A eclosão da pandemia de COVID-19 no início deste ano deu a largada a uma corrida pelo desenvolvimento de vacinas contra a doença. Em pouco tempo, cientistas espalhados em laboratórios ao redor do mundo se puseram a trabalhar numa busca frenética por um imunizante, tentando desde abordagens tradicionais, como os vírus inativados da chinesa CoronaVac, a estratégias inovadoras que usam o mecanismo celular do RNA mensageiro (RNAm) para instruir as defesas do organismo a combaterem o SARS-CoV-2, a exemplo da vacina da gigante farmacêutica americana Pfizer em parceria com a empresa de biotecnologia alemã BioNTech, que já começa a ser aplicada em diversos países.
Os 11 meses que separam a descoberta da doença em janeiro, na China, do produto da Pfizer/BioNTech injetado no braço da anciã britânica Margaret Keenan na cidade de Coventry, Inglaterra, em 8 de dezembro último, marcam um recorde absoluto na história da ciência. Nunca antes uma vacina avançou tão rápido nas muitas e complexas etapas necessárias para sua criação, da identificação e sequenciamento genético do vírus – prontos em dias após o alerta, em 31 de dezembro de 2019, para um surto de uma pneumonia desconhecida em Wuhan – à formulação e às seguidas fases de testes de segurança e eficácia em animais e humanos. Feito que acaba de ser reconhecido como a “Avanço Científico do Ano” pela prestigiada revista científica Science em sua lista anual de destaques da ciência, publicada na edição desta semana.
Pressa esta que tem motivos trágicos. Nestes mesmos 11 meses, o SARS-CoV-2 chegou a cada recanto do planeta, provocando mais de 74 milhões de casos confirmados e 1,65 milhão de mortos pela COVID-19 até 17 de dezembro de 2020, de acordo com dados compilados pela Universidade Johns Hopkins, EUA.
E os impactos da pandemia vão muito além destes números. A necessidade de conter a disseminação do vírus, e evitar o colapso dos sistemas de saúde, levou diversos governos a adotar medidas preventivas rigorosas, como o fechamento de escolas, comércio e restrições à movimentação de pessoas, com graves consequências econômicas e sociais. Já o estresse da ameaça de uma doença mortal, o confinamento e o distanciamento forçados, contrariando o caráter social e gregário da natureza humana, cobra seu preço na saúde mental da população, com temores de uma onda de distúrbios psicológicos paralela à COVID-19.
Governo sem pressa
Tal senso de urgência, no entanto, não parece ter chegado ao governo federal brasileiro. Desde o início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro buscou minimizar, ou mesmo negar, a gravidade da crise sanitária, deixando passar todas as oportunidades de se antecipar aos problemas, obstáculos e necessidades decorrentes, enquanto promovia – e ainda promove – saídas “milagrosas” e falsas para a situação, como a cloroquina e outros produtos incluídos nos infames “Kits COVID” comprovadamente ineficazes contra a doença, seja de maneira profilática ou em seu tratamento “precoce”.
Agilidade Bolsonaro só mostrou na troca de seus ministros da Saúde, com dois médicos deixando o governo no período de apenas dois meses a partir do início da pandemia para, ao fim, serem substituídos por um general da ativa do Exército brasileiro. Apresentado como um “especialista em logística” e confessadamente “leigo” em temas de saúde, Eduardo Pazuello se mostrou incompetente na primeira função e temerário na segunda área.
Sob a gestão de Pazuello, o Ministério da Saúde deixou estragarem quase 7 milhões de testes do tipo RT-PCR para infecções ativas pelo novo coronavírus, que poderiam ter sido usados para rastreamento de contatos com doentes, estratégia adotada como sucesso por muitos países, como Coreia do Sul e Alemanha, para conter a transmissão e reduzir o número de vítimas. Pazuello também não demonstrou capacidades básicas para planejamento e previdência para uma eventual vacinação em massa no país, ignorando, por exemplo, alertas da indústria e de seus próprios vizinhos da pasta da Economia na Esplanada dos Ministérios sobre a necessidade de providenciar antecipadamente seringas e agulhas para aplicação dos imunizantes.
