Terapeutas "complementares" investem contra o ácido fólico

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8 fev 2021
feto

 

Quando Martha Field engravidou em 2005, ela tinha uma imagem assustadora em mente. Pouco tempo antes, quando estudava na Universidade Cornell, pesquisando como genes e nutrientes interagem para causar doenças, tinha visto embriões de camundongos menores que a unha de seu dedo mindinho, alguns com cérebros projetando-se dos crânios ou com faces deformadas. As mães, que tinham defeitos genéticos tornando-as mais propensas a ter filhotes com esses defeitos, também não receberam ácido fólico (vitamina B9) na alimentação ou como suplemento.

Field conhecia bem a conexão entre déficit de ácido fólico na dieta e defeitos no tubo neural, em que as partes do embrião que se transformam em cérebro e medula espinhal não se fecham adequadamente. Semanas antes de conceber, Martha Field começou a tomar suplementos de ácido fólico, que reduz o risco de surgimento desses defeitos, principalmente de espinha bífida, uma má formação. Mesmo assim, as imagens persistentes dos camundongos faziam-na se perguntar-se se era o suficiente.

Os suplementos de ácido fólico estão entre os mais estudados e os mais recomendados para mulheres em idade fértil. Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) recomendam que todas as mulheres em idade fértil tomem 400 microgramas diárias de ácido fólico, e alguns alimentos são fortificados com o produto.

Segundo especialistas, os suplementos de ácido fólico são essenciais porque é praticamente impossível obter a quantidade necessária para prevenir más-formações congênitas apenas pela alimentação. “Na verdade, o ácido fólico é a única forma de folato que comprovadamente ajuda o fechamento do tubo neural”, explica Stuart Shapira, diretor associado de ciência e diretor médico executivo do Centro Nacional de Más-Formações Congênitas e Problemas de Desenvolvimento do CDC. Pelo menos 80 países exigem que alguns alimentos sejam enriquecidos com ácido fólico, como medida de saúde pública.

A despeito do consenso científico, nutricionistas e “profissionais” das chamadas “terapias complementares” – naturopatas, quiropráticos e adeptos da medicina funcional – estão fazendo muita gente – e não apenas mulheres que pretendem engravidar – questionar se devem ou não consumir ácido fólico. Médicos estão preocupados porque essas pessoas estão dizendo que mulheres grávidas devem evitar ácido fólico, pondo em risco a saúde de seus bebês.

Mais da metade dos americanos tem variações em um gene chamado metilenotetrahidrofolato redutase (MTHFR), que usa folato em processos celulares essenciais. Em 2017, o 23andMe, serviço de teste genético direto ao consumidor, informou que o gene MTHFR era o gene sobre o qual os clientes mais pediam informações. Há até mesmo livros de receitas para portadores de variantes do gene, e camisetas ironizando a semelhança da sigla com uma expressão vulgar. Mais de 3 mil artigos científicos sobre o MTHFR já foram escritos, e alguns analisam como variantes comuns podem estar associadas a mais de 600 doenças, incluindo autismo, ansiedade, infertilidade, bem como a defeitos do tubo neural.

Mas a associação do MTHFR com a maioria dessas doenças é fraca, segundo Barry Shane, pesquisador de nutrição e professor emérito da Universidade da Califórnia em Berkeley, que estuda o metabolismo do folato há mais de 45 anos. Variantes do MTHFR podem aumentar a probabilidade de alguém ter baixos níveis de folato e, assim, maior risco de ter um bebê com problemas no tubo neural. No entanto, a suplementação de ácido fólico é um método seguro e comprovado de elevar os níveis de folato, mesmo em pessoas com variantes do MTHFR, afirma Shapira.

Mas buscas por MTHFR no YouTubepodcasts, ferramentas de busca e redes sociais levam a uma série de artigos, vídeos e entrevistas alertando – sem apresentar qualquer evidência sólida – que o ácido fólico é um veneno para aqueles portadores de variantes do MTHFR (que eles geralmente chamam de “mutações”) ou que as condições clínicas associadas a variantes de MTHFR são ativadas ou agravadas pelo ácido fólico. Geralmente recomendam mudanças nutricionais, com inclusão de alimentos ricos em folato, evitar alimentos enriquecidos com ácido fólico e substituição dos suplementos tradicionais de ácido fólico por outros, mais caros, para aliviar os sintomas atribuídos ao MTHFR.

Esses alertas contra o ácido fólico aparecem em sites que apelam para altas doses de ceticismo em relação à ciência ou afirmações para lá de duvidosas como, por exemplo, a de que a presença de variantes do MTHFR justifica a dispensa de vacinação. Tipicamente, esses sites também vendem suplementos, testes genéticos, análises genéticas ou serviços como coachings nutricionais, livros e cursos online sobre MTHFR.

Especialistas estão frustrados com a proliferação rápida desses sites, que disseminam informações falsas. Mas Field, que hoje é professora em Cornell e estuda folato e genes há mais de 15 anos, compreende como essas falsas informações se estabelecem e ganham força. “Nutrição não é uma área de confiança em ciência”, diz. “A ciência é complicada”, afirma, “e cientistas não fazem um bom trabalho explicando essa área. E quando deixam você com lacunas a preencher, você preenche da forma que puder”.

O ácido fólico foi isolado a partir de folhas de espinafre no início dos anos 1940 como uma versão do folato encontrado naturalmente nos alimentos como frutas, verduras, legumes, ovos e carne. O cozimento pode reduzir ou degradar o folato natural, mas a estrutura do ácido fólico é mais estável, e pode até ser fervida sem mudar de forma.

Nos anos 70, pesquisadores descobriram  que os níveis de folato no sangue eram mais baixos em mulheres que tiveram bebês com defeitos no tubo neural. No início dos anos 90, cientistas demonstraram que o ácido fólico era eficaz na prevenção desses defeitos e, dois anos depois, os EUA passaram a recomendar que mulheres que pretendiam ter bebês começassem a tomar ácido fólico antes de engravidar.

No entanto, cerca de metade das gestações nos EUA não são planejadas, e o tubo neural se fecha nos 28 primeiros dias da gravidez, ou seja, antes de a maioria das mulheres saber que está grávida. Idealmente, a mulher deveria manter uma dieta naturalmente rica em folato e tomar suplementos de ácido fólico três meses antes de engravidar, segundo Anne Parle-McDermott, professora da Dublin City University, na Irlanda, que estuda a genética do folato. Mas, como muitas gestações não são planejadas, só essa recomendação não é o bastante.

Antes de 1998, 30% das americanas em idade reprodutiva eram consideradas deficientes em folato. Naquele ano, a Food and Drugs Administration (FDA) passou a exigir enriquecimento com ácido fólico em alimentos rotulados como enriquecidos, como farinhas de trigo e milho e arroz. Isso garante aos adultos cerca de 140 microgramas diários de ácido fólico. Um relatório do CDC de 2015 estima que esse enriquecimento impede a ocorrência de 1.300 defeitos de tubo neural por ano no país.

O enriquecimento não é perfeito. Se alguém ingere grandes quantidades de alimentos ultraprocessados e usa multivitamínicos, essa pessoa pode ultrapassar os 1.000 microgramas diários, acima dos quais há um risco de o ácido fólico mascarar os sintomas de deficiência grave de vitamina B12, a chamada anemia perniciosa. Estima-se que 33% das grávidas ultrapassam esse limite, possivelmente porque muitas vitaminas prescritas no pré-natal contêm entre 800 a 1.000 microgramas de ácido fólico.

Quando se introduziu o enriquecimento, houve dúvidas sobre possíveis efeitos colaterais que teria sobre a população em geral: doses de ácido fólico acima do recomendado poderiam causar autismo, ou câncer? Essas preocupações se mostraram infundadas, de acordo com Field, que é co-autora de uma revisão sobre a segurança do ácido fólico, reunindo evidências de diversos estudos que analisaram essa questão. Curiosamente, ela afirma que alguns estudos sugerem que os riscos de autismo e alguns cânceres podem ser até mesmo reduzidos com a ingestão da quantidade recomendada de ácido fólico.

O ácido fólico é uma das formas do folato que pode ser obtido pela alimentação. O organismo usa o folato para transportar carbono para vários processos cruciais para as células. O gene MTHFR codifica uma enzima que ajuda a capturar o carbono nas formas necessárias a essas reações celulares (nesse processo, o MTHFR produz L-metilfolato, outro tipo de folato, que é modificado por outras enzimas para produzir substâncias de que as células precisam).

Esses processos podem ser menos eficientes nas pessoas com variantes do MTHFR. Isso pode causas baixos níveis sanguíneos de folato, mas o ácido fólico pode equilibrar esses níveis mesmo em pessoas com variações genéticas. “As pessoas ficam com a impressão de que a enzima delas não funciona, quando na verdade ela só funciona menos”, explica Field.

Alguns nutricionistas e adeptos das chamadas “terapias complementares” recomendam que o ácido fólico seja evitado. Christa Biegler, nutricionista e podcaster, diz que a que as pessoas com variantes de MTHFR devem usar uma versão sintética do L-metilfolato porque ela dispensa a enzima MTHFR no processo de conversão do folato, de forma que o organismo de pessoas com enzimas menos funcionais pode ter acesso direto a ela. Shane explica que não é assim que os folatos são processados; não se trata de uma linha de montagem, mas de um ciclo, de forma que mesmo se escapar da MTHFR uma vez, eles serão envolvidos várias vezes na mesma via metabólica. Como esse ciclo ocorre milhares de vezes por dia, Shane diz que a vantagem de fornecer L-metilfolato é mínima se comparado ao ácido fólico.

Além disso, é mais difícil transformar o L-metilfolato em suplemento, e portanto mais caro, e ele também é mais instável do que o ácido fólico. Como é mais instável, na prática é mais difícil saber qual a dose exata que a pessoa está tomando por causa do tempo que está à venda na farmácia. Suplementos são pouco regulamentados nos EUA e não são obrigados a listar a procedência e qualidade de seus componentes ou mesmo dizer se são eficazes.

O L-metilfolato de boa qualidade pode prevenir defeitos do tubo neural, diz Shane, que, no entanto, não recomenda seu uso. É muito pouco provável que o ácido fólico perca seu posto de forma de folato recomendada. Isso porque, segundo especialistas, seria anti-ético testar uma forma diferente de folato em estudo randomizado, o padrão-ouro da pesquisa médica, que exigiria que algumas participantes não recebessem nenhum ácido fólico, pondo em risco seus bebês. Cientistas alertam que o fechamento do tubo neural ainda é um mistério.

A despeito do consenso médico sobre os benefícios do ácido fólico, algumas pessoas que pesquisam sobre o MTHFR na internet decidem evitar os suplementos de ácido fólico e alimentos enriquecidos com ele. Tammy Rose-Townsend, coach de saúde, blogueira e mãe de cinco filhos, descobriu o MTHFR quando procurava diagnóstico para seu segundo filho, que sofreu de ansiedade e dramáticas mudanças de humor no jardim da infância.

Médicos e especialistas consultados por ela disseram que a criança não se encaixava nos critérios para transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, dislexia, transtorno bipolar ou autismo. Sem diagnóstico, Rose-Townsend não podia ajudar com os sintomas do filho e era doloroso vê-lo lidar com a situação. Ela descobriu os posts do blog de Ben Lynch, um naturopata de Seattle, explicando que muitos dos sintomas podiam ser atribuídos ao MTHFR, “e tudo se encaixou”, contou em um e-mail. “Os sintomas que ele descreveu eram evidentes nos meus dois filhos mais velhos e alguns se aplicavam a mim e outros ao meu marido. Fez sentido para mim”.

Testes de DNA mostraram que todos na família têm variantes do MTHFR e Rose-Townsend acredita que elas, somadas a outras variações genéticas e fatores nutricionais, são a causa do comportamento do filho e dos sintomas presentes nas outras crianças. Agora a família inteira evita alimentos enriquecidos com ácido fólico e toma suplementos, incluindo L-metilfolato. Rose-Townsend diz que a mudança na alimentação ajudou nos sintomas do MTHFR, incluindo as crises de ansiedade e mudanças de humor do filho.

Scott Hickey, geneticista do Nationwide Children’s Hospital em Columbus, Ohio, acredita que pessoas como Rose-Townsend se aferram à ideia das variantes de MTHFR porque parece que ela pode explicar uma vasta gama de sintomas. De acordo com ele, há incontáveis estudos associando variantes de MTHFR “a todo tipo de quadro clínico que se possa imaginar”.

Na virada do milênio, quando se tornou mais fácil sequenciar DNA, cientistas ficaram entusiasmados com a possibilidade de a pesquisa revelar fatores de risco genético em doenças complexas, na esperança que isso trouxesse avanços no atendimento médico, explica Hickey. Em muitos estudos da época, as variantes do MTHFR apareciam com insistência, porque são tão comuns na população. Mas, segundo Shane e Hickey, as correlações entre o MTHFR e centenas de doenças e condições clínicas a que parecia associado eram fracas. Assim, enquanto os cientistas perdiam o entusiasmo porque esses estudos não se traduziam em informações significativas, “no público em geral, especialmente na internet, essas associações seguiram na direção oposta”, conta Hickey.

