A "ciência" nas ciências sociais

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30 jan 2021
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Se qualquer pessoa pesquisar no Google “ciências sociais são cientificas?” ou “are social sciences science?”, uma enorme quantidade de resultados aparece. E não só de blogs ou livros recentes, mas de textos tão antigos quanto as próprias áreas dentro das ciências sociais. Alguns deles com títulos muito similares, como “How scientific is social science?. Essa discussão existe entre acadêmicos e leigos curiosos, entre pessoas de fora ou de dentro da própria área.

Áreas como a economia, a psicologia, a sociologia, a história, a geografia e a antropologia lutam não só para apresentar resultados que passem por testes de rigor e resistência científica. Há a própria disputa sobre a aplicação do conceito de “ciência” a este conjunto de pesquisas, chamado de “ciências sociais”.

Problemas de replicação, a dificuldade de criar “leis gerais” como na física ou na química, uso indevido da estatística ou, ainda, a falta de uma teoria mais unificada fazem com que as ciências sociais sejam vistas com maus olhos por cientistas de outras áreas e, também, por parte do público. Não à toa, elas recebem a alcunha de "soft sciences" (ciências “moles”, ou ciências “fáceis”).

Isso acabou gerando um certo menosprezo em comparação às irmãs dentro da família das ciências empíricas. Quando resolvi que cursaria ciências sociais na Universidade de São Paulo, era sempre questionado do porque alguém “inteligente como eu” faria esse curso, e não algo como física ou ciência da computação.

 

História

Diferente da física, que tem um corpo de pesquisa de séculos, a sociologia – a primeira ciência social – nasceu no século 19, com os trabalhos de Auguste Comte, na França, Harriet Martineau, nos Estados Unidos, e Herbert Spencer, na Inglaterra. Um pouco mais tarde ganharia robustez nos trabalhos de Max Weber, Karl Marx e Émile Durkheim. O tempo de desenvolvimento do escopo de estudo e dos métodos de análise nas ciências sociais é muito menor.

Vale mencionar que análises sobre a sociedade, a história e a política já existiam bem antes, com pensadores como Locke, Rousseau, Hobbes, Maquiavel, Platão, Heródoto, Avicena e muitos outros. Mas esses comentadores ainda não tinham um caráter que hoje vemos como cientifico.

Mal surgidos, os estudos organizados sobre a sociedade e o comportamento humano começaram a sofrer os primeiros questionamentos sobre sua cientificidade. Em 1869, a revista Scientific American publicou um artigo intitulado "Is There Such a Thing as Social Science?", onde se questionava se era possível afirmar a existência de algo chamado "ciências sociais", e se elas conseguiriam resolver as "mazelas crescentes" da sociedade à época. O artigo finaliza dizendo que se tais ciências não existem, precisam passar a existir para ajudar no entendimento e combate dessas mazelas.

Durante muito tempo, as ciências sociais investiram na empreitada normativa de melhoramento social através do maior entendimento das relações humanas. E quando se percebeu que a sociologia e a economia não conseguiram resolver todos os problemas sociais, muitos se voltaram contra elas. Esse modus operandi normativo tem sua origem no positivismo, do qual Comte era o maior exemplo. O filósofo Robert Nozick, em seu "Estado, Anarquia e Utopia", critica esse tipo de sociologia, dizendo que não representa nada mais do que o estudo das causas que “os problemas deveriam ter”. 

De qualquer forma, o positivismo, como escola de pensamento fundadora da sociologia, incutiu suas ideias principais na disciplina. Sua “resposta” era de que as ciências sociais eram capazes de resolver esses problemas e trazer o progresso social. A filosofia comteana defende a ideia teleológica de “etapas sociais”, onde uma sociedade passa de uma etapa mais primitiva para uma mais desenvolvida (que seria a sociedade europeia, ecoando o etnocentrismo que as ciências sociais tiveram no início).

Essa visão normativa levou a outro problema que ainda hoje é muito discutido:  a ideia de que as ciências sociais se afastaram do restante das ciências empíricas, às vezes até menosprezando áreas como neurociência e biologia, e fecharam-se em uma "ilha de conhecimento" próprio.

