacar a ciência da mudança climática.
Por exemplo, no início dos anos 1990 o influente sociólogo americano Frederick H. Buttel (1948–2005) criticava colegas que alertavam para a emergência climática. Esses outros cientistas sociais ingenuamente (segundo ele) supunham que “o conteúdo do conhecimento produzido na ciência espelha os parâmetros biofísicos do mundo natural”, quando, na verdade, a ciência seria apenas “uma das muitas modalidades pelas quais interesses expressam-se e são servidos”.
Expressões assim levaram o filósofo da ciência Larry Laudan a perguntar-se se a insistência de certos cientistas sociais em tratar o conteúdo das ciências naturais como meros jogos departamentais de poder não seria uma espécie de projeção da própria culpa, e a definir a posição desses intelectuais como a de olhar com ceticismo para os resultados de todas as ciências – exceto os deles mesmos.
No mundo civilizado, a moda da construção social forte já passou – principalmente, por causa do caráter evidente da mudança climática, como bem pontuou Bruno Latour no ensaio em que faz um mea culpa sobre seu papel na construção da quimera. Com eventos como esse “debate”, a USP, além de alimentar uma narrativa falaciosa de controvérsia científica, parece prestar-se ao papel de retaguarda de Brancaleone para um modelo falido de analisar e entender a ciência.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)