De acordo com ele, sabemos hoje que existem poucos riscos para a saúde por se ter alguma das variantes comuns do MTHFR e não há razão para que elas levem a qualquer mudança nos cuidados médicos. Ter variantes do MTHFR pode contribuir para baixos níveis de folato, com efeitos negativos para a saúde, mas esses casos são raros, por causa do enriquecimento de alimentos, segundo Shane.

A mais forte e bem estabelecida de associação entre variantes comuns de MTHFR e uma condição médica é que algumas variações aumentam levemente o risco de defeitos do tubo neural em recém-nascidos. No entanto, Shapira, do CDC, afirma que essa associação se deve ao baixo folato e, portanto, quem pretende engravidar precisa de níveis mais altos da substância. “Consumir 400 microgramas de ácido fólico diariamente aumenta a quantidade de folato no sangue da mulher a ponto de prevenir a ocorrência desses defeitos do tubo neural”, explica Shapira. O efeito protetor do ácido fólico independe das variantes de MTHFR que uma pessoa tem.

Hickey conta que é constantemente procurado por pessoas que querem uma análise das variantes comuns de seus genes MTHFR, mas ele só pede testes genéticos para pacientes em que ele suspeita de variantes raras do MTHFR. Os sintomas dessas variantes raras são graves - deficiência intelectual, baixo tônus muscular, resultados preocupantes de exames de sangue e convulsões. Em seus 11 anos de clínica, Hickey encontrou apenas um desses casos, o de dois irmãos diagnosticados na clínica onde fez sua residência. Ele acredita que esses dois irmãos estão dentre as 100 ou 200 pessoas de todo o país portadoras de variantes raras de MTHFR capazes de causar casos graves.

Muitos médicos e pesquisadores estão irritados com as falsas informações sobre ácido fólico e MTHFR que veem na Internet. Martha Field tem visto essas conversas no Facebook, mas diz que fica tão frustrada que nem consegue acompanhá-las por muito tempo. Um aluno de Anne Parle-McDermott postou um vídeo no YouTube sobre MTHFR e língua presa – uma conexão que não tem nenhuma base científica, mas é muito popular nos blogs –, mas o vídeo teve apenas 100 vistas. O CDC tem uma página em seu website sobre MTHFR e ácido fólico, mas postou pouca coisa, se é que postou, sobre o gene nas mídias sociais. E Hickey é coautor das diretrizes do American College of Medical Genetics and Genomics contrárias aos testes de variantes do MTHFR, mas isso não impede que alguém use os serviços diretos ao consumidor para descobrir o status de seu MTHFR por conta própria.

No início dos anos 1990, muito antes do aparecimento da testagem genética comercial, Shane se tornou uma das primeiras pessoas a saber do status de seu MTHFR, depois de analisar seu próprio DNA. Descobriu que tem uma variante que reduz levemente a capacidade de seu organismo converter folatos. Mas apesar de sua longa e íntima relação com o MTHFR, Shane nunca se preocupou com seu efeito em sua vida, porque, segundo ele, os dados não sustentam preocupações. Ele começou a tomar suplementos multivitamínicos há alguns anos, porque nas ausências de sua mulher, suas refeições ficaram menos equilibradas em termo nutricionais. Essas cápsulas, que ele toma diariamente, contêm 400 microgramas de ácido fólico. “Eu preciso disso? Provavelmente não”, diz. “Mas mal não faz.”

Martha Field diz que não tem o menor interesse em saber o status de seu MTHFR ou o dos seus filhos, hoje com 11 e 14 anos, porque isso não vai mudar o que eles comem ou qualquer outra coisa que fazem. Mas o MTHFR a persegue. A mãe dela fez um teste genético alguns anos atrás e descobriu que tem variantes duplicadas do MTHFR, o que significa que Martha herdou uma delas. Será que teria feito alguma coisa diferente quando planejava engravidar se soubesse disso na época? “Eu teria feito a mesma coisa e tomado a dose recomendada de ácido fólico bem antes de engravidar”.

Christina Szalinski é uma jornalista de ciência com doutorado em biologia celular. Este artigo foi publicado originalmente em Undark.

 

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