Esse afastamento tem raízes históricas que remetem à fundação da sociologia como uma área com objeto de estudo próprio, diferente, por exemplo, da biologia ou da psicologia. Na segunda metade do século 20, o estranhamento entre ciências sociais e ciências “da natureza” radicalizou-se com a emergência do chamado pós-modernismo. Este foi um movimento de destruição, não de reforma.

Pós-estruturalistas, desconstrucionistas e culturalistas defendiam ideias como a de ciência como uma disputa de narrativas, onde todas as perspectivas são igualmente válidas, ou que tudo o que explica o comportamento humano são sua cultura e seu ambiente.

Não havia espaço para genes, hormônios, átomos ou qualquer universalidade. Essa visão mais tarde também ficou conhecida como “Modelo Padrão das Ciências Sociais” (Tooby & Cosmide 1992) – que ignora achados bem estabelecidos de outras áreas, que afetam as teorias e hipóteses das ciências sociais.

Estavam mortas as ideias de universalidade e objetividade das grandes narrativas propostas pelos modernistas. Estava dado o afastamento total. Eles representam a versão literal do poema Muriel Rukeyser, que diz que “O universo é feito de histórias, não de átomos”.

Isso fez as ciências sociais às vezes serem acusadas de praticar o que o falecido físico Richard Feynman intitulou de “Cargo Cult Science”. Essas são áreas que preservam a aparência externa de ciência, em termos de nomenclatura, estrutura, rituais (apresentação de teses, revisão pelos pares), mas sem o compromisso com o rigor intelectual ou a evidência empírica. Irônico notar que Feynman tirou essa ideia de uma análise de antropologia cultural sobre a Melanésia.

 

Um abismo entre nós

Tudo isso gerou um debate epistemológico sobre o funcionamento e a obtenção de conhecimento das relações sociais. "A questão do estatuto das ciências sociais, de saber exemplos genuínos de ciência, parece girar em torno da comparação entre a sua metodologia, dada a natureza dos fenômenos que estudam, e a metodologia da física. Ora, será que podemos realmente encontrar elementos de continuidade suficientes entre a economia e a física para considerarmos ambas ciências?" (BORTOLOTTI, 2013, p.41).

Simplificando, há duas visões sobre o tema: a naturalista e a antinaturalista. A primeira afirma que, por maiores que sejam as diferenças metodológicas entre as ciências naturais e sociais, e por mais que haja divergência no ritmo de desenvolvimento e descoberta científica, ambas encontram-se num mesmo contínuo. Já para o antinaturalistas, há um abismo entre a física e a química, de um lado, e a psicologia, e a antropologia, do outro.

Bortolotti (2013) aponta que as críticas feitas pelos antinaturalistas baseiam-se em sete pontos principais. O primeiro é da dificuldade de se fazer inferências que levem a generalizações dos fenômenos sociais (induções), diferente dos fenômenos físicos (o ferro conduz eletricidade, o ferro é metal; o ouro conduz eletricidade, o ouro é metal; o cobre conduz eletricidade, o cobre é metal; logo, os metais conduzem eletricidade). Outro é o de que é difícil saber quais fatores são relevantes para se conceber um experimento em ciência social, e não há como fazer testes controlados em laboratório.

Dois pontos centram-se nas dificuldades de entender fenômenos sociais. Por serem sistemas não-lineares e complexos, com novas propriedades que surgem da relação entre as partes e que não parecem ser redutíveis às propriedades intrínsecas dos componentes isolados, suas variáveis não são facilmente controláveis. Isso leva a uma dificuldade de se fazer previsões. Para o antinaturalista, não há como se falar em "causa e efeito" nas ciências sociais.

Esse holismo, ou seja, a necessidade de se olhar para o todo, dificulta ainda mais o entendimento. Na física, em geral, o todo é igual à soma das partes. Quando analisamos a altura de uma pilha de pedras, a altura do monte nada mais é que a soma das alturas das pedras individuais. Nas ciências sociais, esse não parece ser o caso - apesar de o debate a respeito ainda estar em andamento, na metafísica analítica atual. Há os defensores dessa ideia, chamados emergentistas, e os que defendem a plausibilidade de redução de todos os fenômenos a termos físicos, os reducionistas.

Isso dificultaria mais um ponto: a compreensão. Para compreender fatos naturais, defendem os antinaturalistas, basta entender o que causou esses fatos. Já no mundo social e cultural humano, é necessário ainda considerar o significado e a finalidade do fato social. Embora seja possível pensar em entender relações causais, de alguma maneira, a compreensão necessita de imaginação e empatia.

Por conta disto, a objetividade das ciências sociais fica comprometida. O cientista que está analisando um fenômeno social não está fora da sociedade. Como afirma o filósofo da ciência Rom Harré, nas ciências sociais muitas vezes estudamos fatos que nós mesmos criamos - o que para ele não leva ao antinaturalismo, no entanto.

Karl Popper foi um dos primeiros críticos do antinaturalismo. Ele afirmou que a comparação entre física e sociologia, ou química e psicologia, nada mais é do que uma versão puritana e ingênua da ciência, perpetuada através do positivismo e suas correntes. Para ele, as ciências sociais conseguem fazer generalizações e criar leis.

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Assim como não se pode criar uma máquina de movimento perpétuo, por contrariar as leis da termodinâmica, não se pode ter aumento na demanda por um produto, sem aumento de produção, que não eleve os preços. Ao menos, é claro, que se ache provas do contrário. Elas podem ser diferentes da maneira como o são na física, mas deveríamos utilizar a maneira como a física se desenvolve como padrão para todas as outras ciências?

O filósofo analítico das ciências sociais Harold Kincaid concorda com Popper, no quesito de generalizações e descobrir leis e no naturalismo, mas discorda que elas implicam negações, como nos exemplos acima. Em seu artigo "Defending Laws in Social Science", Kincaid defende que as ciências sociais descobrem leis ao desenvolver afirmações que identificam fatores causais relevantes. Para ele, a complexidade dos fatos sociais não implica a impossibilidade de entender relações de causação pelas ciências sociais.

Em "Explicações científicas: Introdução à Filosofia da Ciência", Leônidas Hegenberg escreve

"É inegável que a possibilidade de realizar experimentos controlados representa um ganho apreciável em estudos científicos. [...], todavia, convém não superestimar o papel do experimento controlado. A astronomia, p. ex., tida como uma ciência altamente desenvolvida, célebre já no século 18 pela estabilidade conferida às suas descobertas e pela precisão de seus vaticínios, não deveu seu desenvolvimento prodigioso à manipulação experimental dos corpos celestes. A geologia e embriologia (até bem pouco tempo), embora não permitissem experimentos controlados, conseguiram chegar a um grande número de leis bem fundamentais. Os exemplos atestam que a ausência de experimentação não é, como se poderia imaginar, empecilho insuperável para o avanço de uma ciência" (1973, p.220-1).

E podemos lembrar alguns exemplos de estudos e experimentos feitos de maneira controlada em laboratório, pelas ciências sociais. Ciências que também fazem pesquisas menos holísticas e que assumem o que chamamos de "individualismo metodológico" acabam sendo frutíferas para experimentos controlados. A psicologia é um dos melhores exemplos disso. Apesar de problemas em replicabilidade, há experimentos já reproduzidos e consagrados.

 

Regressões regredindo 

Apesar de não ser completamente imprevisível, a sociedade humana é muito complexa. O número de variáveis novas que entram em um sistema social é enorme. Isso torna extremamente difícil computar as relações entre variáveis no sistema, o que torna análises do tipo "se X, então Y" muito desafiadoras.

Sabendo disso, os pesquisadores focam numa análise sistemática de padrões e na utilização de ferramentas estatísticas e probabilísticas para, ao menos, gerar proposições como "se X, então 76% de chance de Y".

Porém, essa mesma análise sistêmica e uso extensivo da estatística podem acabar se tornando uma das fraquezas das ciências sociais. Ao focar demais em modelos de regressão, as ciências sociais podem acabar perdendo rigor. Isso, junto do que é chamado de p-hacking, levou à “Crise da Replicação” em áreas como a psicologia.

O físico e cientista político Rein Taagepera é um grande crítico do excesso dessa abordagem nas ciências sociais. Ele brinca que, se continuarem assim, os cientistas sociais quantitativos serão tão ruins para fazer previsões quanto um historiador qualitativo. Só que mais chatos.

