Os Estados Unidos e a era da pós-verdade

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10 fev 2021
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Há algumas semanas, Barack Obama afirmou:

“A negação da realidade e da ciência pode significar o fim da democracia […] vemos isso na promoção do anti-intelectualismo e no repúdio à ciência por parte de líderes que de alguma forma acham que o pensamento crítico e os fatos são politicamente inconvenientes”.

O que Obama expôs é extremamente alarmante, e mesmo assim foi pouco, pois o repúdio à ciência ou a uma realidade objetiva em favor de quase qualquer coisa é, hoje, uma tendência mundial, com suficiente potencial para impactar muitíssimo mais que só a democracia. E há aqueles que estão chamando este fenômeno global “a era da pós-verdade”, uma época na qual a população já não é capaz de distinguir entre realidade objetiva e opiniões, crenças, “realidades alternativas” ou teorias da conspiração.

Em tempos de sofrimento e incerteza como estes, nosso entendimento do que é real resulta numa questão de vida ou morte, literalmente. E a capacidade de distinguir a verdade da mentira resulta também numa habilidade crucial.

Estas são algumas frases que se escutam por aí:

“A tecnologia 5G está causando a COVID-19”

“As vacinas serão usadas para inserir chips e seremos controlados”

“O dióxido de cloro (ou a cloroquina) cura o coronavírus”,

“A OMS está em conluio com a indústria farmacêutica para impedir o uso da cloroquina”

“Tudo é parte do plano da Nova Ordem Mundial (NOM)

A facilidade com que aceitamos estas ideias como certas, a quantidade desproporcional de pessoas que as torna para si, e seu carácter transversal a todas as áreas e níveis de educação sugerem uma clamorosa falha de nossos sistemas de educação em todos níveis: não nos estão capacitando para saber distinguir realidade do que não é. E as consequências podem ser catastróficas.

 

Como diferenciamos realidade e irrealidade?

Acontece que nós, humanos, somos naturalmente ruins em distinguir a realidade; com demasiada facilidade deixamos que os sentimentos, as emoções, as paixões, as ambições, os medos, a imaginação, a superstição ou as crenças do grupo determinem o que cremos individualmente. Somos notavelmente propensos a crer na existência de seres sobrenaturais ou em teorias conspiratórias. Em todas as culturas, em todos os tempos, as pessoas acreditaram, por exemplo, que as doenças e as calamidades são causadas ou aliviadas por uma variedade de entidades sobrenaturais como espíritos, demônios, anjos ou divindades.

Para poder superar nossas deficiências inatas, ao longo de milhares de anos desenvolvemos uma técnica sumamente avançada, que, no entanto, não nos vem naturalmente, que nos custa aceitar, e que terminamos por chamar “pensamento crítico”. Basicamente, o pensamento crítico consiste em preparar o indivíduo, advertindo-o para as formas em que nosso cérebro está construído para falhar. As faculdades críticas podem ser definidas como a capacidade para emitir juízos sobre o que é certo, ou se corresponde à realidade ou não.

“As faculdades críticas são um produto da educação e da formação. São um hábito mental, e às vezes, um poder. São uma condição primordial para o bem-estar humano, para qual devemos ser treinados. São nossa única garantia contra o engano, as alucinações, a superstição e a falta de compreensão de nós mesmos e de nossas circunstâncias terrenas” (William G. Sumner, 1906).

 

O Iluminismo

Nascemos praticamente com as mesmas falhas cognitivas de nossos antepassados cavernícolas. Durante quase toda nossa existência como espécie, de algumas centenas de milhares de anos, nosso pensamento foi dominado por emoções, medos, superstições, por obediência às ordens dos governantes, às tradições, ou às crenças do grupo. Temos acreditado que nossos destinos estão nas mãos de uma infinidade de seres sobrenaturais. Esse é o tipo de pensamento que nos domina em todo mundo, por quase toda nossa existência como espécie.

No início dos anos 1600, as sociedades europeias estavam dominadas por pensamentos de tipo religioso, particularmente a filosofia cristã. Algumas das crenças fundamentais eram que “com nossas mentes terrenas não estamos capacitados para distinguir o bem do mal, nem para entender as verdades do Universo”, e por isso “devemos encontrar a verdade e a referência moral na palavra de Deus, transmitida mediante revelações plasmadas nas Santas Escrituras”; além disso, “os governantes são designados por Deus; rebelar-se contra os governantes é rebelar-se contra a vontade de Deus”, e o progresso alcançado pela Humanidade até então foi muito escasso.

Então, na Europa de meados dos 1600 e 1700 ocorreu uma série de eventos pouco prováveis que terminaram por dar lugar à idade da razão, o Século das Luzes, ou o também conhecido como o Iluminismo.

O Iluminismo foi, principalmente, uma revolução do pensamento. A população europeia tomou parte de um movimento intelectual e filosófico cujas ideias socavaram a autoridade da monarquia e da Igreja, terminando por abrir caminho para as revoluções políticas dos séculos 18 e 19. As ideais revolucionárias estavam centradas na elevação da razão e da evidência empírica, especialmente a percepção de nossos sentidos, como fontes principais para adquirir conhecimento, para encontrar a verdade. Desafiando os poderes eclesiásticos e as monarquias, o Iluminismo propôs que, utilizando nosso racionalismo e nossos sentidos, nós humanos somos, sim, capazes de distinguir o bem do mal, de melhorar nosso conhecimento do Universo, e de governar a nós mesmos.

A doutrina científica europeia, com forte influência da Igreja Católica, sustentava que o firmamento era perfeito, e que seus astros, criados por Deus, eram inalteráveis. Com ajuda de seu telescópio, Galileu contradisse esta visão. Suas observações e desenhos mostraram que a Lua, na realidade, não era uma esfera perfeita, que tinha uma superfície irregular, que era alterável. Observou que a Terra girava ao redor do Sol, e não o contrário. Ao sustentar a soberania da percepção de nossos sentidos como meio superior para chegar à verdade, os trabalhos de Galileu marcaram o início da ciência moderna, e sua separação das doutrinas da Igreja, e portanto que os deuses ou não existem, ou não são perceptíveis por nossos sentidos. O propósito principal do Iluminismo foi fazer com que o racionalismo, os dados e a evidência realmente tivessem uma oportunidade contra os sentimentos, as emoções, as paixões, as alucinações, as revelações, as ambições, ou as superstições.

 

O que alcançamos com o Iluminismo?

O progresso alcançado desde que começamos a utilizar as ideais do Iluminismo não tem precedentes. Fomos capazes de determinar que estas cosas são imorais: as monarquias, o racismo, a escravidão, as perseguições religiosas, a subjugação da mulher, os abusos sexuais, a homofobia, o castigo dos descendentes pelos erros dos pais; fomos capazes de entender que todos os homens e mulheres nascem com os mesmos direitos, que temos direito de eleger nossos governantes; pudemos entender que a religião tem que estar separada do Estado, que a principal função do governo deve ser proteger sua população, que devemos ter direito à liberdade de credo, à liberdade de expressão e à busca de nossa própria felicidade.

Pudemos inventar e melhorar o método científico, que demostrou uma infinidade de vezes ser uma poderosa ferramenta para derrotar a ignorância: descobrimos que a Terra gira em órbita ao redor do Sol, que os raios, os terremotos, os maremotos e as doenças têm causas naturais; que todos os seres vivos evoluem; descobrimos que muitas doenças são causadas por seres microscópicos; pudemos quase acabar com a fome, tornar a água potável, descobrimos os raios X, as tomografias; desenvolvemos as cirurgias, os antibióticos, a anestesia, as vacinas; aumentamos a expectativa de vida de 35 para 80 anos; inventamos os automóveis, os aviões, os geradores elétricos, a eletricidade a domicílio, as geladeiras, a televisão, o telefone, a Internet … Fizemos tudo isso em apenas pouco mais de três séculos.

Demasiadas pessoas consideram as conclusões da ciência como “uma opinião a mais”, colocando-as no nível das opiniões de blogueiros, “pesquisadores” sem nenhuma formação científica, clarividentes, etc. Temos aulas de ciências, orientadas a ensinar os conhecimentos acumulados pela ciência, e mesmo assim muito poucos dos formados podem conceituar o que é ciência. Conheço engenheiros, enfermeiras, professores, e até professores universitários que não têm a mais remota ideia de que coisa é a ciência. E se não entendemos o que é a ciência, não saberemos a importância de sua existência, e por isso não aprendemos a valorizá-la, o que constitui outra clamorosa falha de nossos sistemas educacionais.

 

O que é a ciência?

Existe muita confusão a respeito do significado de “ciência”. A palavra “ciência” vem do latim scientia, que significa “conhecimento”, e em seu sentido original era una palavra utilizada para categorizar algum tipo de conhecimento. Desde a Revolução Científica, a ciência é distinta em seu enfoque, e “ciência” é uma palavra especializada para descrever a busca do conhecimento utilizando o método científico. Quando se diz que algo está “cientificamente provado”, se quer dizer que o método científico foi utilizado para chegar a algum conhecimento.