Já com relação à saúde, Pazuello procurou satisfazer cegamente as vontades de seu chefe. Nem bem assumiu, ainda interinamente, o Ministério da Saúde em maio, a pasta jogou a ciência pela janela e lançou um protocolo institucionalizando a ineficaz cloroquina como tratamento para a COVID-19, como Bolsonaro queria. Sob sua batuta, o ministério também não fez nem sequer uma campanha clara e informativa sobre a necessidade do uso de máscaras e do distanciamento social, as duas estratégias que se mostraram mais eficientes para conter o avanço da pandemia ao redor do mundo, fazendo vista grossa para o mau exemplo do presidente e outros integrantes do governo neste campo, e reprimindo raros momentos de lucidez na sua comunicação.
Mas o erro mais grave do governo federal no combate à pandemia, verifica-se agora, é justamente relativo à que sempre foi a única saída real e verdadeiramente científica da crise sanitária: a vacinação em massa da população com um ou mais imunizantes eficientes e seguros, de forma a alcançar a chamada imunidade de rebanho vacinal, que corta as cadeias de transmissão do vírus e interrompe seu avanço. Numa demonstração clara do descompasso e desdém frente aos anseios de grande parte dos brasileiros, Pazuello questionou o que chamou de “ansiedade” e “angústia” para o início da vacinação.
“O povo brasileiro tem a capacidade de ter o maior programa de imunização do mundo. Somos os maiores fabricantes de vacina da América Latina. Para que essa ansiedade e essa angústia?”, disse o ministro durante a apresentação de seu “Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a COVID-19” nesta quarta-feira, 16 de dezembro.
Acontece que, para além da falta de insumos básicos que poderiam – e deveriam – já ter sido providenciados, ou ao menos encomendados, ainda não há uma perspectiva clara de quais vacinas, quantas e quando elas estarão disponíveis para a população brasileira. No seu mal ajambrado plano de vacinação, montado às pressas por exigência do Supremo Tribunal Federal (STF), o Ministério da Saúde diz esperar contar com por volta de 350 milhões de doses de diferentes vacinas ao longo de 2021, o suficiente para atender cerca de 91,5% dos aproximadamente 212 milhões de brasileiros, levando em consideração que alguns imunizantes anunciados são administrados em duas doses e um deles, da farmacêutica americana Janssen, em uma.
A questão é que grande parte destas vacinas não está garantida e, mesmo que sejam aprovadas e venham a ser adquiridas, ainda vão demorar a chegar. Novamente em razão do posicionamento do presidente e seu conflito político com o governador de São Paulo, João Doria, com vistas à eleição de 2022, o governo federal apostou praticamente todas suas fichas na vacina em desenvolvimento pela Universidade de Oxford com a farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca, objeto de acordo de transferência de tecnologia para sua fabricação pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Mas o que a princípio parecia uma “barbada” está se mostrando uma aposta complicada. Outrora considerada uma das mais adiantadas no processo de desenvolvimento, a vacina Oxford/AstraZeneca enfrentou problemas na fase 3 de testes, a última antes de uma possível aprovação, com erros nas doses administradas para alguns grupos e outras falhas metodológicas que levantaram dúvidas quanto aos resultados dos ensaios clínicos, que estão sendo refeitos. Assim, a antes favorita agora é uma “azarona”, e não há garantias ou previsão de quando a Ministério da Saúde vai começar a receber as 100,4 milhões de doses encomendadas e que espera ter até julho do ano que vem, nem quando a Fiocruz começará a fabricar as torno de 110 milhões de doses anunciadas por Pazuello para entre agosto e dezembro de 2021.
Além disso, o Ministério da Saúde tem encomenda “firme” de apenas outras 42,5 milhões de doses da vacina que vier a integrar a iniciativa Covax, liderada pela Aliança Global para Vacinas e Imunização (Gavi), Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Coalizão para Preparação e Inovações para Pandemias (Cepi). O número é suficiente para atender apenas 10% da população brasileira, o mínimo de comprometimento exigido de cada país para participar da iniciativa, e ainda não se sabe qual será o imunizante que caberá ao Brasil, nem há um cronograma para sua distribuição.
