Associar lockdown a suicídio é terraplanismo psiquiátrico

Artigo
12 mar 2021
Flammarion terra plana

Diante da mais profunda tragédia sanitária já vivenciada no Brasil, e da necessidade premente de medidas não farmacológicas mais duras e restritivas para combater a disseminação do SARS-CoV-2 e o colapso atual do sistema de saúde brasileiro, o presidente da República, Jair Bolsonaro, resolveu, sem citar nenhuma fonte, associar, implicando relação de causa e efeito, lockdown e suicídio, durante sua “live” semanal da última quinta-feira, 11/03. Ao ler uma carta, segundo ele, escrita por uma pessoa que se suicidou, o presidente afirmou categoricamente que medidas restritivas de locomoção e de fechamento da economia provocam suicídio e depressão.

Há duas questões que devem ser abordadas frente a esta inusitada fala do presidente. A primeira diz respeito à exposição na mídia de forma desnecessária, descabida e perigosa de um ou mais casos de suicídio. O sensacionalismo público envolvendo este tema pode ter efeito contrário ao desejado. Não se deve promover e repetir histórias de suicídio indevidamente, divulgar o método utilizado, local do fato e tampouco ler cartas de despedida.

Ao invés de supostamente alertar sobre o problema, pode-se gerar o efeito paradoxal que denominamos de suicídio por contágio ou “efeito Werther” –  referência à onda de suicídios por imitação na Europa que se seguiu a publicação da 1ª edição do livro “Os Sofrimentos do Jovem Werther” de Goethe, em 1774. Há um corpo de evidências que se acumula desde a década de 90 (Gould, 2020) que corrobora a hipótese de que o suicídio pode ser contagioso em três situações: impacto pela forma como a mídia reporta casos de suicídio, suicídios em “clusters” (agrupamentos) e suicídio de pares ou colegas na fase da adolescência. Neste sentido, a abordagem despreparada do presidente sobre tema tão delicado incorre no risco de gerar contágio, e não de alertar ou prevenir. Para evitar comunicações desastradas e o contágio de suicídios, a OMS desde 1999 oferece um manual sobre a forma correta para abordar o tema de maneira a prevenir o suicídio.

O manual é simples e começa com uma pequena lista de seis itens sobre o que não fazer quando abordamos suicídio na mídia. (1) Não coloque histórias sobre suicídio de forma proeminente, e não repita indevidamente essas histórias; (2) não use linguagem que sensacionalize ou normalize o suicídio, ou o apresente como uma solução construtiva para os problemas; (3) não descreva explicitamente o método usado; (4) não dê detalhes sobre o local; (5) não use manchetes sensacionais; (6) não use fotos, vídeos ou links de mídia social. O presidente cometeu pelo menos quatro de seis erros. Imprudência, no mínimo.

A segunda questão a ser abordada é se, de fato, temos evidências de que lockdowns causam suicídio.

Suicídio é tema complexo. As relações de causalidade envolvidas não podem ser estabelecidas por interpretações precipitadas e superficiais, sem a devida compreensão psicológica dos inúmeros fatores envolvidos em cada caso particular.

Coletivamente, a interpretação de variações das taxas de suicídio ao longo dos anos e sua correlação com fatores econômicos, sociais e a saúde mental é ainda mais difícil. Os fatores potencialmente associados ao suicídio são inúmeros e envolvem áreas de estudo abrangentes como a sociologia, a psicologia e a psiquiatria. Dentro de cada uma destas áreas, diferentes pesquisadores tentam, mundo afora, dissecar fatores de risco, fatores de proteção e combinações destes fatores que potencialmente desequilibram a balança. Em saúde pública, as causas são quase sempre multifatoriais. Estudos longitudinais, chamados de coortes, que avaliam taxas de suicídio na população e riscos para suicídio, são morosos, sujeitos a vieses e requerem análise cuidadosa.

Os dados publicados até agora sobre o impacto do lockdown e da pandemia na saúde mental das pessoas revelam que, pelo menos em 2020, não houve um “tsunami” de doenças mentais, como alguns autores hipotetizaram, e os países que implementaram lockdowns rigorosos não viram aumentos nas taxas de suicídio.

Em recente revisão sistemática e meta-análise publicada em janeiro de 2021 na revista Psychological Medicine, avaliando os impactos psicológicos do lockdown na saúde mental, os autores constataram um efeito marginal do lockdown em sintomas depressivos e ansiosos, mas nenhuma correlação com suicídio. Em outra revisão sistemática e meta-análise de boa qualidade, mas ainda em preprint, os autores revisaram 65 estudos longitudinais que avaliaram a saúde mental da população pré-pandemia e durante o ano de 2020.

Mais uma vez, apesar do aumento discreto de sintomas depressivos e ansiosos no início do ano, possivelmente uma reação normal e não patológica, não se constatou aumento nos diagnósticos de doença mental ao longo de 2020. Obviamente, isto não significa que a pandemia não está impactando as pessoas sob o aspecto psicológico. Muitos estudos mostraram aumento de sintomas como insônia, ansiedade e depressão, principalmente em subgrupos como os de profissionais de saúde e nas mulheres.

Porém, de forma geral, aumento de sintomas não significa aumento de diagnósticos de transtorno mental. Isto porque existe um limiar quantitativo e qualitativo de sintomas que precisa ser ultrapassado por um período de tempo mínimo (os chamados critérios diagnósticos) para que o médico ou pesquisador possa definir que a pessoa adoeceu.

Os dados científicos, na verdade, apontam numa outra direção, muito mais interessante e relevante. Em 2020 a população mundial foi extremamente resiliente à pandemia e às medidas restritivas e, sob o prisma psicológico, resistiu às dificuldades impostas pelas consequências inerentes à situação pandêmica. Seguiremos resistindo em 2021? A ver.

Por fim, terraplanistas não são apenas pessoas que não acreditam na esfericidade do planeta. O terraplanismo é um empirismo às avessas, uma negação sistemática das evidências científicas em prol de visões particulares, superficiais e opinativas, seja por ingenuidade, seja por perversidade. Após o terraplanismo clínico, imunológico e epidemiológico, a autoridade máxima de nosso país e sua coorte nos oferecem, agora, o terraplanismo psiquiátrico. 

 

José Gallucci-Neto é Médico Psiquiatra Assistente do Instituto de Psiquiatria da FMUSP

André R. Brunoni é Professor Livre Docente do Departamento de Psiquiatria da FMUSP

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