É comum ouvir dizer que “de religião não se pode falar”, mas nunca que “de ciência não se pode falar”. Isso se deve ao fato de que a metodologia aberta da ciência valoriza a crítica e a correção, alimenta as discussões, respeita as evidências e a lógica. O método científico considera a si mesmo falível e deliberadamente se põe a prova utilizando mecanismos de detecção e eliminação de erros, o que de modo geral faz com que se aperfeiçoe. Aos cientistas interessa que outros ponham à prova seus trabalhos e assim possam corrigi-los, validá-los ou invalidá-los, o que termina por aproximá-los mais da verdade. Os métodos e conclusões científicos devem ser publicados para que sejam rebatidos ou validados por outros.

A ciência não pretende conhecer a verdade absoluta de nenhum assunto, só diz que “este conhecimento é nossa melhor aproximação, e este é nosso nível de certeza; continuemos investigando”.

“Mais que uma acumulação de conhecimentos, a ciência deveria ser ensinada como uma forma de pensamento”, dizia Carl Sagan. Os que utilizam o pensamento científico sabem que podem estar equivocados, estão dispostos a escutar e discutir suas ideias porque assim outros podem fazer com que vejam seus erros, o que em geral contribui para lhes dar mais confiança e melhorar a própria qualidade de seu pensamento. Confiam em sua capacidade de resolver seus problemas sem esperar ajuda de ninguém. São intelectualmente honestos, e não lhes dá vergonha dizer “não sei” quando seja o caso; estão dispostos a mudar de opinião sempre que se tenha a devida verificação; estão conscientes dos perigos de “saber pouco para crer que está certo, mas não o suficiente para saber quando está equivocado” (Neil DeGrasse Tyson).

 

Interpretação da realidade

Não entro em discussão com pessoas crentes porque me interessa ganhar sua inimizade. Faço em cumprimento de meu dever cidadão de buscar melhorar a sociedade, e porque estou convencido de que a formação religiosa induz comportamentos concretos que prejudicam sociedades inteiras e, em particular, nossa interpretação do que é real. Minha contenda não é com os crentes, minha contenda é com a crença.

A religião implica a crença na existência de seres sobrenaturais, entes que não podem ser detectados por nossos sentidos nem compreendidos por nossas mentes. Ao ser uma fé em algo que não se pode entender nem detectar, não temos maneira de verificar se é verdadeira, e se torna isenta de questionamentos, críticas ou correção de erros. Toda ideologia é obrigada a provar sua validade, mas não a religião; Então, se uma ideia é aceita sem verificação, qualquer coisa pode estar certa, não? A religião é uma ideologia que induz ao crente ignorar métodos que conduzam ao conhecimento da realidade objetiva, métodos como o pensamento crítico, a evidência ou a ciência. Assim, a formação religiosa favorece o estabelecimento de todo tipo de crenças sem necessidade de provas, ou apesar delas.

A ciência exige evidência para poder crer, enquanto a religião exige crer sem evidência. Pretender que estas duas posições podem ser compatíveis é faltar com a razão, ou a honestidade intelectual. A ciência acumula conhecimento científico verificando a validade de suas teorias, enquanto as religiões constroem suas teologias sem sequer esperar que se verifique nada. É boa ideia manter o Estado separado da religião porque os poderes do Estado poderiam ser usados para forçar à população crenças não verificadas.

As vezes que a ciência desbaratou crenças religiosas são incontáveis, e é por isso que a religião vê na ciência um rival exitoso e prepotente.

A história está cheia de casos de culturas avançadas cujo conhecimento foi deliberadamente eliminado ao serem conquistadas por outras. Se pode pensar que devido à abundante quantidade de meios de informação hoje existentes já não é possível perder o conhecimento adquirido, mas acontece que justamente por conta da quantidade de informação que se tem, é possível recebê-la só de uma tendência, alienando todas aquelas com as que não se está de acordo. O sucesso econômico das instituições evangélicas tem sido impressionante, e isso lhes tem permitido que agora tenham suas próprias escolas, editoras, universidades, cadeias de rádio e televisão; seus próprios estúdios cinematográficos, museus, parques temáticos e até sua própria pseudociência. Se pode chegar a ser adulto com uma visão do mundo inteiramente cristã.

 

Por que evangélicos apoiam Trump?

“Evangélico” não é uma denominação, é uma identidade. É um termo que descreve como certos fiéis entendem e praticam o cristianismo: enfatizam serem “renascidos”, creem que Jesus se comunica pessoalmente com eles, e consideram que a Bíblia deve ser parte central para nossas crenças e vida. Os evangélicos veem em Trump um salvador enviado por Deus. Numa pesquisa de março de 2020, 76% dos evangélicos declararam estar de acordo com Trump em todos ou muitos dos temas, enquanto 81% disseram que Trump lutava pelo que eles acreditam.

Trump soube explorar o fato de que os evangélicos se sentiam profundamente ofendidos pela Presidência de Obama, e que aceitariam alguém que lhes possibilitassem recuperar o terreno perdido. Sem ser cristão, o mercador lhes ofereceu a Terra Prometida, mas, em troca, de que lhe permitissem fazer qualquer coisa. E o compraram. Durante todo seu governo, nomeou para postos-chave pessoas de forte devoção cristã, que não defraudaram a agenda de “avançar o reino de Deus”.

A ex-secretária de Educação de Trump, Betsy DeVos, dedicou toda sua vida a usar as escolas dos EUA para “construir o Reino de Deus”. DeVos promoveu um redirecionamento radical de recursos das escolas públicas para as escolas privadas, que em sua grande maioria são cristãs, e desta maneira usou recursos públicos para fortalecer o ensino religioso.

Quando se descobriu que o governo Trump estava separando indefinidamente milhares de crianças sem documentos de seus pais (até hoje não foi possível localizar os pais de 666 crianças), o então procurador-geral saiu em defensa de Trump empregando passagens da Bíblia:

“Eu citaria o apóstolo Paulo e seu mandato claro e sábio em Romanos 13, de obedecer as leis do governo porque é Deus quem o designou com o propósito de promover a ordem”.

 

É Deus quem designa os governantes?

Em 2006, a hoje integrante Suprema Corte de Justiça dos EUA nomeada por Trump, Amy Coney Barrett, disse em um discurso a formandos de sua alma mater: “Tenham em conta que sua carreira legal não é mais que um meio para chegar a um fim, […] este fim é a construção do reino de Deus”.

Em razão da pandemia, organizações religiosas receberam do governo Trump ao menos US$ 7,3 bilhões em pacotes de resgate.

 

O Partido Republicano

Parte da alta percentagem de aprovação de Trump poderia ser explicada pelo fato de que encontrou um país em que 25,4% são evangélicos e 70% são cristãos, que encontraram em Trump um aliado no seu rechaço da ciência e na sua propensão a esperar que outros aceitem suas crenças apesar de não oferecer evidências.

Desde seu início, o governo Trump se declarou em favor de “realidades alternativas”, rotulando como fake news qualquer tentativa de confrontar suas mais de 20 mil mentiras. Seu desprezo pela verdade não deve ter tido um custo político, dado que praticamente mantém o mesmo nível de aprovação entre os integrantes de seu partido (82%).

O histórico anticiência do Partido Republicano vem de longa data, Trump só fez dessas tendências políticas seu governo. Até o fim de seu mandato e sobre o coronavírus, se opôs à prática do distanciamento social e o uso de máscaras; declarou: “é uma farsa inventada para me desprestigiar”, “é só uma gripe”, “está controlado”, “desaparecerá como por um milagre”, “vamos curar injetando desinfetante”.

Quando foi exposto que o então vice-presidente dos EUA Mike Pence afirma que a cada manhã Jesus se comunica com ele sobre que coisas dizer, um programa de TV o classificou de “louco”. Pence reclamou em outro canal que a rede “ABC não devia transmitir uma opinião que comparou o cristianismo com uma doença mental”. A organização MRC enviou uma carta aberta acusando a emissora de “fanatismo anticristão”. No dia seguinte, a rede de TV se viu obrigada a pedir desculpas, deixando assim estabelecido que nos EUA de hoje “receber revelações” é uma crença que todos devem respeitar. Pence é anticiência, e não acredita em conclusões científicas como que o aquecimento global é causado por atividades humanas, que fumar faz mal à saúde, ou na Teoria da Evolução. Trump pôs Pence a cargo da equipe de resposta contra o coronavírus.