Ele não toma o caminho cético de assumir a impossibilidade de se fazer ciência ao estudar a sociedade humana. Só defende que podemos realizar pesquisas melhores, em entendimento, poder preditivo e rigor. O desenvolvimento de áreas como a da inferência causal pode ajudar as áreas de saúde e de sociais a terem ganhos enormes, no quesito entendimento de modelo, predição e controle (Pearl et al 2016).

Mas, claro, isto não é um problema somente das ciências sociais. No livro Proofiness: The Dark Arts of Mathematical Deception, Charles Seife cita abusos no uso de estatísticas em áreas que vão desde a física, passando pela geologia e até a problemática área da nutrição. Então, o que podemos aprender com isso é que deveríamos criticar o mau uso de ferramentas em pesquisas, e não pôr em xeque o caráter científico de toda uma área.

Críticas ao mau uso de estatística para embasar teorias mal desenhadas e que falham em se mostrarem universais, quando propõem exatamente isso, são bem-vindas. O problema é que às vezes o objetivo é menosprezar disciplinas inteiras, ao implicar que não geram conhecimento “como a física”.

A “inveja da física”, no fim das contas, faz tanto detratores das ciências sociais julgarem que elas não podem ser ciência – como a física –, quanto seus defensores acabarem apelando para métodos espúrios para criar seus modelos – como os modelos de regressão citados acima.

Numa época em que a ciência é extremamente atacada, interdisciplinaridade e maior entendimento entre cientistas torna-se importante para termos conhecimento sobre o que acontece em nosso mundo. Seja em questão de clima ou em questões de migração. Temos bons motivos para acreditar nos achados objetivos das ciências sociais.

Dados demográficos nos ajudaram a entender como a população e sua riqueza (ou falta dela) se distribuem. Isso nos faz criar políticas públicas mais cientificamente engajadas. Melhorias no entendimento da psicologia humana e nos métodos de diagnóstico de doenças mentais fizeram com que a taxa de suicídio diminuísse na maior parte dos países, desde 1990.

O que deve sempre ser feito é separar má ciência ou pseudociência de tentativas legítimas de se entender o mundo e as entidades dentro e fora dele. E um dos grupos mais preocupados com isso é exatamente o dos cientistas sociais. Ninguém é mais interessado do que nós em achar conhecimento genuíno que possa ser usado para entender a condição humana e mostrar que um sociólogo ou economista pode ser visto como um representante real da comunidade científica.

 

Rony Marques é sociólogo e cientista político formado pela Universidade de São Paulo. Trabalhou fazendo análise de risco político e atualmente é analista de dados no setor privado

 

 

REFERÊNCIAS

ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Martins Fontes, 2008.

BORTOLOTTI, Lisa. Introdução à Filosofia da Ciência. Gradiva, 2013.

HEGENBERG, Leonidas. Introdução à filosofia da ciência: explicações científicas. Editora Herde, 1965.

Is There Such a Thing as Social Science?. Disponível em: https://www.scientificamerican.com/article/is-there-such-a-thing-as-social-sci/. Acesso em: 26 ago. 2020

KELLSTEDT, Paul M.; WHITTEN, Guy D. Fundamentos da Pesquisa em Ciência Política. Blucher, 2015.

KINCAID, Harold. Defending Laws in Social Science. Philosophy of Social Science, vol. 20 No 1, 56-83, 1, março, 1990.

PEARL, Judea; GLYMOUR, Madelyn; JEWELL, Nicholas P. Causal Inference in Statistics: A Primer. Wiley, 2016.

RITCHIE, Hannah; ROSER, Max; ORTIZ-OSPINA, Esteban. Suicide. Disponível em: https://ourworldindata.org/suicide. Acesso em: 26 ago. 2020.

SEIFE, Charles. Proofiness: The Dark Arts of Mathematical Deception. Viking, 2010.

TAAGEPERA, Rein. Making Social Sciences More Scientific: The Need for Predictive Models. Oxford University Press, 2008.

WARBURTON, Nigel; EDMONDS, David. Big Ideias in Social Science. SAGE, 2015.

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