Enquanto o Brasil vive um recrudescimento da pandemia de COVID-19, com a média diária de mortes retornando à marca de mais de mil, nível do “planalto do fracasso” de meados do ano passado, e o número de casos explodindo, o Ministério da Saúde, sob comando do general Eduardo Pazuello, volta a dar mostras de sua desconexão com a realidade que aflige o país. Em busca de melhorar sua imagem e a comunicação da pasta, o general nomeou Marcos Eraldo Arnoud Marques seu assessor especial, com um salário de R$ 13.623,39.
Ex-secretário de Comunicação de Roraima, o novo assessor do general Pazuello, que também atende pelo apelido de “Markinhos Show”, se autodefine “palestrante motivacional, master coach, analista em neuromarketing, especialista em marketing, SEO, hipnólogo, mentalista, practitioner em PNL, músico, empreendedor e especialista em marketing político”, numa lista de competências que mistura pseudociências que tangenciam a psicologia (como neuromarketing e PNL, programação neurolinguística) a títulos que remetem à literatura de autoajuda.
O currículo não tem se traduzido em resultados. Embora só tenha sido efetivado no cargo em 19 de janeiro último, Markinhos já trabalhava no ministério desde o início de dezembro. Seus poderes hipnóticos e neurolinguísticos não conseguiram salvar o general das críticas – e possível processo – por sua atuação no episódio da falta de oxigênio para pacientes de COVID-19 no Amazonas, e tampouco inventar uma desculpa minimamente verossímil para a disponibilização (e subsequente retirada) no site da pasta do aplicativo TrateCov, um “formulário clínico” mal estruturado e mal embasado, para diagnóstico e indicação do inexistente “tratamento precoce” para a doença. Pelo aplicativo, praticamente qualquer situação e paciente recebia uma receita dos inúteis e perigosos “Kits Covid”. O produto havia sido lançado oficialmente por Pazuello dias antes, justamente durante a malfadada viagem do ministro a Manaus.
Do palco ao consultório
Chama a atenção no currículo do novo assessor a titulação como “hipnólogo”. Desenvolvida no século 19, a técnica da hipnose foi usada – e abandonada – por Freud nos seus estudos da mente “inconsciente” e ganhou notoriedade como número de palco, em que integrantes da plateia, em conluio ou não com o “mago hipnotizador”, adotam comportamentos, como cacarejar como uma galinha, sob seu suposto “domínio”. Tal “poder” levou a técnica a ser testada no tratamento dos mais diversos tipos de condições, de síndrome do cólon irritável a dores crônicas, fobias, depressão, ansiedade e cessação do tabagismo, em geral com resultados inconclusivos ou idênticos ao de um placebo.
Isso não impediu, no entanto, que a hipnose continuasse a ser oferecida como possível terapia para muitas delas. A prática, não regulamentada no Brasil, pode ser exercida por pessoas com qualquer ou quase nenhuma formação, inclusive via breves cursos a distância.
"A hipnose é um procedimento histórico vinculado a uma perspectiva psicológica, mas hoje muito pouco empregada como técnica terapêutica clínica, usada principalmente por correntes ligadas à psicodinâmica com origem no pensamento freudiano”, diz Ronaldo Pilati, professor de Psicologia Social da Universidade de Brasília. “No contexto de terapêuticas que procuram embasar suas ações em evidências científicas de boa qualidade, como ensaios clínicos randomizados controlados, ela não se destaca como uma técnica eficaz em si. A terapia cognitivo-comportamental (TCC) usa outros elementos que se mostram mais efetivos com base no conhecimento de como a cognição humana funciona, tanto nas interações do indivíduo com o ambiente quanto na intervenção nestes aspectos, quando identificada”.
A falta de evidências robustas de eficiência da hipnose como terapêutica também é destacada por Paulo Sérgio Boggio, psicólogo e diretor do Laboratório de Neurociências Cognitiva e Social da Universidade Mackenzie, em São Paulo. Ele lembra, no entanto, que alguns grupos de pesquisa ainda investigam sua utilidade dentro de alguns contextos, em especial como ferramenta complementar em intervenções baseadas em TCC, estas sim hoje o “padrão ouro” de tratamento psicoterápico.
"Tem trabalhos que misturam TCC com hipnose, mas o peso principal da estratégia terapêutica fica na TCC”, conta. “Mas tem gente séria estudando a utilidade da hipnose, com trabalhos que mostram algum resultado ao alinhá-la com outras técnicas psicoterápicas via seus dois mecanismos conceituais principais: o direcionamento da atenção e a sugestionabilidade”.
Boggio cita como exemplo do primeiro mecanismo, o uso da hipnose no controle da dor.
"Ao inibir a atenção do paciente na fonte da dor e focar em outra coisa, ele pode relatar se sentir melhor”, assinala. “Não que a hipnose tratou a dor, mas tirou a atenção dela. É algo que tem lógica, num uso talvez válida da técnica como adjuvante num contexto maior. Mas dizer que a hipnose tem efeito para curar qualquer condição já entra na casa do charlatanismo”.
Diante desta aparente plausibilidade mecanística, a hipnose segue sendo avaliada como tratamento complementar ou principal para uma ampla gama de condições, com a base de dados clinicaltrials.gov contabilizando 72 ensaios clínicos recrutando ou convidando pacientes para participarem de estudos usando hipnoterapia atualmente. Já a base de dados Cochrane lista 12 revisões sistemáticas de estudos envolvendo hipnose e hipnoterapia direta ou indiretamente, com achados em grande parte inconclusivos sobre a eficácia destes tipos de intervenção, muitas vezes devido a falhas metodológicas ou alto risco de viés nos resultados das pesquisas, infelizmente algo comum em abordagens pseudocientíficas, ressaltam os especialistas.
"A hipnose não surge com frequência como uma prática clínica baseada em evidências científicas justamente pela falta de estudos de boa qualidade em ensaios clínicos controlados”, diz Pilati. “Não é porque tem um estudo publicado que se vai dizer que algo funciona. É muito comum que estes sejam estudos sem grupos de controle e que padecem de limitações metodológicas graves. Todo raciocínio que se deve usar para avaliar qualquer tipo de evidência científica em outras áreas também deve ser usado neste campo”.
PNL
Outra preocupação dos especialistas é a falta de regulamentação em torno da prática no país, incluída pelo novo assessor do general Pazuello em uma “salada” de pseudociências de fato, como a PNL, sigla para “programação neurolinguística”, “neuromarketing” e o indefectível “coaching”.
"Hoje temos coaches de tudo para tudo, de quânticos a outras coisas menos ‘científicas’, virou moda, e têm muitos psicólogos trabalhando em cima disso”, critica Pilati. “A PNL, por exemplo, tem um raciocínio pseudocientífico mais bem delineado em cima da revolução cognitiva dos anos 1960, que também deu origem à TCC, ao identificar fatores que determinam o comportamento humano. Mas enquanto a TCC evoluiu a partir de modelos melhores de intervenções de comportamento nos anos 1970 e 1980, a PNL escolheu mesclar pensamentos e abordagens alternativas estilo ‘Era de Aquário’, apropriando-se da linguagem científica enquanto se afastava completamente das melhores práticas baseadas em evidências”.
Assim, o público fica perdido e se torna potencial alvo de charlatões e aproveitadores, frisa Boggio.
"São pessoas que muitas vezes não têm formação em psicologia, neurologia, psiquiatria, etc, mas encontra um curso qualquer e logo se intitula ‘hipnólogo’ ou outro tipo de especialista”, afirma. “Então vemos em algumas áreas, por falta de uma regulação básica, pessoas sem nenhuma formação praticando, oferecendo e vendendo falsas soluções ‘mágicas’”.
Com isso, resume Boggio, perdem também os profissionais sérios e cientistas que ainda investigam uma possível real eficácia terapêutica de hipnose:
"O problema das pseudociências e do uso que fazem de termos e princípios da ciência fora de contexto é que muitas vezes isso descredencia investigações e usos sérios de algumas técnicas. É o caso da hipnose. Ainda tem muita gente séria investigando, e até agora ela se mostrou apenas como possível adjuvante de terapias consagradas, sem um nível de evidência elevado de eficácia. Mas a contínua oferta da técnica como ‘solução fácil’ atrapalha todo este esforço”.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência