Ministério Público e a tentativa de definir fato científico por decreto

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14 dez 2020
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O Brasil conhece, há tempos, o fenômeno da judicialização da saúde, e teve contato mais próximo nos últimos anos com a judicialização da vida política. É relativa novidade, contudo, a judicialização da ciência. O caso mais recente é o de um procurador federal que, no exercício de sua função junto ao Ministério Público Federal, questiona aspectos técnico-científicos de uma nota redigida por uma sociedade médica brasileira. Embora não se trate, ainda, de uma questão judicial, há claras indicações do uso indevido da máquina pública por órgão que tem competência constitucional para uso do sistema judiciário na defesa de direitos individuais e coletivos.

O Ministério Público, que já integrou o Poder Judiciário na vigência da Constituição de 1967 e o Poder Executivo na vigência da Constituição de 1969, é hoje uma instituição independente (às vezes chamada de quarto poder), que tem como prerrogativa agir “nos casos de ameaça aos direitos previstos na Constituição e nas leis, por iniciativa própria (de ofício), ou após ser acionado por qualquer cidadão”. Pode atuar judicial ou administrativamente e seus membros, independentemente de hierarquia, gozam de independência funcional.

Isso quer dizer que, ainda que haja uma hierarquia administrativa mínima, cada procurador (ou promotor, nas instâncias estaduais) é um agente livre, devendo obediência apenas à Constituição, à lei e sua própria consciência. O Conselho Nacional do Ministério Público, órgão de controle externo responsável pela avaliação de eventuais excessos, entende que não pode adentrar em mérito de questões-fim da atuação de agentes, já que isso configuraria afronta à essência da instituição.

Sobre esse assunto, diz o enunciado nº 6 de 2009 do CNMP:

Os atos relativos à atividade-fim do Ministério Público são insuscetíveis de revisão ou desconstituição pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Os atos praticados em sede de inquérito civil público, procedimento preparatório ou procedimento administrativo investigatório dizem respeito à atividade finalística, não podendo ser revistos ou desconstituídos pelo Conselho Nacional do Ministério Público, pois, embora possuam natureza administrativa, não se confundem com aqueles referidos no art. 130-A, § 2°, inciso II, CF, os quais se referem à gestão administrativa e financeira da Instituição.

Assim, temos um braço importante da República, com amplas responsabilidades, descolado dos outros três poderes e com membros que, salvo situações excepcionais, não respondem funcionalmente por atividades-fim de seu trabalho a seus superiores hierárquicos ou ao órgão de controle externo. A doutrina jurídica justifica a autonomia do MP em função da necessidade da atuação livre e desinteressada de seus agentes, sem influência política, funcional ou administrativa de instâncias superiores. Contudo, a mesma regra que permite operações contra políticos graúdos, por outro lado dá poderes quase irrestritos para que membros individuais do Ministério Público possam exceder limites institucionais, legais e éticos na persecução de causas que tenham por fundo questões ideológicas.

No caso específico do Ministério Público Federal, diversos procuradores - muitos sob a bandeira do grupo MP Pró-Sociedade, fundado entre outros pela procuradora Ruth Kicis Torrents Pereira, irmã da deputada federal bolsonarista Bia Kicis - ingressaram com diversas ações Brasil afora tentando obrigar estados e municípios a adotar o tratamento precoce defendido pelo governo federal, perseguindo pesquisadores e, agora, questionando a fundamentação científica e a isenção da Sociedade Brasileira de Infectologia. Não há registro, até o momento, de questionamentos similares feitos a sociedades que têm documentos orientativos em relação à COVID-19 e que não contam com respaldo científico.

Temos, pelo contrário, casos de associações que representam tratamentos não reconhecidos pelo Conselho Federal de Medicina solicitando auxílio do Ministério Público Federal para atuar contra potencial discriminação à sua aceitação. Não surpreenderia, no avançar das coisas, que o Planetário do Ibirapuera recebesse em algum momento futuro uma solicitação de esclarecimentos sobre a não adesão a um modelo terraplanista.

Esses casos nos indicam que há uma chance razoável de que o envolvimento de órgãos governamentais em questões técnico-científicas, acompanhado de ampla disseminação de desinformação, levará a uma judicialização sem precedentes de questões que deveriam ser pautadas por dados. Um Ministério Público sem um elemento norteador quanto a melhores práticas sanitárias poderá acionar um Judiciário que, como demonstrado no caso da fosfoetanolamina, muitas vezes prescinde do melhor assessoramento científico para tomada de decisão. Em demandas que partam de indivíduos, o Judiciário pode ser sobrecarregado de ações que questionem, por exemplo, qual vacina será disponibilizada a seu estado ou região.

O perigo imediato é que a Justiça, com braços cada vez mais longos, passe a determinar a validade e o alcance da ciência e de seus resultados. O tratamento eficaz por lei, a pesquisa inválida por sentença. O problema é profundo, apenas tendo sido tornado tão evidente em função da pandemia e de sua politização, mas parte da fraquíssima formação científica de operadores do direito encontra respaldo em um modelo institucional que privilegia forma sobre conteúdo e não é devidamente balanceado quanto à limitação de atuação do Judiciário e do Ministério Público (e mesmo do Legislativo) em matérias de cunho científico.

O italiano Davide Servetti discute uma possível solução a esse problema ao propor o conceito de Reserva de Ciência. Sob essa limitação, haveria diretrizes para reger a tutela em saúde determinando que há fatos que não podem ser alterados por vontade do Judiciário ou do Legislativo, em função de impossibilidade fática ou material determinada pela ciência. Assim, existiria a incidência de uma valoração técnico-científica de natureza sanitária sobre as atividades legislativa e judicial, impedindo que fatos consolidados pelas ciências da saúde pudessem ser alterados por vontade de qualquer dos poderes. O pedido de esclarecimentos do Ministério Público certamente esbarraria na Reserva de Ciência.

Paulo Almeida é psicólogo, advogado, doutorando em administração pública e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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