Grandes jornais brasileiros, incluindo "Folha de S. Paulo" e "O Globo", publicaram nesta terça-feira, 23, em espaço nobre (página ímpar, primeiro caderno) anúncio em que um grupo de médicos dedica-se a defender o chamado “protocolo precoce” para tratamento da COVID-19.
Deve ser (espero que seja) ocioso reiterar que não existe nenhum “protocolo precoce” baseado em cloroquina, azitromicina, ivermectina ou o que quer que seja que tenha o menor vestígio de eficácia comprovada, ou mesmo de plausibilidade médico-biológica, para impedir ou deter o avanço da doença causada pelo vírus SARS-CoV-2 (explicações mais completas sobre o assunto podem ser encontradas aqui, aqui e aqui). Nenhum órgão internacional respeitado, do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos à Organização Mundial da Saúde (OMS), recomenda tais tratamentos. Publicação recente dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos EUA, que tem sido mentirosamente apresentada como favorável à ivermectina, na verdade não recomenda seu uso. O texto do NIH diz, no início:
“Há informações insuficientes (...) para recomendar a favor ou contra o uso de ivermectina no tratamento de COVID-19”.
Talvez a falta de uma recomendação explícita “contra” tenha animado os fãs do remédio para piolho, mas essa vã esperança deveria desaparecer com uma leitura honesta do restante do documento que, mais adiante, nota o seguinte a respeito dos estudos que, em tese, indicam que a ivermectina poderia ser útil:
“A maioria desses trabalhos tem informação incompleta e limitações metodológicas significativas, o que torna difícil excluir causas comuns de viés”.
Isso é uma maneira educada de dizer que os estudos que sugerem benefício de ivermectina contra COVID-19 não passam de uma pilha de lixo e não merecem ser levados a sério. De qualquer modo, dado o uso amplo e indiscriminado dos chamados “protocolos precoces” pelo Brasil, se realmente funcionassem seria difícil explicar a trágica marca de 250 mil mortes causadas pela pandemia no país – sendo 50 mil só nos últimos 46 dias.
O conteúdo do manifesto apresentado à imprensa é todo armado em cima de falácias. Cita-se, por exemplo, o artigo 32 do Código de Ética Médica, que obriga o médico a usar todos os recursos “cientificamente reconhecidos” a favor de seu paciente. A cláusula “cientificamente reconhecidos” deveria bastar para afastar qualquer consideração de “tratamento precoce”.
Aliás, se a ideia é mobilizar o Código de Ética Médica, vale a pena considerar se o anúncio em si não viola o artigo 113, que proíbe o médico de “divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente”. Na ausência de um único estudo meritório publicado em periódicos especializados, o tratamento precoce refugia-se em espaços comprados, na imprensa voltada aos não-especialistas.
Imprensa
Dada a escala da tragédia humana causada pela pandemia e os riscos associados aos protocolos precoces, o fato de órgãos de imprensa que vêm prestando ótimos serviços à sociedade, em meio à crise sanitária, aceitarem o anúncio chocou a muitos.
Esses riscos vão desde a apologia do uso indiscriminado (e, no limite, ilegal) de antibióticos, passando pela associação irresponsável de medicamentos, como cloroquina e azitromicina, cujo impacto conjunto no organismo humano jamais foi estudado, e chegando a efeitos sociais e psicológicos como o estímulo à violação das medidas de distanciamento social e a resistência a vacinas.
No mundo platônico das ideias, perfeitas e imutáveis, a imprensa tradicional é formada por dois setores, o “editorial” e o “comercial”, que nada têm a ver um com o outro, que coexistem, em dependência mútua, apartados por um muro de separação inviolável. Reza a lenda que um tradicional jornal da Costa Oeste dos Estados Unidos construiu seu prédio de tal forma que os jornalistas e os vendedores de anúncios não se encontravam jamais, nem mesmo nos elevadores: era uma impossibilidade arquitetônica.
Essa independência absoluta seria a fiadora da promessa de que o que sai nas páginas de notícia e opinião – o “conteúdo editorial” – serviria sempre ao interesse do leitor e não estaria lá plantado pelo “outro lado”, o do “conteúdo comercial”. Esse conteúdo ocupa papel vendido: a partir do momento em que alguém paga o preço de tabela pelo espaço disponível para anúncios, o que entra ali é problema exclusivo de quem pagou.
O jornal lava as mãos e não tem nada com isso. Prostíbulos, golpistas e charlatões de todo tipo promovem seus serviços nas colunas de classificados há séculos, afinal, e os anúncios são até leitura divertida (se não pensarmos em suas vítimas).
Homicídio por classificado
No entanto, como não vivemos no mundo das Formas Ideais da filosofia platônica e, sim, na realidade suja e imperfeita, o muro de separação nem sempre é assim tão impermeável, e nem a publicação pode reivindicar inocência virginal quanto a tudo o que sai nos espaços comerciais.
O jornal “O Estado de S. Paulo”, por exemplo, em seus tempos de “A Província”, pré-abolição, orgulhava-se de não publicar anúncios de compra e venda de escravos. Na última eleição americana, a CNN rejeitou anúncios de Donald Trump, por conterem mentiras. Mas o caso mais clamoroso a demonstrar que conteúdo publicitário não pode ser totalmente isolado da responsabilidade editorial ocorreu no fim do século passado, e envolveu uma revista de nicho, a “Soldier of Fortune” – que, como o nome diz, é voltada para mercenários e aficionados por operações e equipamentos militares.
Em 1985, a “SoF” veiculou um anúncio classificado com o título “GUN FOR HIRE” (literalmente, “ARMA DE ALUGUEL”). O anúncio dizia:
“Mercenário profissional de 37 anos procura serviço. Veterano do Vietnã. Discreto e muito particular. Guarda-costas, portador, outras perícias especializadas. Aberto a qualquer oferta”.
O anúncio foi um sucesso e, alguns meses depois, o anunciante cometeu o assassinato para o qual havia sido contratado. A família da vítima processou a revista, e ganhou uma indenização de US$ 200 mil. Os responsáveis pela “SoF” tentaram se defender dizendo que não tinham nada a ver com conteúdo do anúncio – apenas haviam vendido o espaço –, mas o juiz determinou que “o editor responsável tinha como reconhecer a oferta de atividade criminosa com a mesma prontidão com que os leitores obviamente o fizeram”.
Desde então, a revista não publica mais classificados de serviços mercenários. Em 2016, deixou de circular em papel, mas mantém presença online.
Será o anúncio cloroquiner, em termos morais, o momento “Soldier of Fortune” da imprensa brasileira? A ver.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)