Os Republicanos fizeram do uso de máscaras e do distanciamento social uma questão política. Em novembro passado, em um julgamento dividido de 5 a 4, a Corte Suprema de Justiça votou contra uma determinação do governador de Nova York que devido à pandemia à pandemia limitou em 25 o número máximo de fiéis em igrejas. Os cinco juízes que votaram contra a determinação foram nomeados por presidentes e Senados controlados pelo Partido Republicano, com três deles tendo sido nomeados durante o governo Trump. O argumento da maioria foi de que “as restrições violam a proteção ao livre exercício da religião”. É claro que os EUA estão tendo problemas para conter o coronavírus porque a população está rechaçando a ciência.

O Partido Republicano perdeu quase 60 denúncias de fraude nas eleições presidenciais por falta de provas em diferentes cortes. A realidade é que Biden ganhou as eleições de forma limpa, e é realidade porque ninguém mostrou evidências que provem em contrário. Mas provas e evidências são algo que Trump e seus seguidores não acreditam. Trump assegurou que nunca vai aceitar a derrota. Segundo uma pesquisa posterior às eleições, 88% dos eleitores republicanos acreditavam que Biden ganhou graças a fraudes em diferentes estados.

Os invasores do Capitólio estavam convencidos de estar defendendo a democracia ao impedir que se formalizasse o triunfo de Biden porque, supostamente, a eleição havia sido roubada. Horas depois dos ataque ao Capitólio, 147 dos 262 congressistas do Partido Republicano votaram a favor de ignorar os resultados eleitorais em dois estados onde Biden ganhou. Um conhecido jornalista da rede Fox se perguntava “por que é tão difícil encontrar evidências quando todos sabemos que foram cometidas fraudes em muitos estados?”.

 

A democracia é frágil? 

Obama também disse que “assim como a negação dos direitos, a negação dos fatos vai contra a democracia. Pode ser sua ruína”. A democracia não pode funcionar se a população não pode concordar sobre o que é real, se cada um obedece a sua própria realidade no lugar da realidade objetiva.

O fato de que quase duas semanas depois do ataque ao Capitólio cerca de 80% dos eleitores republicanos aprovam o governo Trump é um indicador de que os EUA, como país, estão jogando pela janela o pensamento crítico, o valor da evidência, a ciência, e isso se dá em grande parte em razão de sua tragédia pandêmica e o cambaleante estado de sua democracia.

A influência cultural que os EUA exercem sobre o mundo não tem paralelo, e por isso o que outrora foi o farol da democracia pode se converter no farol do obscurantismo. No é por acaso que realidades alternativas como que “o dióxido de cloro cura o coronavírus” e a ideia da Nova Ordem Mundial (NOM) tenham se disseminado globalmente a partir dos EUA: o dióxido de cloro (um gás venenoso) foi originalmente comercializado como “cura milagrosa” para um sem número de doenças pela organização mundial Igreja da Saúde e Cura Gênesis II; e a onipresente teoria conspiratória da NOM foi alimentada pelo tele-evangelista Pat Robertson com seu livro de mesmo nome, "The New World Order", um best-seller.

O conhecimento que temos de nossa espécie e o que está se passando nos EUA devem servir para persuadir-nos de que as ideias do Iluminismo, incluindo o valor da evidência, a democracia, a ciência, o uso de nossa razão, e até mesmo a realidade, serão sempre frágeis, e necessitam ser permanentemente defendidas de nossa própria natureza.

Toda pessoa tem direito de ter suas próprias crenças, mas a liberdade de credo não deve significar manter a população na ignorância com respeito a por que o pensamento crítico, a evidência e a ciência são os melhores meios que dispomos para nos aproximarmos do que é real. Tampouco se deve ocultar que as crenças religiosas e suas teologias se estabelecem sem verificação; e a educação deveria cumprir o papel que lhe compete neste respeito.

Para terminar, se seguimos aceitando que “de religião não se pode falar”, que os “suas opiniões me ofendem” continuem dominando o discurso público e os círculos sociais, estaremos deixando cair não somente a democracia, mas também os outros ideais do Iluminismo; não teremos maneira de concordarmos sobre o que é real, e com isso esta civilização se vai. Teremos chegado então à Era da Pós-Verdade, uma espécie de segunda Idade Média; e talvez tenhamos que esperar outros cem mil anos para que o pensamento crítico, a razão, o método científico, e outros mecanismos paranos aproximarmos da realidade tenham que ser inventados e aceitos por um setor determinante da população.

Que a ciência nos acompanhe.

Eduardo Abril Lira é engenheiro eletrônico egresso da Universidade Nacional de San Agustín, Arequipa, Peru, e tem mestrado em Ciências das Telecomunicações na Universidade George Mason, Virgínia, EUA, país onde hoje reside. Este artigo foi publicado originalmente na Revista Pensar

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