De resto, tudo que o governo federal conta são com “memorandos de entendimento” com um punhado de outros desenvolvedores de vacinas contra a COVID-19 em fases adiantadas, entre eles a pioneira Pfizer/BioNTech, sem garantias de quantas ou quando as teria. Em agosto, a Pfizer tinha oferecido ao Brasil, na forma de uma carta encaminhada pelo seu presidente global, Albert Bourla, diretamente ao presidente Jair Bolsonaro, um dos primeiros lugares na fila para receber seu imunizante quando ele estivesse pronto, mas ficou sem resposta. Com as imagens de Margaret Keenan e outras pessoas recebendo a vacina correndo o mundo, e a revelação de que desconsiderou a oferta inicial da empresa, o governo federal se apressa em tentar conseguir algumas doses, mas agora o Brasil está lá no fim da fila, devendo, na melhor das hipóteses, obter só 2 milhões de uma encomenda total de 70 milhões ainda no primeiro trimestre de 2021, conforme consta do próprio plano do Ministério da Saúde.
Assim, o primeiro (ou primeira) brasileiro vacinado contra a COVID-19 fora do contexto dos ensaios clínicos provavelmente será um morador do estado de São Paulo, com a CoronaVac. Objeto de um acordo para testes, envase e posterior fabricação local entre a empresa chinesa Sinovac Biotech e o paulistano Instituto Butantan, a vacina deverá ter seu pedido de registro definitivo encaminhado junto com os resultados da fase 3 de testes para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no próximo dia 23 de dezembro, e está no centro de um Plano Estadual de Vacinação previsto para começar em 25 de janeiro do ano que vem, numa campanha que espera alcançar cerca de 20% dos 46 milhões de habitantes do estado até o fim de março.
Conta de chegada
Ao atraso do Brasil na largada para a vacinação em massa para a COVID-19 soma-se agora a hesitação de uma parcela crescente e considerável da população brasileira em tomar a vacina. De acordo com pesquisa recente do Datafolha, o percentual de brasileiros dispostos a se vacinar contra a COVID-19 caiu de 89% na primeira quinzena de agosto para 73% em dezembro, enquanto cresceu de 9% para 22% a proporção de pessoas que declarou não querer tomar a vacina.
Este crescimento também é reflexo da má gestão da pandemia pelo governo federal e do discurso negacionista do presidente Bolsonaro, que no lugar de alimentar a credibilidade e engajamento da população nesta estratégia fundamental, como fazem praticamente todos líderes políticos mundiais, dissemina desconfiança e temores conspiracionistas, chegando ao cúmulo de afirmar em rede nacional na última terça-feira, 15 de dezembro, que não vai se vacinar.
“Não vou tomar a vacinar e ponto final”, disse o presidente em entrevista a um programa de TV. “Minha vida está em risco? Problema meu!”
Esta declaração de Bolsonaro evidencia que ou o presidente ainda não sabe como funciona a estratégia de vacinação em massa na luta contra uma doença; ou simplesmente não se importa com o fim de uma pandemia que já matou mais de 180 mil de seus compatriotas.
Isso porque, para se chegar a uma efetiva imunidade de rebanho vacinal que interrompa a transmissão do vírus e ponha fim à pandemia, o também chamado “nível crítico de vacinação”, é preciso a adesão de uma parcela determinada da população que depende de diversos fatores, em que os principais são a taxa básica de transmissão do vírus e a eficácia do imunizante, ou seja, o percentual das pessoas vacinadas que fica efetivamente protegido da doença.
Presumindo o melhor dos cenários, em que a vacina não só evita que o vacinado fique doente como também impede que ele transmita o vírus, que a taxa básica do SARS-CoV-2 seja de 2,5 e considerando que a eficácia da vacina da Oxford/AstraZeneca, principal aposta do governo federal, nas análises preliminares (e contestadas) de sua fase 3 foi de cerca de 70%, o nível crítico de vacinação é de aproximadamente 85% da população, 12 pontos porcentuais além dos que se declaram dispostos a tomar a vacina na última pesquisa do Datafolha.
Por esta conta, na corrida para o fim da pandemia, o Brasil, atrasado na largada, sequer vai cruzar a linha de chegada, e cenas como a da imagem que ilustra o anúncio da Science do desenvolvimento em tempo recorde das vacinas contra a COVID-19 como a “descoberta científica do ano” – em que o brasileiro Alexandre Schleier fala com a avó Olivia Schleier, de 81 anos, pela janela de um hospital em São Paulo – ainda vão se repetir aqui por muito tempo.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência